quarta-feira, 8 maio 2024
InícioContraditório1811 Eastlake um jeito diferente de tratar a Dependência Química

1811 Eastlake um jeito diferente de tratar a Dependência Química

1811 Eastlake é o endereço de um prédio de 75 apartamentos em Seattle, Estado de Washington, nos Estados Unidos.

As 75 unidades compõem-se de apartamentos individuais de sala e quarto, banheiro e a tradicional cozinha americana ocupando um pedaço da sala.
Não falta mobiliário nem eletrodomésticos padrão para imóveis urbanos.

Seus ocupantes, 75 pessoas entre homens e mulheres, são “cronic homeless alcoholic people” – pessoas com dois tipos de características “crônicas”: Sem Teto e Alcoólatras.

Pessoas com, no mínimo, essas duas “cronicidades”, já que também são portadoras de outro Transtorno Mental, em regra: a Esquizofrenia (embora essa não se constitua requisito necessário para ingressar no Programa de 1811 Eastlake).

Apesar de ser um Programa de “housing”  – habitação – através da oferta de “ shelters” – abrigos – criado por uma organização do Terceiro Setor – a DESC  – Downtown Emergency Service Center, que viabiliza seus serviços através dos mecanismos jurídicos americanos de deduções fiscais que tornam vantajosas as Doações feitas pela iniciativa privada a programas desse tipo, seus moradores, quase todos aposentados precocemente por doença mental ou de qualquer outro modo beneficiados com algum tipo de ajuda financeira do Governo Federal americano, pagam a quantia de U$ 150,00 – cento e cinquenta dólares americanos – por mês a título de Aluguel.

 

1811 EASTLAKE PREDIO

Em contra partida ao preço pago, os moradores passam a desfrutar de sua bem montada unidade imobiliária, a qual garante conforto, privacidade e segurança.

Dispõem também de toda a Rede de Saúde e Assistência Social americana em termos de Prevenção geral e, se assim o desejarem, Reinserção Social.

 

Os moradores da 1811 Eastlake podem usar seu tempo da maneira que melhor lhes aprouver, não há qualquer condição atrelada para a manutenção do vínculo entre ele (o morador) e a DESC (gestora do Condomínio 1811 Eastlake). Nem mesmo a obrigação de se submeter a qualquer Tratamento para a Dependência Química e a imposição de Abstinência, como é comum em outros Programas desse tipo.

 

E, sendo assim, os moradores de 1811 Eastlake usam seu tempo para fazer a mesma coisa que fizeram na maior parte do tempo de suas vidas: beber.

Sim, beber bastante, não há qualquer impedimento quanto á isso. Bebem, quer tenham ou não tomado seus remédios para tratar de eventual Comorbidade ao Alcoolismo (como dito, a Esquizofrenia é a de maior prevalência).

Bebem durante o dia ou à noite, sozinhos ou em grupo, desde que seja dentro do prédio, qualquer bebida ou quantidade é garantida pela própria dispensa que existe no térreo do edifício.
1811_E Ainda assim, no conjunto, a cada ano desde 2000, quando as estatísticas começaram a ser produzidas, valores da ordem de quatro milhões de dólares a cada ano deixam de ser gastos com prisões e Internações Psiquiátricas de seus moradores.

Até aqui, a narrativa é no sentido do êxito de mais um Programa de Redução de Danos americano, e só.

E, até aqui, esse só já é muito, quando se analisa o cenário brasileiro e se percebe o quanto ainda temos de caminhar para que algo desse tipo seja por aqui produzido.

 

No entanto, algo de novo, verdadeiramente novo, e portanto inesperado, começou a acontecer em 1811 Eastlake.

Os Administradores do Programa começaram a notar que, cada vez mais “crônicos Alcoólatras sem teto” começaram a diminuir, progressivamente, o número de doses de bebida ingerida por dia.

Quando esses moradores pioneiros na diminuição das doses entraram em Abstinência total de Álcool, os Administradores resolveram chamar os Pesquisadores e os Cientistas.

E esses efetivamente constataram inúmeros casos, ao longo dos anos, de moradores que não só pararam de beber, mas também passaram a desejar e realizar Reinserção Social, reconstruindo suas vidas pessoais, familiares e sociais.

