sexta-feira, 26/julho/2024
ColunaDireito da SaúdeO dever de informação na relação médico-paciente

O dever de informação na relação médico-paciente

No texto constitucional brasileiro encontram-se elencados os fundamentos da República Federativa do Brasil e, dentre estes, encontramos a dignidade da pessoa humana que, Alexandre de Moraes define como um “valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar[1].

José Afonso da Silva liga o princípio da dignidade da pessoa humana ao princípio da autodeterminação, ou seja, a possibilidade do autogoverno do indivíduo em decidir sobre sua própria vida[2].

Ocorre que o exercício pleno da autonomia do indivíduo, somente será realizada em todos os seus termos se a pessoa possuir a todas as informações necessárias para que, conscientemente, possa manifestar suas escolhas.

No campo da saúde, em nosso país, todos têm o direito de receber informações sobre seu estado de saúde: as medidas médicas possíveis e recomendáveis ao caso, as consequências e efeitos colaterais de tratamentos etc.[3]

Este direito abrange, mas não se encerra ao entendimento correto da prescrição médica (letra legível, por exemplo) e expressões médicas entendíveis, sem os famosos termos técnicos indecifráveis.

Gustavo Tepedino afirma que “o dever de informação diz com os riscos do tratamento, a ponderação quanto às vantagens e desvantagens da hospitalização ou das diversas técnicas a serem empregadas, bem como a revelação quanto aos prognósticos e ao quadro clínico e cirúrgico, salvo quando esta informação possa afetar psicologicamente o paciente”[4].

O pleno exercício do direito à informação requer comunicação compreensível e lealdade do médico ao enfermo.

Não agir desse modo afasta o paciente do esperado protagonismo. Além disso, só depois de compreender o que está acontecendo será possível que o paciente manifeste sua intenção, aquilo que se denomina consentimento informado.

O consentimento informado se traduz em um diálogo. O médico apresenta ao paciente todas as informações pertinentes e o paciente possui a liberdade de solicitar esclarecimentos a respeito do que não entende. Ele pode fazer perguntas sobre aspectos que lhe sejam relevantes, devendo o médico trazer ao conhecimento do paciente os detalhes da intervenção, bem como as suas consequências.[5]

Ronaldo Behrens afirma que o pleno exercício do direito à informação ocorre com a comunicação compreensível e lealdade do médico ao enfermo e, uma vez que isso não seja realizado retira do paciente do esperado protagonismo. Somente após a compreensão total por parte do paciente será possível então a realização do termo de consentimento informado[6].

Este direito do paciente-consumidor está previsto no próprio Código de Defesa do Consumidor, em seu inciso III, art. 6º: “a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; inciso III da Lei nº 8078/90”.

No Código de Ética Médica também existe a vedação ao médico: “deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte” (art. 22).

A crítica feita por Ronaldo Behrens é que no Brasil o pleno exercício não ocorre, pois há a falta de informação pelo fato de boa parte dos usuários e dos próprios profissionais da saúde não compreenderem ou até mesmo desconhecerem esses direitos básicos.

Para que este direito seja efetivamente cumprido é necessário que o processo de obtenção do consentimento informado, privilegie o diálogo e o repasse de informações seja feito de forma clara, honesta e leal, não sendo entendido como uma barreira burocrática[7].

No entanto, é necessário que, por exemplo, o preenchimento do prontuário ocorra de forma mais completa e compreensível.

O professor Miguel Kfouri Neto defende que o consentimento informado seja realizado de forma escrita, sob pena de o profissional da medicina ficar sujeito à “impossibilidade de provar a efetiva obtenção do assentimento do enfermo – fato que também poderá redundar em consequências gravosas, no âmbito da responsabilidade civil”[8].

Neste sentido, Kleinman elaborou os chamados modelos explicativos para estudar os traços cognitivos e os problemas de comunicação associados às atividades de saúde, constituído por noções elaboradas a partir de episódios de doenças e em referência aos tratamentos que foram utilizados, faz distinção entre os modelos explicativos dos profissionais e os modelos explicativos utilizados pelos doentes e suas famílias[9].

Na análise desses modelos é notada a distância que separa os modelos médicos e não médicos, evidenciando os problemas de comunicação que surgem do encontro entre modelos culturais e modelos médicos durante as atividades clínica, educativa ou de pesquisa[10].

Neste sentido, Léo Pessini afirma que o correto é pensar sobre a forma como o médico vai partilhar essa informação com o paciente, tendo que levar em conta a condição psicológica do doente e os seus valores familiares, culturais e religiosos[11].

A falha no dever de informação traz a responsabilização do médico. Isso está exposto no Código Civil (art. 15), no Código Penal (CP, art. 146 e seu § 3º, I), no CDC (art. 6º, inciso III, bem como nas demais regras que evidenciam o dever de informar, como é o caso dos arts. 4º, inciso IV, 8º, parágrafo único, e 9º; das regras sobre responsabilidade civil, fixadas nos arts. 12 e 14; das regras que integram a informação ao conteúdo do contrato, arts. 30, 31, 36, parágrafo único, 37 e 38; bem como da regra assecuratória do amplo conhecimento do conteúdo do contrato pelo consumidor, art. 46, entre outros). No Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1.931/2009), as previsões expressas encontram-se nos arts. 22, 24, 31 e 34[12].

No Brasil, como mencionado, a jurisprudência tem exigido a presença de um processo informativo, sendo que a ausência do referido processo pode ensejar a responsabilidade civil do médico pelos danos eventualmente sofridos pelo paciente, como consequência inerente ao próprio procedimento, ainda que sem culpa do médico.

Neste sentido, o defeito na prestação médica não se restringe somente à inadequação do procedimento aplicado, sendo mais amplo, verificando-se a falha também quando não são prestadas as informações necessárias, além do zelo aconselhável e efetivo.

[1] MORAES, A. Direito constitucional. São Paulo: Atlas; 2007. p. 16.

[2] SILVA, JA. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros; 2006. p. 233.

[3] BEHRENS, Ronaldo. Segurança do paciente e os direitos do usuário. Revista Bioética [online]. 2019, v. 27, n. 2, pp. 253-260. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1983-80422019272307>.

[4] TEPEDINO, Gustavo. A responsabilidade médica na experiência brasileira contemporânea. In: Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, t. II, 2006. p. 90.

[5] QUINTANA TRÍAS, Octavio. Bioética y consentimiento informado. In: CASADO, Maria (Ed.). Materiales de bioética y derecho. Barcelona: CEDECS Editorial, 1996. p. 164.

[6] Idem.

[7] Idem.

[8] KFOURI NETO, Miguel. Culpa médica e ônus da prova, p. 297; Responsabilidade civil do médico. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 167.

[9] KLEINMAN, A., 1980. Patients and Healers in the Context of Cultures. An Exploration of Boderland between Anthropology and Psychiatry. Berkeley/Los Angeles: University of California Press.

[10] Uchôa E, Vidal JM. Antropologia médica: elementos conceituais e metodológicos para uma abordagem da saúde e da doença. Cad Saúde Pública [Internet]. 1994 [acesso 5 dez 2018];10(4):497-504. p. 503.

[11] PESSINI, Léo. Erro médico e suas consequências jurídicas. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 61.

[12] NETO, Eugênio Facchini; EICK, Luciana Gemelli. Responsabilidade civil do médico pela falha no dever de informação, à luz do princípio da boa-fé objetiva. Revista da AJURIS, v. 42, n. 138, p. 51-86, 2016.

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Advogado e professor. Doutorando em Ciências Farmacêuticas, Mestre em Direito da Saúde e especialista em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário.

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