sexta-feira, 26/julho/2024
ColunaDireito ImobiliárioA venda de ascendente a descendente na visão do STJ

A venda de ascendente a descendente na visão do STJ

Não pode passar desapercebido o julgamento proferido pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça que, no REsp 1679501-GO (DJe 04.06.2020), rel. Min. Nancy Andrighi, voltou a examinar antiga celeuma acerca do vício decorrente da venda de imóvel de ascendente para descendente, através de pessoa interposta, tema este que aparentemente fora resolvido com o advento do Código Civil de 2002.

Em apertada síntese, foi fixado o entendimento de que a regra do art. 496 do Código Civil de 2002, segundo a qual é anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido – aplica-se à venda de ascendente para descendente mediante pessoa interposta. Confira-se trecho da ementa: “(…) 3.  O  propósito  recursal  é  definir  se  a  venda de ascendente a descendente, por meio de pessoa interposta, é ato jurídico nulo ou anulável, bem como se está fulminada pela decadência a pretensão dos recorridos de desconstituição do ato. (…) 8. Considerando que a venda por interposta pessoa não é outra coisa que não a tentativa reprovável de contornar-se a exigência da concordância dos demais descendentes e também do cônjuge, para que seja hígida a venda de ascendente a descendente, deverá ela receber o mesmo tratamento conferido à venda direta que se faça sem esta aquiescência. Assim, considerando anulável a venda, será igualmente aplicável o art. 179 do CC/02, que prevê o prazo decadencial de 2 (dois) anos para a anulação do negócio. Inaplicabilidade dos arts. 167, § 1º, I, e 169 do CC/02”.

Com efeito, a venda de ascendente a descendente sempre mereceu atenção do legislador civil, sob a ótica da proteção dos demais descendentes, com o propósito de evitar que, a pretexto de celebrar formalmente uma transmissão onerosa, se ocultasse uma doação ou uma compra e venda inexistente ou com valor abaixo do mercado. Por força do Código Civil de 1916 (art. 1.132) e de 2002 (art. 496), há a exigência do consentimento dos demais descendentes, com a ressalva de que, como passou a ser considerado herdeiro necessário, o CC/2002 exige também o consentimento do cônjuge do alienante, salvo se o regime de bens for da separação obrigatória.

Explica-se. É que a doação de ascendente a descendente implica adiantamento de herança, de sorte que, após a morte do doador, deve ser restaurada a igualdade entre os demais descendentes (CC/2002, art. 544).

Como se constitui negócio jurídico comutativo, pelo qual a transferência da propriedade tem como contraprestação o pagamento do preço, a venda de ascendente para descendente não gera efeito no âmbito do direito das sucessões.

A exigência legal aplica-se também à cessão onerosa de quotas societárias de ascendente a descendente sem o consentimento dos demais (REsp 886.133/MG, rel. Min. Fernando Gonçalves; AgRg no AREsp 604.909/RJ, rel. Min. Luis Felipe Salomão).

Por isso que o propósito do legislador em exigir o consentimento dos demais descendentes é o de assegurar que a venda de ascendente para descendente não encubra uma intenção disfarçada de doação, de compra e venda em que o valor não é pago, ou com valor irrisório ou abaixo de mercado, com prejuízo às regras sucessórias da legítima (cf. Gustavo Tepedino. Código Civil interpretado. Rio de Janeiro: Renovar, p. 157).

Na vigência do CC/1916, discutiu-se muito se o vício resultante da inobservância do consentimento dos demais descendentes, em contrato de compra e venda de ascendente para descendente, correspondia a nulidade absoluta ou nulidade relativa.

Após idas e vindas, o Supremo Tribunal Federal editou a súmula 494, fixando o entendimento de que “A ação para anular venda de ascendente a descendente, sem consentimento dos demais, prescreve em vinte anos, contados da data do ato, revogada a Súmula 152”. Reputava-se eivado de nulidade absoluta o contrato de compra e venda diretamente de ascendente para descendente, sem concordância dos demais descendentes, podendo a ação declaratória ser ajuizada no prazo de até 20 anos. Sobre a mesma questão, o STJ veio a fixar entendimento, que se tornou majoritário na época, de que se tratava de ato anulável (EREsp 661858/PR, rel. Min. Fernando Gonçalves; REsp 1356431/DF, rel. Min. Luis Felipe Salomão; REsp 476.557/PR, rel. Min. Nancy Andrighi; REsp 752.149/AL, rel. Min. Raul Araújo; REsp 953.461/SC, rel. Min. Sidnei Beneti).

Quando, mediante artifício doloso, o ascendente e o descendente se valessem de pessoa interposta para fraudar a exigência legal, que, formalmente, adquiriria do ascendente o bem para transferi-lo em seguida ao descendente, sempre se entendeu pela ocorrência de simulação. Configura-se a simulação na hipótese, porque a intenção dos envolvidos não é a transferir a propriedade do bem ao terceiro (pessoa interposta), mas ao descendente, com a intenção de fraudar a lei e os interesses dos demais descendentes.