 

1811_EsOs números encontrados nas Pesquisas variam de acordo com vários vetores, mas todas elas constataram o mesmo fenômeno: a tendência constante para buscar, independente de alcançar e manter, a Abstinência.

E isso é um efeito totalmente inesperado do Programa, o qual, apesar de ser inovador em alguns aspectos, não têm a Abstinência como objetivo, como ideal a ser atingido.

É bem verdade que as Pesquisas não indicam que os que atingem a Abstinência seja a maioria, mas isso não invalida o fenômeno, somente o torna mais interessante. Os números detectados não autorizam seja tratada a questão como mero desvio padrão.

 

O que pode estar acontecendo, quais são as lições que podem ser tiradas de tal fenômeno?

Será que para usuários de outras drogas o fenômeno pode se repetir? Quais serão as drogas que facilitam tal afastamento progressivo delas e quais as que não?  Haverão? Ou será que não é pelo produto químico em si que deve ser procurada uma resposta?

Será que a resposta se encontra nos atributos específicos do Alcoolismo? Ou em características específicas de seus Portadores? Ou, talvez, uma forma especial de conduta técnica da Equipe de Eastlake é o fator que induz a Abstinência?

Não há respostas, ainda. Mas o foco na Reinserção Social – para quem não tem um lar, ter um teto é muito –é provavelmente parte importante da explicação.

A falta de qualquer contrapartida em termos de Tratamento voltado para Abstinência e, concomitantemente, o atendimento da demanda primeira do Alcoólatra, beber, fazem com que seus moradores prefiram permanecer em 1811 Eastlake à ficar pelas ruas. Nisso há uma experiência original de satisfação. Da mesma forma quando se atende ás demandas por um teto, segurança e privacidade se garante a possibilidade de outra experiência de satisfação.

Com essas duas necessidades satisfeitas, o que mais pode querer o sujeito? E é essa a questão. Quando lhe faltava o teto e lhe faltava a bebida, presentes estavam necessidades que causavam seus desejos, se proteger das intempéries de quem mora na rua e a busca pela próxima dose.

Satisfeitas essas necessidades, o que lhe falta? E ai ele percebe que outras coisas lhe faltam, e portanto, outros desejos se constituem, se articulam.

No caso específico da bebida, sua presença constante e o seu uso intenso podem levar a um estado de saturação desse modo de satisfação, saturação vivida como intoxicação física e mental, que faz com que sua falta seja reclamada.

É no jogo entre ausência e presença do produto que ele assume todo o valor para o Alcoólatra. Se constantemente presente, disponível a todo tempo, é bem possível que em algum momento se abra o furo do vazio e da falta de sentido.

Talvez seja pela satisfação exorbitante de suas demandas mais intensas que o sujeito, em determinado momento, pode vir a perceber que a via do desejo é a vida daquilo que lhe falta, e que, por lhe faltar tanto em tantos campos de sua vida, passa ele a desejar outras coisas, já que as primeiras ( beber e ter um teto para morar) já estão satisfeitas, e portanto podem ser exauridas.  Nesse momento beber deixa não só de ser importante como não beber passa a ser considerado vital para que ele atinja seus novos objetos de desejo. A falta e o vazio, que durante tantos anos o assombraram, passam a ser companheiras de caminhada pela vida.

Isso parece um giro lógico radical em termos do que é um Tratamento para Dependência Química.

Os programas priorizam, de plano, a priori, a Privação do sujeito no que se refere a sua vontade: é através da renúncia à sua vontade que algo de novo pode acontecer na sua vida.

 

Em 1811 Eastlake parece não haver qualquer tentativa de controle do desejo alheio.   Ao revés, a satisfação dos desejos parece ser a condição pela qual, ao tempo de cada uma das pessoas, uma vez plenamente satisfeitos, possam ser relativamente arrefecidos, ou até exauridos, e possam, assim, propiciar a emergência de desejos outros, outras faltas que o sujeito percebe nele haver e que causam outros desejos.

Seu cotidiano deixa de ser a eterna repetição da busca constante pela próximo gole de álcool.

