sexta-feira,19 abril 2024
ColunaBioéticaA bioética em consonância com a Transsexualidade

A bioética em consonância com a Transsexualidade

 

No último dia 29/01, foi “comemorado” o dia da visibilidade Trans e Travesti. A famigerada comunidade “T” da sigla LGBTQIA+. Dentre elas, estão inclusos, os Transsexuais, Transgêneros, pessoas não-binárias ou gênero-dissidentes.

Aproveitando a onda e surfando na fama do “BBB”, reality show da rede Globo que detém um dos maiores números de adoradores ou abominadores dentro dos reality shows, o programa apresenta nesta edição de 2022, uma participante que se determina travesti. Linn da quebrada, ou Lina Pereira, cantora e compositora, atriz, com vários prêmios em seu currículo profissional, proporcionou e vivenciou situações e questões nas primeiras semanas de confinamento que colocaram os espectadores do programa para pensar, ponderar e refletir.

A começar pela forma de tratamento, o pronome “ELA”, estampado em sua testa para todos verem e que trouxe confusão e dificuldades de aceitação pelos outros participantes e o público em geral. Lina, conforme explicou em uma transmissão ao vivo em rede aberta, tatuou o pronome “ELA”, em tamanho considerável, logo acima de sua sobrancelha esquerda, para orientar sua mãe, quando decidiu assumir sua orientação sexual a não se confundir e errar a forma de tratamento que gostaria que se referissem a ela. Tem também, a palavra “nem” tatuada na bochecha direita, que, segundo informações[1], a intenção é se afirmar como travesti. Nem homem, nem mulher. Travesti, demonstrando novamente o seu papel em se autoafirmar como uma classe que necessita de visibilidade e respeito. Outras tatuagens da participante também surgem com significados, mas deixaremos para um outro momento a relação da tatuagem com a necessidade de demonstração e almejar um objetivo perante a sociedade.

Acompanhando o desenrolar dos primeiros dias do programa, em uma festa rotineira dos confinados, um beijo cinematográfico trocado entre Lina e a participante Maria, que deveria indicar um momento de felicidade, troca de afeto e descontração, resultou em uma crise de consciência e choro por se permitir vivenciar o momento.

De acordo com o Dicionário Online de Português, a palavra “trans”[2] tem o seguinte significado:

Trans:

Significado de Trans: substantivo – Prefixo que indica através; além de.

Definição de Trans: Classe gramatical: adjetivo de dois gêneros e dois números e substantivo masculino de dois números.

Separação silábica: trans.”

Partindo dessa premissa, podemos entender que as pessoas que se sentem acolhidas por quaisquer designações da letra “T”, pertencente a sigla LGBTQIA+, partem do princípio de não se identificar com seu gênero de nascimento. Gênero este, que se ressalta, não tem a ver com preferência sexual. A preferência sexual fala sobre o que a pessoa gosta em outros, o que a atrai enquanto ser humano e relacionamentos interpessoais afetivos, enquanto que o gênero sexual, fala como a pessoa se vê consigo mesma.

Conforme ensina o dicionário, a palavra Trans detém o significado daquele que vai além, através, transmuta. Que brinca na vida real de não esconder seus sentimentos, suas vontades, preferências visões. Acontece que essa brincadeira, que deveria ser leve, respeitada e aceita pela sociedade, não encontra o amparo que deveria.

Lina, teve uma crise de choro momentos após se permitir trocar um beijo com uma participante binária, do gênero feminino, “padrão”. E sentiu o peso que carrega estando exposta para tantos expectadores assistirem, acolherem, apontarem, julgarem. Sem ter ideia de como um simples beijo pode repercutir, chorou, e expôs ao mundo uma pequena fração do que ela e suas companheiras carregam de história.

Em outro momento do programa, onde os participantes deveriam escolher seu “pódio dos sonhos”, Lina se viu excluída de todos os pódios. Participantes próximos ou não, nenhum deles a incluiu no patamar de vencedora. Isso fez com que, novamente, o peso de sua posição, pudesse ser explicitada em atos.

Lina carrega consigo, uma comunidade inteira que sofre o preconceito, que trás consigo portas fechadas, oportunidades perdidas, caminhos que se interrompem no momento em que se rebelam contra os sentimentos que, via de regra, deve ser encoberto e assumem ser o que sentem, coisa que deveria ser tão simples e cotidiana.

