sábado, 27/julho/2024
ColunaTrabalhista in focoReflexos do Covid-19 à trabalhadora em regime de teletrabalho

Reflexos do Covid-19 à trabalhadora em regime de teletrabalho

Coordenação: Ricardo Calcini.

O presente artigo não tem a pretensão de reivindicar direitos às mulheres neste período de pandemia do vírus COVID-19. E mais, essa leitura não visa desmerecer muitos homens de boa vontade que também acumulam funções em tempos de calamidade pública. Ao contrário, a intenção é a valorização dessas mulheres em comento. A finalidade é clarear algumas informações a muitas heroínas trabalhadoras, para que elas compreendam o motivo do aumento de seu cansaço mental e físico em face do teletrabalho decorrente do COVID-19. A leitura é um convite aos homens para que se sensibilizem com certos estigmas das mulheres e percebam o quanto são privilegiados por tê-las em seus lares.

A ideia desse artigo adveio depois de muitas conversas, não com apenas uma, mas várias mulheres inspiradoras na área jurídica, todas casadas e com filhos, que confessaram suas exaustões em regime de teletrabalho.

Estudos comprovam que as mulheres, em comparação aos homens, passam, pelo menos, o dobro do tempo em trabalhos domésticos não remunerados como a tarefa de cuidadora ou em tarefas domésticas. Segundo dados da Agência Brasil, as mulheres brasileiras exercem, em média, 7,5 horas a mais de trabalho que os homens, em razão da dupla jornada.

O COVID- 19 aproximou essa realidade àquelas mulheres que não exerciam, com tanta intensidade, essa dupla jornada. E aumentou a jornada daquelas que já exerciam a dupla jornada.

Isto porque, a maioria das mulheres que tinham uma empregada doméstica ou faxineira, reduziu, suspendeu ou dispensou esses serviços, os quais passaram a ser executados pela mulher trabalhadora em regime de teletrabalho. Isto, claro, aumenta sua jornada.

Da mesma maneira ocorre com aquelas que têm filho(a) criança e acompanham suas tarefas e educação com mais intensidade do que o normal, por meio do ensino à distância das escolas (aquelas que fornecem serviços remotos), ou se esforçam para garantir que seus filhos mantenham aprendizado (quando não há acesso à educação remota). Isso sem contar uma série de hipóteses que ocorrem na realidade de cada mulher, em sua classe social e peculiaridades no lar.

Somado a tudo isso, há o teletrabalho que já foi discorrido no artigo “O Direito a desconexão do trabalho na Era Tecnológica” (de 30/01/2020), que provoca uma repercussão importante na vida da trabalhadora, o efeito panóptico:

[…] a falsa liberdade ao trabalhador, pela hipótese de junção da ausência do controle de jornada com a exigência do cumprimento de metas, caracterizando o que Michael Focault denominou de Panóptico – expressão também concebida pelo filósofo Jeremy Bentham, no século XVIII, para o modelo arquitetônico de prisão cuja estrutura permite vigilância e monitoramento de um prisioneiro. A ideia do panoptismo de que a pessoa é submetida “a um estado de vigilância constante, alijando o resguardo da saúde física e mental em vista do alcance de meta imposta, gera extremo desgaste mental.”.

A soma dos cuidados da casa, da educação dos filhos (e esposo, caso o tenha) e ao efeito panóptico provocado pelo regime de teletrabalho, fora todas as preocupações atinentes ao vírus COVID-19 – como o possível desemprego, medo de ser contaminada com o vírus quando precisa sair por algum motivo básico e urgente – todos, simultaneamente, geram um desgaste físico e emocional muito grande.

Ressalta-se que, aparentemente, a situação da mulher em regime de teletrabalho apresenta um quadro mais agravante se comparado aquela que, por realizar atividade essencial, trabalha fora de casa. Explica-se: a teletrabalhadora não se desconecta da dupla (ou tripla) jornada, pois, quando não está exercendo seu ofício do teletrabalho, está sendo requisitada pelos seus e cumprindo qualquer outra atividade no lar. Para tais mulheres só há intervalo para a hora interjornada (de um dia para o outro).