Talvez o arranjo muito peculiar de 1811 Eastlake tenha permitido uma pequena abertura no caminho do desejo de seus moradores, pela indigestão causada pelo excesso de álcool, excesso que os leva a entrar em estado de falta, querer não mais do mesmo, mas outra coisa.

 

Isso não quer dizer, é bom deixar claro, advogar por um Tratamento de Alcoolismo que estimule seus pacientes a beber até cair.

Mas sim que talvez deva ser considerada uma abordagem que dê mais ênfase naquilo que falta ao sujeito (e falta-lhe tanto – no caso dos moradores de Eastlake, para começar, o teto, privacidade e segurança) do que naquilo em que nele abunda (o Álcool).

Olhar para o que lhe falta, evidenciar essa falta e trabalhar no sentido de lhe faltar um pouco menos, talvez uma boa definição de Reinserção Social, talvez uma via de acesso para seu desejo.

 

Forte abraço a todos.

Colaborou com o MegaJuridico escrevendo artigos sobre o tema na sua antiga coluna "Overdose Jurídica". É advogado militante no Rio de Janeiro, especialista em Consultoria Jurídica em Dependência Química, Prevenção, Tratamento e Políticas Públicas de Álcool e outras Drogas.
RELATED ARTICLES

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

- Advertisment -

Most Popular

Recent Comments

megajuridico.com on Súmulas Vinculantes do STF
fausto jose toledo on Súmulas Vinculantes do STF
maria jucineide on Modelo de Queixa-Crime
Andrea de Oliveira Rocha da Silva on Código Penal e Processo Penal – download gratuito
luanaromani@uol.com.br on O trabalho análogo à escravidão
Nilda De Vasconcelos Teixeira Ferraz on O Piso Salarial da Enfermagem
Raphael Barbosa Justino Feitosa on O estupro, o aborto e a mentira
priscila ingride on Modelo de Queixa-Crime
megajuridico.com on A empregada gestante e a pandemia
Leonardo Henrique Berkembrock on A empregada gestante e a pandemia
MARCOS GABRIEL FARIAS NUNES on Parecer Jurídico – Falta por Motivo de Viagem
José Mateus Teles Machado on Em defesa das Sociedades Simples
Giórgia Gschwendtner on Uma crítica ao Direito Ambiental Penal
Danielly Soares on Abuso de poder e suas espécies
Thayon Leal on Bizú Dosimetria da Pena
ELISANGELA SANTOS ALMEIDA OLIVEIRA on Como elaborar um parecer jurídico
PAULO HENRIQUE DA SILVA GADELHA on Multas por atraso no pagamento das verbas rescisórias
Denise Maria Souza Samberg on Quem tem o dever de cuidar da pessoa idosa?
Lauriete on Caso concreto
Francisco Salles "Amado" da Fonseca on Modelo de Usucapião de Bem Móvel
advogado trabalhista online on A reforma do advogado trabalhista
DENIS KASSIO DE SOUSA FERREIRA on Parecer Jurídico sobre Rebaixamento de Função
ighor frois pereira on Apostilas de Direito das Obrigações
WEVERTON GONÇALVES CORDEIRO on Reflexões críticas ao trabalho intermitente
Reginaldo Matias on O REPIS e seu desvirtuamento
Claudiomar Gomes on A remoção do servidor público
Rogério da Cruz Oliveira Oliveira on A remoção do servidor público
antonio sofarelli on A Penhora de bens imateriais
MARGARETI VILELA DA SILVA VENTURA on Direito Natural "versus" Direito Positivo
Vânia Pinheiro Rodrigues on Honorários de um Correspondente Jurídico
Vitor Hugo Luchetti Guerra on Banco de horas sob a luz da reforma trabalhista
Franciele Ferreira Pinto on Resumo de Filosofia do Direito – Parte 1
Fernando Vieira da Silva on Art. 835 do NCPC na execução trabalhista.
Reinaldo Ferreira do carmo on Parecer Jurídico sobre Rebaixamento de Função
ALLYSSON CARVALHO DA SILVA on Modelo de Relaxamento da Prisão em Flagrante
GERSON DE OLIVEIRA LEITE on WhatsApp e o Risco de Passivo Trabalhista
