sexta-feira, 26/julho/2024
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Rayssa Leal: A fadinha de 13 anos e o trabalho infantil nas Olimpíadas

Os Jogos Olímpicos surgiram na Grécia antiga para homenagear os deuses do Olimpo através de práticas esportivas e, mais à frente, a proposta das Olimpíadas passou a ser a de pregar solidariedade e respeito entre os povos. Com a profissionalização dos jogos o esporte ganhou novas faces, passando a exigir cada vez mais da nova categoria profissional – os atletas, fomentando a competição entre eles e fazendo da atividade, até então apenas de entretenimento, altamente competitiva e cobiçada.

As Olimpíadas de Tokyo 2020 tiveram início no último dia 23, após um ano de atraso em razão da pandemia do covid-19, e já temos notícias de diversos medalhistas olímpicos, entre eles a pequena Rayssa Leal.

Também conhecida como a “fadinha do skate”, Rayssa competiu na cidade olímpica na categoria street e trouxe para o Brasil a medalha de prata já no início dos jogos, se tornando a mais jovem medalhista da história do país, entre homens e mulheres e em todas as modalidades na competição [1].

No ano de 2015, a pequena criança de, à época, 07 anos, viralizou na internet após a divulgação de um vídeo onde ela aparecia realizando manobras diversas em seu skate e com uma roupa nada convencional, uma fantasia de fada. Esse foi o começo da história de sucesso da menina prodígio que, após inúmeros views, surgiu forte na disputa do esporte, ganhando medalhas em torneios nacionais e internacionais.

Hoje, Rayssa está com 13 anos de idade e já é participante das Olímpiadas, competindo como atleta profissional na categoria. Mas, é possível que uma adolescente como a Fadinha esteja nessa posição?

O Estado Democrático de Direito está submetido ao conjunto de leis que o compõe a fim de estabelecer a organização de seu povo e território, observando e garantindo proteção jurídica aos cidadãos, além de promover a segurança individual e coletiva de todos os indivíduos.

Em rápida leitura aos primeiros artigos da Constituição Federal é fácil perceber que a Lei Maior traz como baliza a garantia aos direitos fundamentais, primando pela dignidade da pessoa humana e o bem de todos sem qualquer distinção, afirmando a sua vocação genuinamente democrática.

O Constituinte colocou o esporte como um direito social, devendo ser fomentado pelo Estado, não importando se possui caráter formal ou informal, devendo ser priorizado o esporte-educacional, no momento da distribuição dos  recursos estatais (art. 217).

Os direitos sociais foram elevados ao patamar de direito fundamental e são aqueles que buscam melhorar as condições de uma coletividade, sendo o Estado o ente responsável por salvaguardar esse direito, trazido na Carta Magna em seu art. 6º, que são aqueles “afirmados na Constituição como garantias dos indivíduos e da sociedade diante da força do Estado, seja por estabelecerem esferas de autonomia protegidas contra a ingerência do Estado, seja por definirem obrigações a serem satisfeitas pelo Estado em relação aos indivíduos, seja por assegurarem a participação dos cidadãos na condução da política”, também chamados de direitos sociais. É a própria responsabilidade estatal [2].

O esporte em seus mais diversos ramos – recreativo, competitivo, educacional e profissional – é uma das atividades responsáveis no processo de formação de qualquer ser humano, principalmente em relação a crianças e adolescentes, contribuindo para a formação física e psíquica do indivíduo, além de agregar nas relações interpessoais e no convívio em sociedade.

Atualmente, o esporte é regulamentado no país pela Lei nº 9.615/1998, também conhecida como Lei Pelé, cujo texto traz a diferença entre os ditos esportes formais e aqueles não-formais, além de versar sobre normas técnicas de cada modalidade esportiva, a sua forma e modo de execução.

Em relação aos atletas menores de idade, a Lei Pelé veda a prática do esporte na modalidade profissional até a idade de dezesseis anos completos (art. 44, inc. III), possibilitando que atletas entre quatorze e vinte anos tenham contratos formais para fins exclusivos de bolsa auxílio financeiro a atletas não profissionais, de modo a não gerar vínculos empregatícios entre as partes (art. 29, § 4º), a fim de resguardar a garantia do menor, sendo admitido o trabalho infantil tão somente em situações excepcionais.

