quarta-feira, 8/maio/2024
ColunaPapo JurídicoLiberdade religiosa em tempos de pandemia

Liberdade religiosa em tempos de pandemia

No Estado de Bem-estar social, este assegurado pelo constituinte quando da promulgação da Constituição, há firmado expressamente o compromisso do ente estatal em garantir a proteção à dignidade da pessoa humana, buscando tutelar os direitos fundamentais, sejam eles individuais, sejam eles sociais. A essência de proteção é a mesma, contudo, apesar de conectados entre si e darem a sensação de serem semelhantes, é necessário diferenciá-los.

Os direitos individuais como o próprio nome sugere, são aqueles inerentes ao indivíduo, ligado ao conceito da pessoa humana e sua personalidade. É o direito à vida, à liberdade, à intimidade, etc.

Já os direitos sociais, são os que buscam melhorar as condições de uma coletividade, sendo o Estado o ente responsável por salvaguardar esse direito, tais como direitos trabalhistas, o direito à saúde, à previdência social, etc. Segundo a magistrada Oriana Piske de Azevedo Magalhães Pinto, é

“o conjunto das pretensões ou exigências das quais derivam expectativas legítimas que os cidadãos têm, não como indivíduos isolados, uns independentes dos outros, mas como indivíduos sociais que vivem, e não podem deixar de viver, em sociedade com outros indivíduos” [1].

A Constituição Federal eleva a liberdade religiosa ao patamar de direitos fundamentais na Lei Maior, o que significa dizer que, assim como o direito à saúde, à dignidade, à alimentação, a promoção da defesa da crença religiosa deve ser vista como sendo um direito fundamental, passando a ser dever do Estado promovê-lo, respaldado nos princípios da pessoa dignidade humana e da laicidade estatal.

É o que se depreende da do art. 5º, inc. VI da Carta Magna, que, sendo um direito imprescritível e inalienável, confere a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país a

“liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” [2].

Imagino que qualquer cidadão brasileiro, em algum momento da vida, já ouviu falar que o Brasil é um Estado laico.

Basicamente, entende-se como Estado laico aquele em que o poder estatal não adota uma religião oficial para o país e não interfere na crença religiosa dos indivíduos, que são livres para escolher e adotar uma religião ou mesmo se declarar ateu (não acredita em Deus/Deuses) ou sem religião específica.

Diante da pandemia e em virtude da necessidade de garantir e preservar a saúde da população as diretrizes e medidas de proteção a que todos se submeteram, a exemplo das restrições de circulação, quarentena e isolamento social, interromperam significativamente as atividades econômicas e sociais.

Cenário que se apresentou até o 2º semestre de 2020 quando as autoridades, na tentativa de voltar à normalidade, dentro do que se entende como normal em um cenário pandêmico, permitiram que as normas de proteção, antes mais severas, fossem pouco a pouco regredindo, a fim de que o funcionamento da sociedade voltasse ao estado anterior. E, dentro dessa maleabilidade, foi permitido o retorno gradual das atividades de inúmeros profissionais, além de encontros sociais e celebrações religiosas.

O resultado, um ano depois da decretação da pandemia, é desesperador. Os especialistas já nos alertavam para uma segunda onda de contaminação, fato que se concretizou e desencadeou o aumento significativo de casos confirmados da doença, recorde no número de mortes diárias e a descoberta de variantes mais agressivas da Covid-19.

Diante disso, inúmeros estados deram um passo para trás e apertaram as medidas restritivas, determinando lockdown, toque de recolher e proibição de diversas atividades que não fossem consideradas essenciais, dentre elas a proibição da celebração de missas e cultos religiosos, o que impactou diretamente no direito fundamental à liberdade religiosa, tendo em vista que os indivíduos foram proibidos de se encontrarem em templos e igrejas, a fim de evitar aglomerações e seguir as orientações e recomendações para conter o avanço do vírus.

O direito à liberdade religiosa como direito fundamental é importante ao desenvolvimento do indivíduo, posto que assegura a dignidade cabível a cada ser humano, seja individualmente, seja na convivência em sociedade, sendo dever do Estado ofertar mecanismos que assegurem e concretizem o cumprimento desses direitos e, por conseguinte, das imposições constitucionais.

Deveras, os direitos fundamentais não possuem caráter absoluto como muito se imagina, sendo possível a sua suspensão e/ou restrição em momentos críticos atravessados pelo Estado, com o intuito de preservar e se alcançar o Bem Comum. Contudo, existem direitos fundamentais invioláveis mesmo em períodos de extrema crise, onde em hipótese nenhuma poderão sofrer qualquer suspensão e/ou restrição e, em havendo, ensejaria violações que vão de encontro ao mínimo indispensável ao homem, sendo um deles os direitos humanos (dignidade da pessoa humana, saúde, alimentação, etc.).

Diante disso, é possível suprimir – ainda que parcialmente – o direito à liberdade religiosa?

No último dia 03, em decisão liminar da ADPF 701 MG, o Ministro Nunes Marques determinou que estados e municípios se abstenham de proibir completamente a realização de celebrações religiosas presenciais, por motivos ligados à prevenção da Covid19, argumentando que

“A proibição categórica de cultos não ocorre sequer em estados de defesa (CF, art. 136, § 1º, I) ou estado de sítio (CF, art. 139). Como poderia ocorrer por atos administrativos locais? Certo, as questões sanitárias são importantes e devem ser observadas, mas, para tanto, não se pode fazer tábula rasa da Constituição.

(…)

Daí concluo ser possível a reabertura de templos e igrejas, conquanto ocorra de forma prudente e cautelosa, isto é, com respeito a parâmetros mínimos que observem o distanciamento social e que não estimulem aglomerações desnecessárias.