ALEXANDRE NICASTRO DE MORAES on Modelo de Relaxamento da Prisão em Flagrante
Maria Aparecida Genebra on Manual básico de Como utilizar um advogado
Paulo Roberto Rodrigues Junior on Estatuto da Criança e do Adolescente em áudio
Otávio Daniel Neves Maria on A reforma do advogado trabalhista
Mellissa Moura de Andrade on A remoção do servidor público
Ludmilla Carvalho on O império UBER
Paulo Eduardo on O império UBER
José do Nascimento Santos Filho on Transação X Suspensão Condicional do Processo
José do Nascimento Santos Filho on Transação X Suspensão Condicional do Processo
Angela Maria Barbosa on A remoção do servidor público
JULIO CESAR DOS SANTOS NEVES NEVES on Modelo de Relaxamento da Prisão em Flagrante
Jucicleide Batista de Souza on Parecer Jurídico sobre Rebaixamento de Função
Normando A. Siqueira Carneiro on A Violação de Direitos na Era Digital
Lúcio Flávio Guimarães on Diário de uma recém-formada mamãe-advogada
Claudio Cristiano Rodrigues on Modelo de Usucapião de Bem Móvel
Neusa Luiz da Costa Martinelli on Mapa Mental: Crédito Tributário
Patricia Oliveira on Corpo estranho dentro da embalagem
Francisca on Modelo de Queixa-Crime
THOMAS ERIK PISSINATTI CAMPONEZ on Noções acerca do Agravo de Instrumento (Novo CPC)
Lúcio Flávio Guimarães on Respeito na advocacia
Lúcio Flávio Guimarães on Segredos SAMURAI
Livio Ferreira de Souza on Modelo de Usucapião de Bem Móvel
Lúcio Flávio Guimarães on 5 DICAS de Advogado para Advogado(a)
diegorodrigo.silva90@gmail.com on Modelo de Queixa-Crime
kezia oliveira s linhares on Modelo de Queixa-Crime
Nílvia Timba on Modelo de Queixa-Crime
Emerson José de Carvalho on Casei com um alemão. E agora?
Sebastião Bispo de Oliveira on Cursos Livres de Direito a Distância Gratuitos
carlos wanderley gusmão braga on Especial Súmulas TST – Súmula 440
luciana gonçalves barbosa on Parecer Jurídico sobre Rebaixamento de Função
Stephanie on Hitler censurado!
jose pinto de carvalho on Resumo de Filosofia do Direito – Parte 3
Débora Monteiro Pontes on Justa causa: meio de defesa do empregador
Thiago Perdigão dosSantos on Especial súmulas TST – súmula 189
Claudio on Penhora no Sex Shop
Fernanda on Golpe na Seguradora
leonardo paixao dos santos magdalena on Parecer Jurídico sobre Rebaixamento de Função
ana paula vieira cançado on Como elaborar um parecer jurídico
Mariana on Evicção
Francisco Carvalho on Como elaborar um parecer jurídico
legal, interessante para vida jurídica. on Lista com 10 Filmes Jurídicos – Direito e Cinema
Francisca NIldete Chaves Medeiros on Como elaborar um parecer jurídico
Fiore Jiobelli on Perdi minha comanda, e agora?
Cláudio de Souza Lemes on Apostilas de Direito das Obrigações
Paloma Santos on Por que devo fazer estágio?
Jose Lucio Monteiro de Almeida on Trabalho de conclusão de curso: como começar?
marcone aguiar cardoso on Busca e apreensão: com ou sem mandado ?
marcone aguiar cardoso on Busca e apreensão: com ou sem mandado ?
vera Diniz barros on Devolveu e, ainda ficou devendo ?
andrea de souza santos on Como elaborar um parecer jurídico
Antonio Alves de Souza on Como elaborar um parecer jurídico
Sonia Carvalho on A Legalização da Maconha
valdeci r. ramos on Concurso público e redes sociais
Kleilton Patricio Dalfior on Processou Deus por quebra de contrato
Martha Fernanda e Silva de Oliveira on Advogada é barrada no TJ por usar "saia de oncinha"
ROGERIO MENEZES MACIAS on Concurso Público e Empregados Públicos
ROGERIO MENEZES MACIAS on Concurso Público e Empregados Públicos
marconi maximiano teixeira on Cagou o Processo!