Na venda de ascendente a descendente, mediante o ardil da pessoa interposta, o vício da simulação acarretava nulidade relativa, de sorte que a ação anulatória deveria ser ajuizada no prazo de até 4 anos a contar da abertura da sucessão do ascendente, a teor dos arts. 178, §9º, V, ‘b’, e 1.132 do CC/1916 (REsp 771.736-SC, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito; REsp 171.637/SP, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar).

Com o propósito de afastar quaisquer dúvidas e a par do princípio da operabilidade, o CC/2002 trouxe regras claras sobre o assunto.

Em seu art. 496, o CC/2002 prescreve que a venda de ascendente para descendente exige o consentimento dos demais descendentes e do cônjuge do alienante, exceto se o regime de bens for o da separação absoluta, sob pena de nulidade relativa.

Tratando-se de nulidade relativa (anulabilidade), a ação anulatória deve ser ajuizada pelo interessado (demais descendentes e/ou cônjuge do alienante), com a demonstração da falta do consentimento e do efetivo prejuízo à legítima, no prazo decadencial de até 2 anos a contar da celebração do contrato, a teor do art. 179 do CC/2002 (AgInt no REsp 1731824/SC, rel. Min. Raul Araújo; AgRg no AREsp 159537/PA, rel. Min. Antonio Carlos Ferreira).

Sobre o prazo decadencial para pleitear a anulação do negócio jurídico, destaca-se que se presume o termo inicial absolutamente, em relação a terceiros, no momento do registro do negócio jurídico perante o Cartório de Imóveis, consoante o enunciado 545 na Jornada VI Direito Civil no STJ: “o prazo para pleitear a anulação de venda de ascendente para descendente sem anuência dos demais descendentes e/ou cônjuge do alienante é de 2 anos, contados da ciência do ato, que se presume, absolutamente, em se tratando de transferência imobiliária, a partir da data do registro de imóveis”.

Assim, tratando-se de terceiros, o prazo decadencial para pleitear a anulação somente se inicia a partir da respectiva ciência, que se presume com o registro do negócio jurídico perante o Cartório de Imóveis. Confira-se o enunciado 538 na VI Jornada de Direito Civil no STJ: “no que diz respeito a terceiros eventualmente prejudicados, o prazo decadencial de que trata o CC 179 não se conta da celebração do negócio jurídico, mas da ciência que dele tiveram”.

Diante da regra prevista no art. 179 do CC/2002, segundo a qual, quando a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer prazo para se pleitear a anulação, será este de 2 anos a contar da conclusão do ato, verifica-se que o enunciado da súmula 494 do STF considera-se revogado, diante da manifesta incompatibilidade. Confira-se o enunciado 368 na IV Jornada de Direito Civil no STJ: “o prazo para anular a venda de ascendente para descendente é decadencial de dois anos (CC 179)”.

Na exegese do art. 496 do CC/2002, adota-se a orientação de que a alienação onerosa de bem de ascendente a descendente, sem o consentimento dos demais, é ato jurídico anulável, cujo reconhecimento reclama: (i) a iniciativa da parte interessada mediante ação anulatória a ser proposta no prazo decadencial de 2 anos a contar da conclusão do negócio jurídico; (ii) a falta de consentimento de outros descendentes e/ou do cônjuge do alienante; e (iii) a comprovação de simulação com o objetivo de dissimular doação ou pagamento de preço inferior ao valor de mercado (REsp 476.557/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi) ou, alternativamente, a demonstração do prejuízo à legítima (EREsp 661.858/PR, Rel. Ministro Fernando Gonçalves; REsp 752.149/AL, Rel. Ministro Raul Araújo; REsp 953.461/SC, Rel. Ministro Sidnei Beneti; AgRg no AREsp 159.537/PA, Rel. Ministro Antônio Carlos Ferreira).

Nada obstante a inobservância do consentimento dos demais descendentes ou do cônjuge do alienante, caso a venda de ascendente para descendente tenha adotado preço de mercado, e efetivamente tenha havido o pagamento, não se pode decretar a anulabilidade do referido negócio jurídico, diante da ausência do prejuízo (REsp 953.461/SC, rel. Min. Sidnei Beneti; REsp 476.557/PR, rel. Min. Nancy Andrighi).

Neste contexto, o CC/2002 emprestou à simulação o vício de nulidade absoluta, haja vista a gravidade da violação aos mandamentos da confiança e do interesse social nas declarações de vontade, podendo ser utilizada para prejudicar interesses de terceiros (simulação fraudulenta). A simulação é causa de nulidade absoluta do negócio jurídico, insuscetível, portanto, de prescrição ou de decadência, nos termos dos arts. 167 e 169 do CC/2002.