Noutro giro, a Constituição Federal assegura ao menor a sua formação como cidadão, resguardando os seus direitos e garantias fundamentais, sendo expressamente proibido o “trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos” (art. 7º, inc. XXXIII), entendimento seguido pela Consolidação das Leis Trabalhistas que considera menor o trabalhador entre quatorze e dezoitos anos (art. 402).

A Organização Internacional do Trabalho através da Convenção nº 138, ratificada pelo Brasil, aduz em seu terceiro artigo a idade mínima para início da atividade laboral, esclarecendo que

“a idade mínima fixada em cumprimento do disposto no parágrafo 1 do presente artigo, não deverá ser inferior à idade em que cessa a obrigação escolar, ou em todo caso, a quinze anos”

tratando de maneira ampla o trabalho infantil e trazendo como exceção a idade de quatorze anos para o início do labor por menores, nos termos do artigo 4 da Convenção [3].

Como é sabido, todos os países que adotam uma convenção têm por obrigação cumprir e fazer cumprir as normas ali estabelecidas, não sendo diferente com a Convenção nº 138, cujos países signatários – e aí o Brasil se inclui – devam lutar pela erradicação do trabalho infantil em todas as suas modalidades, devendo ser observada a idade de ingresso dos menores no mercado de trabalho.

Segundo o texto da Convenção, a situação excepcional que permite os menores de quatorze anos a trabalhar deve ser pautada nos requisitos trazidos pelo artigo 4, quais sejam, países extremamente pobres e com condições de vida precárias e sistemas educacionais e economia totalmente prejudicados, condições essas que devem ser apresentadas de maneira clara e precisa para a redução do limite de idade. O que não é o caso de Rayssa Leal, é claro!

Os direitos da criança e do adolescente estão salvaguardados por uma série de leis que dispensam atenção especial ao menor, lhes fornecendo direitos e colocando o Estado, a sociedade como um todo e a sua família em uma posição/dever de cuidado, devendo lhes garantir o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227, CF).

O texto constitucional reconhece muito além do menor como um simples detentor de direitos fundamentais. Ele reconhece a amplitude do problema e a necessidade de se oferecer meios para fazer valer, de forma prática, as garantias concedidas a criança e ao adolescente, para isso envolvendo o próprio Estado e a família em políticas públicas, sociais e econômicas direcionadas ao menor.

Os Direitos Fundamentais visam assegurar a todos uma existência digna, livre e igual, criando condições à plena realização do ser humano, devendo ser proporcionada pelo Estado Democrático de Direito devendo ter aplicação imediata (art. 5º, CF 88), fazendo valer a sua Constituição e daí a obrigatoriedade de se preservar e proteger a vida de crianças e adolescentes ser um dever de toda sociedade, juntamente com a família e o Estado, agindo de forma positiva a evitar tratamentos desumanos e degradantes contra as mesmas.

Ainda na ideia de proteção, foi criado o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, que confere amparo a criança e ao adolescente e cujo texto define como criança o menor de até doze anos incompletos e adolescente aquele compreendido entre doze e dezoito anos de idade (art. 2º), bem como afirma a proibição de qualquer trabalho ao menor de quatorze anos, salvo na condição de menor aprendiz (art. 60).

Mas e no caso de Rayssa Leal, há a exploração do trabalho infantil? A skatista poderia estar “trabalhando” nas Olimpíadas?

Como dito alhures, a capacidade laborativa no Brasil somente é legalmente aceita se o indivíduo tiver, no mínimo, 16 anos, ou, em sede de exceção, 14 anos, desde que na qualidade de menor aprendiz, ou caso contrário, estaria sendo violado preceitos constitucionais.

É preciso deixar claro que estamos diante de duas situações distintas no caso da Fadinha do skate: participar de uma competição enquanto menor de idade e participar de uma competição enquanto menor de idade na qualidade de atleta com vínculo profissional.

Segundo Jorge Kuge, skatista da primeira geração no Brasil, há muito é possível ver crianças e adolescentes competindo em campeonatos diversos, não sendo situação inédita a ocorrida nas Olimpíadas – não só com Rayssa – para os que acompanham o dia a dia da modalidade. Kuge aduz que esse cenário existe desde os anos 80, porém com menor intensidade e que

“nada disso é novidade. Essas crianças de hoje obtêm muito mais destaque do que no passado devido à grande exposição na mídia nesse ciclo olímpico.

