sexta-feira, 26/julho/2024
ColunaCorporate LawUma análise construtivista lógico-semântica a respeito do brocardo pecunia non olet

Uma análise construtivista lógico-semântica a respeito do brocardo pecunia non olet

 

INTRODUÇÃO

Partindo do pressuposto da ciência jurídica como uma realidade construída pelo homem para proporcionar estabilidade às relações humanas, sua lógica e sua estrutura positivada expressão o reflexo da tensão entre o poder de império do Estado em dialética ao poder existencial do cidadão. No Direito Tributário não poderia ser diferente, haja vista ele se fazer através da mais sublime dinâmica entre a coação estatal para com a liberalidade emanada do indivíduo.

UMA ANÁLISE CIÊNTIFICA

Nesta toada convém explicar ser o sistema tributário brasileiro originário da Constituição Federal que concede poderes do Estado para a instituição de tributos (criação e majoração), bem como delimita seus poderes se valendo de princípios e imunidades. Após a Constituição surge no ordenamento como figura de destaque o Código Tributário Nacional, que além de dispor ao longo de suas páginas, comandos normativos que esclarecem como irá funcionar a sistemática tributária, expõe as características e funções da maioria dos tributos existentes.

Será no Código Tributário Nacional que encontraremos o conceito de tributo, ele estará expresso em seu artigo 3º, conforme se lê abaixo:

Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

Isso posto, faremos um corte cirúrgico no artigo, nos valendo da reflexão contida apenas, e, tão somente no fragmento que diz: “que não constitua sanção de ato ilícito”. A assertiva nos remete ao postulado condicionante e negativo cujo qual impõe ao Estado o dever de jamais utilizar de sua competência criadora e/ou majoradora de tributos, para instituir ou fazer incidir o fenômeno tributário a um fato concreto que tenha como núcleo uma situação do cotidiano apresentada com as características de uma ilicitude, como por exemplo, um roubo, o tráfico de drogas, um contrabando, desvio de dinheiro público para finalidade particular do servidor. Essas situações representam ilicitudes que não podem, através de sua situação fática compor o aspecto material da norma que constitua um determinado tributo, pois se isto fosse possível o Estado estaria automaticamente compactuando com tamanha mácula social, produzindo, portanto, uma incoerência sistêmica na própria função Estatal presente na Constituição Federal:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Notório se verifica que tais máculas sociais são combatidas pela Ordem Econômica disposta na Constituição Federal (artigos 170 a 192), mais precisamente através dos princípios constantes no artigo 170:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I – soberania nacional;

II – propriedade privada;

III – função social da propriedade;

IV – livre concorrência;

V – defesa do consumidor;

VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;

VII – redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII – busca do pleno emprego; 

IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

UTILIZANDO A FERRAMENTA EPISTEMOLÓGICA

Todavia, há um brocardo jurídico cujo qual apresenta o cenário onde o produto da situação fática ilícita será passível da incidência e consequente arrecadação do fisco (o fisco se caracteriza como sendo o próprio Estado e seu poder de coleta de dinheiro do contribuinte – o cidadão – pelo viés da tributação): estamos diante da pecunia non olet. Para uma análise mais acurada sobre esta instituição, devemos compreender o conceito de fato gerador. O fato gerador se verifica através da incidência da norma tributária ao fato concreto originado de uma situação cotidiana, ou seja, o fato gerador ocorrerá quando a hipótese que está prevista na lei se encaixa, perfeitamente, à situação ocorrida com a pessoa física ou jurídica (cidadão ou empresa): como se fosse uma caixa vazia que precisa ser preenchida; a hipótese é a caixa vazia, já a situação fática que apresenta todos os requisitos para o, devido, preenchimento será o conteúdo material que dará forma ao fato gerador.

Diante do mencionado, devemos expor o disposto no Art. 118 do Código Tributário Nacional:

Art. 118. A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se:

I – da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos;

II – dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos.