Quando o conteúdo formal do contrato está dissociado da intenção das partes, seja porque o negócio jurídico é inexistente (simulação absoluta), seja porque tem conteúdo diverso do que aparenta (simulação relativa), com o propósito de dissimular a vontade, deparamo-nos com a simulação. Três são os seus atributos: (i) intenção da divergência entre a vontade interna e a declarada; (ii) intuito de enganar e (iii) acordo simulatório. Por não se tratar de vício de consentimento propriamente dito, mas um autêntico vício social, a simulação atrai a tutela de interesse coletivo na higidez e na regularidade das declarações de vontade, motivo pelo qual o CC/2002 a rotula como hipótese de nulidade absoluta (cf. Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery. Instituições de direito civil. São Paulo: RT, vol. 1, p. 313-314).

A regra do art. 496 do CC/2002, segundo a qual o vício decorrente da compra e venda de ascendente para descendente é a nulidade relativa, sujeita ao prazo decadencial de 2 anos, somente se aplica quando se tratar de negócio jurídico direto de ascendente para o descendente. Quando se tratar de venda de ascendente para descendente, por pessoa interposta, entende-se que se aplica a regra do art. 167, §1º, I, do CC/2002, eis que a participação do terceiro visa dissimular o verdadeiro negócio existente entre ascendente e descendente. A mera cadeia de transmissão da propriedade do ascendente para um terceiro, o qual, por sua vez, após algum tempo, transmite ao descendente não é suficiente, por si só, para a configuração da simulação.

Registre-se, por oportuno, que a jurisprudência do STF e do STJ sempre fez a distinção entre a venda direta de ascendente a descendente sem o consentimento dos demais, e a venda de ascendente para descendente, por meio de pessoa interposta, inclusive com a adoção de distintos regimes jurídicos para decretar a invalidação (RE 51.523, rel. Min. Alimoar Baleeiro; REsp 59479/RS, rel. Min. Costa Leite;  REsp 86.489-ES, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar; REsp 151.935/RS, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar; REsp 171637-SP, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar; REsp 226780/MG, rel. Min. Ari Pargendler; AgInt no REsp 1702805/DF, rel. Min. Raul Araújo; REsp 999.921-PR, rel. Min. Luis Felipe Salomão; AgInt no REsp 1702805/DF, rel. Min. Raul Araújo; AgInt no AREsp 1582619/PR, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze). E esse entendimento é adotado pelos tribunais locais (TJDF, AC 0707624-88.2017.8.07.0003; TJMG, AC 100790999950705001; TJPR, APL 00008735320158160163; TJSC AC 00110255820108240020; TJSP APL 1021106-70.2015.8.26.0100).

Portanto, o entendimento adotado pela 3ª Turma do STJ, no julgamento do REsp 1.679.501-GO, contraria frontal e inequivocamente a regra objetiva prevista no art. 167 do CC/2002, como também desprestigia a orientação jurisprudencial tradicional e uníssona do STF e do STJ, proporcionando, a um só tempo, contrariedade à legislação e grande insegurança jurídica.

Ademais, não se pode perder de vista a finalidade da regra do art. 496 do CC/2002 que é a de proteger a igualdade da legítima entre demais descendentes, especialmente contra simulacros praticados no seio da família. Ora, quando o propósito é a de fraudar a lei, com o cometimento de prejuízo a terceiros, o negócio jurídico simulado se aperfeiçoa na surdina ou às escondidas para evitar a conhecimento dos interessados. Por se tratar de vício social com gravidade à coletividade, no que se refere à normalidade e confiança na declaração da vontade nos negócios jurídicos, a interpretação a ser adotada deve ser mais consentânea com a teleologia da norma legal.

A venda de ascendente a descendente, por meio de pessoa interposta, se enquadra na tipificação prevista no art. 167, §1º, I, do CC/2002 (aparentar conferir ou transmitir direitos a pessoa diversa daquela a que realmente se confere ou transfere), atraindo a declaração de nulidade absoluta, de sorte que a ação declaratória de nulidade pode ser ajuizada a qualquer tempo (pretensão imprescritível), tendo como causa de pedir a demonstração de que o contrato celebrado formalmente se dissocia da real intenção que dele se espera, com prejuízo para terceiros, dentro da perspectiva de que o fundamento para que se exija o consentimento dos demais descendentes é o de resguardar a igualdade da legítima.

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Mestre e Doutor pela PUC-SP. Professor da graduação e do Mestrado na UFRN. Advogado.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Então, Marina. Tenho um caso similar ao seu. Estou avaliando a possibilidade de utilizar o REsp nº 999.921 – PR – 4ª Turma – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – DJ 01.08.2011, no meu caso, por conta do recente falecimento do pai do autor. Assim, o prazo decadencial teria início a partir da abertura do inventário. Vê alguma possibilidade de sucesso, Gleydison?

  2. Artigo, perfeito dr. Parabéns. Estou com um caso em que o descedente prejudicado só tomou conhecimento da venda realizada entre seus pais e suas irmãs agora. A transação foi realizada em 1990. Ele nunca soube dessa situação. De acordo com seu artigo e leis vigente ele não conseguirá vitória em uma disputa judicial.

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