(…)

Partindo do pressuposto que para as crianças o skate é um brinquedo, não existe idade para começar, tudo vai do talento e da habilidade de aprender e executar as manobras. Desafiar a gravidade e trabalhar com a força centrífuga é diversão pura no Park, todos os dias nascerá um novo talento, é um processo natural de renovação”.

Já o veterano César Gyrão, expõe o outro lado da profissionalização e explica que entrar cada vez mais cedo no esporte é fator preponderante para se ter crianças e adolescentes nos pódios, no entanto, em contrapartida, esses menores estão sendo submetidos a pressões quando não deveriam:

“Isso tem criado competidores muito cedo. Crianças têm que brincar, não serem submetidas a intensos treinamentos. A tendência chegou ao skate. Vejo com reservas esses fenômenos, como as meninas do Park do Japão. Sim, é legal ver o que conseguem fazer sobre um carrinho, mas sabemos que algumas são submetidas a pressões enormes”.

Trabalho é definido pelo Dicionário Online de Português como “responsabilidade” ou “conjunto das atividades realizadas por alguém para alcançar um determinado fim ou propósito”, ou seja, o atleta que pertence a equipes profissionais exerce, portanto, um trabalho, uma vez que os seus treinos pré-estabelecidos, compromissos em relação aquela atividade e mesmo uma competição, tem por objetivo um determinado fim, sendo todos esses compromissos, atividades e ações do indivíduo determinadas e, em contrapartida, remuneradas [5].

Bem verdade que o cenário dos atletas mirins em competições no mundo afora traduzem questões delicadas e cheias de pormenores que devem ser analisados minunciosamente antes de se chegar a qualquer conclusão. É preciso saber diferenciar o que é trabalho e o que é diversão e até que ponto aquele esporte que, até então servia tão somente como entretenimento, se “adultizou”, ganhando ares de responsabilidade e deixou de ser apenas uma “brincadeira de criança” para se tornar, de fato, o trabalho do menor.

É muito comum vermos reportagens e entrevistas em que os atletas, ao contar as suas histórias, relatam que a prática em determinado esporte começou como uma simples brincadeira, não sendo levada a sério e, de repente, passou a ser a fonte de renda sua e de sua família ao tornar-se profissional no ramo. Embora não exista nenhum regimento legal que proíba essa prática, muitas vezes os relatos de crianças e adolescente chamam atenção para o trabalho infantil transvestido de diversão esportiva.

A Lei Pelé trata do atleta em formação, reconhecendo o desporto educacional, de participação, de formação e de rendimento, sendo este último dividido em modo profissional (caracterizado pela remuneração pactuada em contrato formal de trabalho entre o atleta e a entidade de prática desportiva) e modo não-profissional (identificado pela liberdade de prática e pela inexistência de contrato de trabalho, sendo permitido o recebimento de incentivos materiais e de patrocínio) (art. 3º).

A legislação considera em formação o indivíduo dos quatorze aos vinte anos de idade e veda a contratação profissional de menores de dezesseis anos, como forma de manter a criança e o adolescente afastados da rigidez e pressão a alta performance e rendimento a que são submetidos os atletas profissionais, assegurando a sua formação enquanto atleta de forma segura e em respeito aos direitos da criança e do adolescente.

Embora tenhamos as mais diversas legislações como forma de proteger o menor, sabemos que aqueles que estão envolvidos no processo de formação do atleta profissional – e aqui digo desde os comitês federais, passando pelos treinadores, patrocinadores e por fim pais e familiares – em sua grande maioria são engolidos pelo ideal desesperado de troféus, medalhas, recordes e a necessidade desenfreada de bater metas e testar todos os limites do atleta o que, é claro, afasta a ideia de o esporte enquanto formador físico e psíquico da criança e do adolescente e o eleva ao patamar de ferramenta de trabalho, obrigações e, em casos mais extremos, de tortura.

Não é preciso ser especialista no assunto para saber que existem muitas maneiras de burlar a legislação. Não estou aqui induzindo o leitor a entender que é esse o caso da pequena Rayssa Leal, de forma alguma. Mesmo porque, não há como trazer questões, sobretudo em formato de afirmação, de que a mais nova medalhista olímpica esteja imersa neste cenário quando não se conhece a fundo a sua rotina enquanto estudante, filha, adolescente e, finalmente, skatista.

