sábado, 27/julho/2024
ColunaTrabalhista in focoA empregada gestante e a pandemia

A empregada gestante e a pandemia

Coordenação: Francieli Scheffer H.

 

A proteção à maternidade é um direito social fundamental previsto no art. 6º, caput, da Constituição Federal de 88. Um pouco à frente o constituinte estruturou ao menos dois caminhos compulsórios para proteção à maternidade: a previdência social: art. 201, inciso I; e a assistência social: art. 203, inciso I.

Nesse modelo constitucional, inspirado no estatuto das liberdades após o término da 2ª Guerra Mundial, além da garantia das liberdades ditas negativas, a gestante tem direito à liberdades positivas, através de ações afirmativas do Estado, responsável por ofertar serviços de assistência social destinados a proteção à maternidade, consoante estatuem, a título de exemplo, o inciso VI do art. 208 da Lei nº 8.069/90, os art. 2º, inciso I, alínea “a”, e art. 6º, § 1º, da Lei nº 8.742/93 e o art. 2º, § 1º, inciso III, da Lei nº 14.284/2021.

Disso decorre que o modelo de toda e qualquer legislação infraconstitucional deve orientar-se à promoção e à realização da proteção à maternidade. Na interpretação desses estatutos jurídicos deve preponderar os aspectos finalísticos, sistêmicos e sociológicos que envolvem a proteção à maternidade.

No âmbito da relação jurídica de emprego, a proteção à maternidade ganha elevada importância, dado que a gravidez e o emprego são dois fatos jurígenos necessariamente interativos e de extrema relevância à ordem social brasileira.

Inúmeros são os exemplos de regras e princípios salvaguardando a proteção à maternidade na relação jurídica de emprego.

No âmbito internacional, das três convenções (3, 102 e 183) da Organização Internacional do Trabalho destinadas à tutela da maternidade, duas delas (3 e 103) foram ratificadas pelo Brasil, integrando o ordenamento jurídico brasileiro. Para alguns, as convenções da OIT seriam equivalentes à lei ordinária; para outros, em razão do que dispõe o § 2º do art. 5º da CF/88, teriam natureza constitucional automática; e, para muitos, em função da matéria tratada nestas convenções, quando aprovadas em regime bicameral no Congresso Nacional, em dois turnos, por 3/5 dos membros, segundo o § 3º do art. 5º da CF/88, seriam elas equivalentes às emendas constitucionais.

A alínea “b”, do inciso II, do art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias garante a proibição da extinção imotivada do contrato de emprego da gestante desde a concepção até cinco meses após o parto.

A Lei nº 8.213/91 (art. 71 e seguintes) prevê o ‘salário-maternidade’ para empregada gestante, em regra, durante 120 dias, com início no período entre o vigésimo oitavo dia antes do parto e a ocorrência deste, hipótese em que o contrato de emprego ficará suspenso.

A Lei nº 14.284/2021 (art. 4, inciso II, § 2º) e o Decreto nº 10.852/2021 (art. 22, inciso II, § 6º) disciplinam o pagamento do ‘Benefício Composição Familiar’, aplicado à empregada gestante com idade entre 18 a 21 anos incompletos, desde que preenchidos os outros requisitos normativos.

A Seção V do Capítulo III do Título III da Consolidação das Leis do Trabalho traz inúmeras regras destinadas à proteção da maternidade da empregada gestante, dentre as quais, o art. 394-A, impondo o afastamento da gestante do meio ambiente de trabalho insalubre, sem prejuízo da remuneração, durante o período de gestação e de lactação. Trata-se de uma preocupação do legislador com a exposição da empregada gestante às atividades que – por sua natureza, condições ou métodos de trabalho – a exponha a agentes nocivos à saúde.

Com a pandemia instaurada pelo coronavírus, conquanto não necessariamente em função da caracterização do meio ambiente de trabalho como insalubre – à exceção daquelas funções destinadas aos cuidados de pacientes infectados pela covid-19, em que a insalubridade é caracterizada em grau máximo pelo Anexo 14 da NR 15 –, foi instaurado no Brasil um risco generalizado à população de trabalhadores, induvidosamente específico e potencializado à empregada gestante, em todo e qualquer tipo de trabalho realizado de forma presencial.

A Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, ao dispor sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, nada trouxe à empregada gestante. A Medida Provisória nº 927, de 20 de março de 2020, também, nada disciplinou sobre a empregada gestante e o trabalho. A Medida Provisória nº 936, de 1º de abril de 2020, trouxera hipóteses de suspensão do contrato de emprego e de redução proporcional da jornada e salário, entretanto, em nada específicas a proteção à maternidade.

Desde o Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, responsável por reconhecer a ocorrência do estado de calamidade pública em função do coronavírus, o primeiro ato normativo específico para proteção à maternidade ocorrera com a Lei nº 14.151, de 12 maio de 2021 ao determinar o afastamento da empregada gestante do trabalho presencial, sem prejuízo da remuneração, durante a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do novo coronavírus.

Desde a primeira redação da Lei nº 14.151/2021, quando possível a alteração do contrato de emprego para que a prestação de serviços presencial passe ao teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho a distância, essa condição fica autorizada ao empregador, sem que se possa caracterizar como lesiva a alteração contratual.

Todavia, quando for incompatível a prestação de serviços não presencial pela empregada gestante, ao menos duas questões polêmicas foram trazidas pela Lei n º 14.151/2021.

A primeira, sobre a distinção entre ‘estado de calamidade pública de âmbito nacional’ e o ‘estado de emergência de saúde pública de âmbito nacional’. O estado de calamidade pública de âmbito nacional pelo coronavírus é objeto do Decreto Legislativo nº 6/2020, tendo sido delimitado até o dia 31.12.2020. Já o estado de emergência de saúde pública de âmbito nacional foi declarado na Portaria nº 188, de 3 de fevereiro de 2020, pelo Ministério da Saúde, por prazo indeterminado. Desse modo, até a edição de um ato normativo revogando o estado de emergência de saúde pública, toda e qualquer empregada gestante deve ser afastada do trabalho presencial, sem prejuízo da remuneração.

A segunda, ao impor a manutenção da remuneração da empregada gestante sem a correspondente prestação de serviços e sem indicar se o fato consistiria uma hipótese de suspensão ou interrupção do contrato de emprego. No que atine a remuneração da empregada gestante durante o afastamento previsto na Lei nº 14.151/2021, o silêncio da referida lei sobre a natureza deste afastamento e a responsabilidade pelo pagamento da remuneração indica que ela necessita ser integrada e compatibilizada com as regras normativas sobre a interrupção e suspensão do contrato de emprego.

Existem inúmeras decisões judiciais, no âmbito da Justiça Comum Federal, interpretando que o afastamento tratado na Lei nº 14.151/2021 seria enquadrado como salário-maternidade, enquanto perdurar o afastamento compulsório em decorrência do estado de emergência de saúde pública. A ratio decidendi desse tipo de decisão judicial, via de regra, considerando a omissão da Lei nº 14.151/2021 sobre a responsabilidade do pagamento da remuneração da gestante, funda-se numa interpretação analógica do § 3º do 394-A da CLT, o qual prevê que quando não for possível que a gestante ou a lactante afastada do trabalho insalubre exerça suas atividades em local salubre, a hipótese será considerada como gravidez de risco e ensejará a percepção de salário-maternidade, nos termos da Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991.

Dito de outro modo, as decisões judiciais integram o § 3º do 394-A da CLT à Lei 14.151/2021 no ponto em que esta é omissa sobre quem será o responsável pela remuneração da empregada gestante afastada do trabalho.

Em sentido um pouco diferente, creio que por ter a Lei 14.151/2021 considerado que o trabalho presencial é um risco objetivo e específico de âmbito nacional à toda e qualquer gestação, independentemente de o meio ambiente de trabalho presencial ser ou não salubre, o enquadramento que melhor define a suspensão do contrato de emprego nessa hipótese seria o recebimento do auxílio-doença nos ambientes salubres, em função de uma caracterização de risco objetivo à gravidez da empregada durante o estado de emergência em saúde pública de importância nacional em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus.