No país que mais mata Travestis e Transsexuais no mundo[3], Lina é o exemplo de força e sorte para ter conquistado respeito e “glamour”. Por estar tendo a visibilidade que tantas gostariam de expor, vivenciar e desfrutar, porém vivem às sombras e em caminhos obscuros e cruéis.

Apesar de poder vivenciar tal “fama”, o peso de carregar toda uma comunidade segregada nas costas, se faz a cada momento, conversas aleatórias, troca de afinidades ou lágrimas de medo.

E o que isso tem a ver com a Bioética?

Nos anos 20, Fritz Jahr mencionou a Bioética pela primeira vez, com o intuito de integrar obrigações éticas aos seres humanos. Após isso, apenas em 1971, o Professor Van Rensselaer Potter voltou a mencionar o assunto, desta vez em seu livro “Bioethics: bridge to the future”, já com a ideia de conhecimentos biológicos através da ética para sobrevivência da humanidade. Como podemos notar, o termo ainda se encontra em seus primeiros passos de evolução e muito por conta disso, o desconhecimento sobre o assunto permeia as pessoas de uma forma geral.

Em que pese o termo Bioética, estar ligado principalmente a questões éticas de discussões complicadíssimas como início e terminalidade da vida, aborto, fertilização e novas tecnologias envolvidas com as áreas da saúde e biológicas, não podemos esquecer as bases norteadoras estabelecidas, quais sejam, Beneficência, Não-maleficência, Autonomia e Justiça.

Apesar das questões acima mencionadas serem de extrema relevância e que necessitam de constantes discussões, visto a rápida evolução das tecnologias que podem ferir princípios éticos, não podemos esquecer que a maioria dos avanços tecnológicos, sejam relacionados à área da saúde ou biológicas, acontecem em um nicho pequeno de países com maior potencial econômico, porém os demais países, necessitam resolver questões que estão diretamente ligadas aos princípios bioéticos e devem ser debatidos e estabelecidos limites e condições necessárias para se concretizarem ações e parâmetros éticos sociais e que, assim como a clonagem humana, a fertilização in vitro, a vacinação contra as novas epidemias e pandemias, devem ter seu espaço para discussão.

Lina, trás consigo, a oportunidade e a abertura da questão para conversas, discussões e debates entre as pessoas leigas, entre os estudiosos da causa LGBTQIA+, entre os estudiosos da Bioética. A participação de uma mulher travesti em um programa televisivo de enorme repercussão, possibilita que a discussão sobre a visibilidade, o preconceito e o cerceamento de direitos sejam revistos e a visão social que reduziu a comunidade “T” a prostituição, drogas e morte, possa ver que são seres humanos, que merecem, através de sua autonomia, terem justiça para progredir como seres humanos assim como todas as outras comunidades.

Através de Lina e suas lágrimas, sua dificuldade de aceitação, muitas vezes tendo que se impor de forma desagradável, o preconceito pode ir rachando e dando lugar ao acolhimento.

No caso em que mencionamos, o apresentador do programa Tadeu Schmidt, de forma muito delicada e respeitosa, soube conduzir a questão e sem expor de forma desagradável, abordou a necessidade de se tratar a participante de forma justa, respeitosa e natural, como deveria ser com qualquer outro “T”, coisa que pelas estatísticas, sabemos que está longe de ser aceito ou reconhecido.

Enfim, concluo, ante uma finalização, uma provocação para a reflexão de como podemos trabalhar como sociedade para que um beijo não cause lágrimas, ou para que um pronome não seja necessário uma tatuagem de forma a impor o respeito.


[1] Disponível em: Quem é Anastácia, símbolo de resistência negra que estampou camisa de Linn da Quebrada no BBB 22 – VIX

[2] Disponível em: Trans – Dicio, Dicionário Online de Português

[3] Disponível em: Brasil é o país que mais mata pessoas trans; 175 foram assassinadas em 2020 – 29/01/2021 – UOL Universa

Adriana Geffer de Oliveira

Graduada em Direito pela Universidade de Sorocaba/SP (UNISO), pós-graduada em Bioética pela Universidade de Lisboa/PT, membro da Comissão de Direito Médico e da Saúde OAB/Sorocaba, membro da Comissão Especial de Estudos sobre Perícias Forenses OAB/SP, autora de artigos em obras coletivas, estudiosa e atuante em Direito a Saúde e Bioética.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Amei o artigo, ideias muito bem construídas e empregadas. Muito informativo e necessário para a nossa sociedade. Parabéns!!!

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