O que quero levantar aqui, em verdade, é sobre as mais diversas maneiras encontradas para burlar a legislação e fazer do desporto edcucacional uma atividade profissional maquiada de “brincadeira de criança”. Isso porque, não é preciso assinar um contrato profissional para que a realidade daquele menor seja, de fato, igual a de um atleta profissional.

Quantas histórias de atletas menores que, mascarado pela ideia contida no inc. II do art. 3º da Lei Pelé (“de modo não-profissional, identificado pela liberdade de prática e pela inexistência de contrato de trabalho, sendo permitido o recebimento de incentivos materiais e de patrocínio”) treinam como profissionais, têm responsabilidades iguais a de um profissional, cumprem horários e determinações tal qual um profissional, seguem ritmos intensos de rotinas de um profissional, mas não tem um contrato profissional escrito e agem – para os olhos da sociedade e do Estado – como se tivessem total liberdade de prática do esporte e, apenas, recebessem incentivos mediante patrocínios?

No cenário real existem entidades, treinadores, patrocinadores e comissões técnicas que, na teoria, promovem o esporte de formação, mas na realidade exploram o atleta tal qual fosse a modalidade de desporto de rendimento, o que lá atrás, em 2009, já foi levantado em outras discussões:

“Embora a condição de exploração do trabalho infantil não pareça tão evidente diante da complexidade estrategicamente construída pelos falaciosos símbolos de acesso universal ao consumo, mantidos e criados pelo espetáculo midiático do cotidiano, a realidade das crianças e adolescentes explorados no trabalho continua sendo a da família operária trabalhadora empobrecida, da família-sem-cidadania, escrava da alienação e dos desejos de consumo, ícone da falsa emancipação na sociedade moderna”[6].

Noutro giro, agora trazendo para o cenário olímpico atual, as Olimpíadas de Tokyo não trouxeram limite etário para a modalidade em que Rayssa Leal competiu, o street skate. Diferentemente da ginástica, por exemplo, cuja idade mínima para disputar a competição olímpica é de dezesseis anos no feminino e dezoito no masculino, ambos completados até o fim do ano olímpico. Contudo, em se tratando do skate, não há idade mínima até então, no entanto, muito tem se falado entre os corredores olímpicos e nas confederações dos países que os próximos Jogos Olímpicos serão marcados por essa mudança, sendo imposto idade mínima para o atleta competir.

É preciso estarmos atentos as normas vigentes, a fim de garantir a formação do ser humano, para que a criança e o adolescente tenham seus direitos fundamentais respeitados, não sendo inseridos prematuramente no mercado de trabalho, ainda que na seara esportiva. E em razão disso algumas questões são levantadas e devem ser observadas, não só no caso Rayssa Leal, como também para qualquer outro atleta menor de idade que esteja em viés de competições profissionais, a exemplo das aqui levantadas.


REFERÊNCIAS:

[1] Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/esportes/2021/07/rayssa-leal-conquista-prata-skate-mais-jovem-medalhista/. Acesso em: 26/07/2021.

[2] CANALLI, Rodrigo. Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade. STF Educa Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade – Turma 3. 2020.

[3] Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho. Disponível em: http://www.tst.jus.br/documents/2237892/0/Conven%C3%A7%C3%A3o+138+da+OIT++Idade+m%C3%ADnima+de+admiss%C3%A3o+ao+emprego. Acesso em: 26/07/2021.

[4] Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/radicais/ultimas-noticias/2019/09/22/criancas-invadem-a-cena-do-skate-e-assumem-o-protagonismo-dos-adultos.htm. Acesso em: 27/07/2021.

[5] Dicionário Online de Português. Disponível em: https://www.dicio.com.br/trabalho/. Acesso em: 27/07/2021.

[6] Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-do-trabalho/a-exploracao-do-trabalho-infantil-e-os-direitos-dos-atletas-mirins/amp/. Acesso em: 27/07/2021.

 

Advogada atuante nas áreas Trabalhista, Cível e Consumerista.
Graduada em Direito pela Universidade Católica do Salvador - UCSal.
Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Católica do Salvador - UCSal.
Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes - UCAM.
Sócia no Ricardo Xavier Sociedade de Advogados (Salvador-BA).
Administradora do perfil do Instagram @advocacia.artesanal.
Mentora para a 1ª fase do Exame de Ordem.

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