Não seria o caso, portanto, de analogia, mas de aplicação da norma previdenciária que disciplina o afastamento do empregado do trabalho em razão de uma incapacidade cuja causa é estranha ao contrato de emprego.
De acordo com o art. 59 da Lei 8.213/91, o auxílio-doença será devido ao segurado que, havendo cumprido, quando for o caso, o período de carência exigido nesta Lei, ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de quinze dias consecutivos. Uma dificuldade aparente seria a necessidade de demonstrar o preenchimento do período de carência previdenciária, contudo, segundo o inciso II do art. 26 da mesma lei, independe de carência o auxílio-doença em razão de fator que lhe confira especificidade e gravidade que mereçam tratamento particularizado.

O estado de emergência em saúde pública de importância nacional em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus – declarado pelo Ministério da Saúde na Portaria nº 188, de 3 de fevereiro de 2020 – e o afastamento compulsório da empregada gestante do trabalho presencial – determinado pela Lei 14.151/2021 – são fatores que conferem especificidade e gravidade para o tratamento do auxílio-doença da empregada gestante sem a necessidade de carência previdenciária.

Desse modo, nos termos do art. 59 da Lei 8.213/91, comprovada a gravidez da empregada durante o contrato de emprego realizado em meio ambiente de trabalho salubre e sendo impossível a prestação de serviços à distância, o empregador seria responsável pela remuneração dos primeiros quinze dias de afastamento, o contrato de emprego ficaria suspenso e a partir do décimo sexto dia a trabalhadora receberá o benefício previdenciário denominado auxílio-doença.

O pagamento do salário-maternidade na hipótese tratada no § 3º do 394-A da CLT só seria aplicável à empregada gestante em local insalubre. E, neste ponto, digno de registro que, segundo o Anexo 15 da NR 15, a atividade laboral destinada ao tratamento de pessoas infectadas pelo coronavírus é considerada insalubre, pois implica no contato direto, habitual ou intermitente do trabalhador com pacientes portadores de doenças infectocontagiosas.

Por fim, é preciso atentar que a Lei 14.311, de 9 de março de 2022, vigente desde o dia 10/03/2022, alterou a Lei 14.151/2021 para redisciplinar o afastamento da empregada gestante, inclusive a doméstica, não imunizada contra o coronavírus das atividades de trabalho presencial quando a atividade laboral por ela exercida for incompatível com a sua realização em seu domicílio, por meio de teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho a distância.

A partir de então, o afastamento da empregada gestante do trabalho presencial é desnecessário nas seguintes hipóteses:
i) encerramento do estado de emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do coronavírus;
ii) vacinação completa da empregada gestante, segundo regras do Ministério da Saúde;
iii) trabalho realizado a distância (domicílio, teletrabalho ou trabalho remoto);
iv) opção individual pela não vacinação contra o coronavírus, mediante termo responsabilidade específico sobre esta escolha, sobre o consentimento para exercício do trabalho presencial e sobre o comprometimento em cumprir todas as medidas preventivas adotadas pelo empregador.

Apresentando-se incompatíveis todas as sobreditas hipóteses, o caminho será o afastamento compulsório da empregada gestante, sem prejuízo da sua remuneração, caracterizando-se a suspensão do contrato de emprego para recebimento de auxílio-doença ou salário-maternidade, conforme o caso.

Leonardo H. Berkembrock

Possui graduação pela Universidade Paranaense (2009), laureado com o título de "Melhor Aluno do Curso de Direito". Curso Pós-Graduação Lato Sensu: MBA em Direito Civil e Processo Civil, pela Fundação Getúlio Vargas. Curso Pós-Graduação Lato Sensu em Direito e Processo Eleitoral pela União das Escolas Superiores Rondonienses. Curso Pós-Graduação Lato Sensu: MBA em Direito: Trabalho e Processo do Trabalho, pela Fundação Getúlio Vargas. Mestrando em Direito das Relações Sociais e Trabalho pelo Centro Universitário - UDF. Advogado. Fundador e sócio-administrador do escritório de advocacia DallAgnol e Berkembrock Advogados Associados. Professor de Direito do Trabalho.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Amigos, apenas uma correção, onde se lê “Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2010” o correto é Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.

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