Deste dispositivo legal devemos extrair o que se está exposto no caput do artigo: “a definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se”. Igualmente, devemos realizar mais uma operação de extração, agora, retirando do caput do artigo 118 do CTN o verbo “abstrair”: tal verbo ao realizar o movimento de sublimação do fato gerador, ou seja, ao retirar do fato cotidiano aquilo que realmente importa ao fisco, nos remete diretamente ao brocardo já referido, pecunia non olet. O significado do brocardo ataca o ponto basilar, dinheiro não tem cheiro: essa ideia vem da Roma Antiga, através de um diálogo entre o Imperador Vespasiano e seu filho Tito ao discutirem a respeito da cobrança de tributos das pessoas pela utilização de banheiros públicos, Vespasiano disse: o dinheiro não tem cheiro, ou grosso modo, não importa a procedência do dinheiro, o que importa é a sua arrecadação.

O verbo “abstrair” enseja que se retire de um fato ilícito não o crime praticado, mas o produto deste crime, ou seja, o fato gerador nesse caso não será o ilícito, mas a sua consequência monetária, pois para o fisco o dinheiro não deve possuir conexão intrínseca com o que foi produzido pelo ilícito. Essa afirmação pode denotar um confronto entre o artigo 118 com o artigo 3º do CTN, contudo, em profundidade reflexiva, isso não acontece. O que ocorre é que o artigo 118 do CTN nos obriga a encaixar o conteúdo material, referente ao produto do ilícito, não ao crime praticado, mas à outra hipótese prevista no ordenamento jurídico. Exemplo desta condição pode se verificar na cobrança do IOF (imposto sobre operações financeiras): se um político corrupto, após ter praticado o desvio de verbas públicas para sua conta particular, resolve enviar uma boa quantia deste dinheiro para uma pessoa que resida em outro país, o ato de remessa deste dinheiro dará origem ao fato gerador que permitirá a incidência da cobrança do IOF sobre a operação (a título de exemplo, caso você envie ao exterior R$ 100,00 e a cobrança de IOF seja de 1,1%, logo o valor a ser pago referente ao imposto será de R$ 1,10).

Ora, o fisco não estará arrecadando o tributo sobre o crime de corrupção, mas sobre o dinheiro fruto deste crime, eis a diferença substancial, pois o fruto não deve estar atrelado, para o âmbito fiscal, ao ilícito praticado, haja vista o Estado possuir o dever de império para executar a arrecadação do dinheiro. Igualmente, o fato material que ensejou a cobrança do IOF não foi a prática do ilícito, mas a operação financeira efetuada, portanto, prática plenamente lícita.

Convém trazer o posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre a questão:

HC 77.530/RS. Drogas: tráfico de drogas, envolvendo sociedades comerciais organizadas, com lucros vultosos subtraídos à contabilização regular das empresas e subtraídos à declaração de rendimentos: caracterização, em tese, de crime de sonegação fiscal, a acarretar a competência da Justiça Federal e atrair, pela conexão, o tráfico de entorpecentes: irrelevância da origem ilícita, mesmo quando criminal, da renda subtraída à tributação.

Para uma primeira impressão, parece estranha a atitude do Estado em recolher tributo proveniente do dinheiro produto de um crime, contudo, a técnica científica do direito está acima da moralidade social, e, desta forma, o fisco não perguntara ao contribuinte (seja ele ladrão ou mocinho), se o dinheiro pelo qual ele está pagando o crédito tributário foi produzido com o suor de seu labor, ou por uma conduta lesiva ao patrimônio alheio, o que interessa nessa postura será somente o aspecto material do fato gerador, ou seja, a caixa referente à hipótese será preenchida com qual conteúdo material? Lícito ou ilícito? Caso o conteúdo seja lícito, pouco importará a ilicitude que produziu o dinheiro em questão, pois isto já será assunto da área criminal e não da seara tributária.

CONSIDERAÇÃO FINAL

Em suma, como diria o imortal Machado de Assis, “a vida é cheia de obrigações que a gente cumpre por mais vontade que tenha de as infringir deslavadamente”. Os olhares atentos dos fiscos federal, estadual, distrital e municipal pairam sobre todos, eis aí um bom início de reflexão para o que venha a ser o princípio da igualdade, ou para os atentos aos jargões jurídicos, da isonomia.

 

Advogado. Membro efetivo da Comissão de Direito Tributário e da Comissão de Privacidade, Proteção de Dados e Inteligência Artificial, ambas da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional de São Paulo.

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