Entendo por demais gravosa a vedação genérica à atividade religiosa, da forma como prevista em parte dos diplomas objeto da presente ação, traduzindo-se em medida atentatória a preceito fundamental consubstanciado em liberdade religiosa.[3]”

Segundo o Ministro, justamente por estarmos vivendo momentos difíceis, é que se faz possível e plausível encaixar a atividade religiosa como essencial por proporcionar acolhimento e conforto espiritual aos devotos, bem como em razão do caráter filantrópico das diversas instituições religiosas que, muitas vezes, fornecem alimento e moradia a necessitados.

A decisão proferida por Nunes Marques se deu no pior momento da pandemia, onde os índices de agravamento da crise do coronavírus, agora com a presença de novas cepas do vírus, e o maior registro de mortes por dia, fizeram com que o Brasil ocupasse o triste e lamentável terceiro lugar em número de casos de infecções em todo o mundo, segundo dados da OMS – Organização Mundial de Saúde [4].

Importante lembrar que os direitos previstos na Carta Magna são resultados de uma demanda social e democrática, expressos através de movimentos sociais em busca de uma sociedade justa, livre e solidária e de proteção aos direitos fundamentais nela elencados, que não permite, mesmo nos casos de decretação de Estado de Calamidade Pública, que qualquer legislação infraconstitucional mitigue os direitos fundamentais.

Ocorre que, o reconhecimento e a decretação de estado de calamidade pública objetiva a prevenção, constituindo-se de medidas que permitam ao Estado contornar a crise momentânea provocada pelo desastre sanitário instalado em todo o mundo uma vez que, reconhecida a situação emergencial, a legislação permite a tomada de uma série de medidas para restaurar a normalidade.

Assim sendo, as medidas sanitárias tomadas permite ao Poder Público a continuidade da adoção das medidas preventivas, como isolamento, quarentena, uso obrigatório de máscaras de proteção individual, restrição excepcional e temporária, por rodovias, portos ou aeroportos, de entrada e saída do país e locomoção interestadual e intermunicipal, fornecimento gratuito de máscara a funcionários e colaboradores,  atendimento preferencial dos profissionais de saúde e de segurança pública em estabelecimentos de saúde, dentre outras.

Deveras, o direito individual do cidadão e a sua liberdade de reunir-se em eventos particulares não podem colocar em risco o direito da coletividade, e é por isso que o Estado estabelece mecanismos e condutas a serem seguidas (deveres) e direitos a serem respeitados e, não o sendo, o indivíduo que vive em um meio social (e por isso se submete as normas daquele local) será responsabilizado pelo ato que maculou e feriu o direito de outrem.

Nesse aspecto, Gustavo Santana Gonçalves faz uma diferenciação brilhante ao explanar que a proibição da realização de cultos e cerimônias religiosas não macula o direito à liberdade religiosa, restringindo-se, tão somente, a impossibilidade – temporária – de encontros coletivos:

“Por conseguinte, mesmo diante da restrição ao direito de liberdade em realizar e participar de cultos coletivos, pelo Poder Público, preservou-se o exercício dos outros núcleos do direito fundamental à liberdade religiosa, como o direito à liberdade de crença. Ou seja, o exercício de culto pôde ser realizado de maneira individual. O Estado não impediu que as pessoas professem sua fé, mas que deveria ser feita individualmente. Por isso que houve uma restrição parcial deste direito” [5].

O direito subjetivo do cidadão à saúde implica na obrigação do Estado (União, estados, Distrito Federal e municípios) de fornecer-lhe todas as ações e serviços indispensáveis à concretização desse direito. Esses “deveres de cuidado” se fazem ainda mais necessários quando estamos diante de uma pandemia causada por um vírus cujo grau de contaminação é altíssimo e que pode levar à morte. Daí a importância e a legitimidade do Poder Público de impor medidas como as de isolamento e quarentena e proibir cultos, missas e celebrações religiosas para garantir não só a saúde dos fiéis, como também de toda a sociedade.

 

 


FOTO: Google Imagens

REFERÊNCIAS:

[1] PINTO, Oriana Piske de Azevedo Magalhães. Direitos Individuais, Coletivos e Sociais? Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/artigos-discursos-e-entrevistas/artigos/2008/direitos-individuais-coletivos-e-sociais-juiza-oriana-piske-de-azevedo-magalhaes-pinto. Acesso em: 07/08/2020.

[2] Constituição Federal de 1988, art. 5º, inc. VI. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 05/04/2021.

[3] ADPF 701 MG. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/nunes-marques-cassa-veto-autoridades.pdf. Acesso em: 05/04/2021.

[4] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2021/02/26/diretor-da-oms-admite-preocupacao-com-situacao-do-brasil-na-pandemia.htm. Acesso em: 07/03/2021.

[5] GONÇALVES, Gustavo Santana. A (In)Constitucionalidade das Restrições à Celebração de Cerimônias Religiosas Públicas durante a Pandemia do Coronavírus (Covid-19). Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87859/a-in-constitucionalidade-das-restricoes-a-celebracao-de-cerimonias-religiosas-publicas-durante-a-pandemia-do-coronavirus-covid-19. Acesso em 05/04/2021.

Advogada atuante nas áreas Trabalhista, Cível e Consumerista.
Graduada em Direito pela Universidade Católica do Salvador - UCSal.
Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Católica do Salvador - UCSal.
Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes - UCAM.
Sócia no Ricardo Xavier Sociedade de Advogados (Salvador-BA).
Administradora do perfil do Instagram @advocacia.artesanal.
Mentora para a 1ª fase do Exame de Ordem.

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