sábado,27 abril 2024
ColunaFamília e SucessõesO planejamento sucessório e a autonomia privada no testamento

O planejamento sucessório e a autonomia privada no testamento

Um tema que tem uma importância expressiva no direito privado é o planejamento sucessório, diante das múltiplas repercussões de cunho patrimonial, pessoal e eventualmente empresarial.

O planejamento sucessório consiste na exteriorização da manifestação da autonomia da vontade pelo particular com vistas a organizar a sua sucessão em vida. É sabido que o planejamento sucessório pode ser feito, dentre outros meios, através de testamento (ato de disposição de bens em última vontade), de doação e de constituição de holding familiar (sociedade simples ou empresarial).

O testamento é a manifestação de última vontade, pela qual o particular estabelece o que deve ser feito com o seu patrimônio após a sua morte, isto é, toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens ou de parte deles, para depois da sua morte.

Saber se o testamento pode incluir a totalidade ou não dos bens nos remete à indagação se existem ou não herdeiros necessários. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge ou o companheiro conforme decidido pelo STF no RE 878.694 e RE 646.721.

A propósito, pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima, de sorte que o testamento não poderá dispor sobre a legítima dos herdeiros necessários, nos termos dos arts. 1.846 e 1.857, §1º, do Código Civil.

Sendo assim, na hipótese de existirem, 50% dos bens pertencem obrigatoriamente aos herdeiros necessários e 50% dos bens podem ser dispostos livremente. Se não existirem herdeiros necessários, o particular pode dispor livremente de todo o seu patrimônio em testamento.

Recentemente (27.06.2023), um caso envolvendo o apresentador já falecido, Gugu Liberato, apesar de o processo ser sigiloso, trouxe à tona a discussão dos limites da autonomia privada e negocial no testamento. Isso porque, no testamento, o autor da herança dispôs sobre a totalidade do seu patrimônio, dividindo-o no equivalente a 75% entre seus filhos (herdeiros necessários) e a 25% entre seus sobrinhos (herdeiros testamentários).

Na ação de inventário, as duas filhas impugnaram a inclusão da legítima dos herdeiros necessários na base de cálculo do testamento, suscitando como fundamento o preceito legal segundo o qual o testamento deve compreender somente a metade disponível do acervo patrimonial, oportunidade em que pleitearam que o testamento fosse considerado como se só tratasse da divisão da parte disponível, excluindo-se os 50% do patrimônio que o Código Civil reserva aos herdeiros necessários.

Tal caso remete à interessante discussão jurídica envolvendo, de um lado, a autonomia privada em organizar e estruturar a sucessão e, de outro lado, a incidência do art. 1.857, §1º, do Código Civil, segundo o qual a legítima dos herdeiros necessários (50% dos bens) não é passível de disposição em testamento.

Com efeito, a autonomia privada implica o reconhecimento pela ordem jurídica às pessoas do poder de definirem a existência e a extensão dos efeitos jurídicos patrimoniais, isto é, o poder atribuído pelo ordenamento jurídico ao indivíduo para que este possa reger, com efeitos jurídicos, as suas próprias relações privadas.

No julgamento proferido pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em processo sob sigilo, sob a relatoria da Min. Nancy Andrighi, foi ressaltada a necessidade de uma interpretação sistemática do Código Civil em que implique a convivência prática tanto da autonomia privada como da proteção dos herdeiros necessários.

De acordo com o que foi julgado, a legítima dos herdeiros necessários poderá ser referida no testamento, especialmente nas hipóteses em que o autor da herança pretenda, em vida e desde logo, organizar, gravar e estruturar a sucessão, mas desde que seja mencionada justamente para destinar a metade indisponível, ou mais, aos referidos herdeiros necessários.

Portanto, de um lado, há a indispensável proteção aos herdeiros necessários por meio da legítima e, de outro, a necessária liberdade de dispor conferida ao autor da herança, cuja autonomia da vontade deve ser respeitada nos limites legais.

Mestre e Doutor pela PUC-SP. Professor da graduação e do Mestrado na UFRN. Advogado.

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