Alguém pode indagar o porquê de enfatizar a mulher e não muitos homens que despendem esses esforços e exercem a cumplicidade com suas companheiras. A resposta é que essa situação, infelizmente, é a exceção à regra de uma cultura em que se destaca a mulher no papel central de chefe dos afazeres domésticos.

Essa cultura, engendrada na sociedade, é internacionalmente reconhecida, contudo, há uma linha muito tênue e difícil de sua percepção pela sociedade. Isto é claramente demonstrado se analisarmos os casos da Suprema Corte Americana, que oito anos depois do julgamento Brown v. Board of Education, sobre a eliminação a segregação racial nos colégios da Flórida (1953), houve a decisão do case Hoyt v. Florida (1961), em que a Suprema Corte reconheceu constitucional a lei da Florida que dava tratamento discriminatório em face da mulher, excluindo sua participação na composição dos júris: “mulher ainda é considerada o centro da vida familiar […] a menos que ela mesma determine que tal serviço é consistente com suas próprias responsabilidades especiais”.

No Brasil, nosso Código Civil de 1916 (revogado somente em 2002) previa a incapacidade civil plena da mulher para determinados atos da vida civil e, para poder trabalhar, era preciso a autorização do esposo, sendo isso modificado, somente em 1962, com o Estatuto da mulher Casada.

Essas condutas históricas ainda se reverberam em nossa cultura e, inevitavelmente, a mulher trabalhadora empenha-se, em regra, de modo mais intenso no lar, se comparada à figura do homem ou seu companheiro.

Por tudo isso, conclui-se que, dentre muitos reflexos da pandemia pelo COVID-19 em relação à mulher em regime de teletrabalho, temos que o primeiro deles é retardar o cumprimento da meta estabelecida pela agenda 2030 da ONU, cujo objetivo de cincos anos é alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas mulheres e meninas. O segundo reflexo, e extremamente importante, consiste na profunda exaustão física e mental da trabalhadora em regime de teletrabalho. Esse último reflexo é um grande alerta para a necessidade da preservação da saúde da mulher, por meio de buscas obrigatórias de intervalos para cuidados de sua saúde.

Este momento de calamidade pública vem sendo um período difícil e delicado para a saúde de todos, mas esse caso específico requer atenção. Por isso, enquanto essa situação não passar é essencial a busca do equilíbrio da saúde (em todas as suas esferas) e, nos momentos em que a saúde mental degringolar, que cada uma das mulheres, em atitude de sororidade, atenham-se aos ensinamentos de uma mulher e mãe que, em um sonho, foi inspiração a clássica canção de Paul Maccartney: “Let it be!”. Deixe estar, pois tudo isso vai passar!


BIBLIOGRAFIA

AGÊNCIA BRASIL. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-03/mulheres-trabalham-75-horas-mais-que-homens-devido-dupla-jornada>. Acesso em: 26 out. 2018.

BANCO MUNDIAL. Gender at work: a companion to the world development reporto on Jobs. Disponível em: <http://www.worldbank.org/content/dam/Worldbank/Event/Gender/GenderAtWork_web2.pdf>. Acesso em: 29 out. 2018.

BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 4. ed. ver. e ampl. São Paulo: LTr, 2008.

BEGA, Mariana Ferrucci. Direito a Desconexão do trabalho na era tecnológica. Disponível em< https://www.megajuridico.com/o-direito-a-desconexao-do-trabalho-na-era-tecnologica/>. Acesso em 21 abr. 2020.

UCHÔA, Marcelo Ribeiro. Mulher e Mercado de Trabalho no Brasil – Um Estudo sobre Igualdade – Baseado no Modelo Normativo Espanhol. 1.ed. . São Paulo: LTr, 2016.

Advogada, pós-graduada em direito e processo do trabalho com formação para Magistério Superior. Pós-graduanda em Processos Brasileiros pela PUC-MG. Mestranda em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas no UDF.

Receba artigos e notícias do Megajurídico no seu Telegram e fique por dentro de tudo! Basta acessar o canal: https://t.me/megajuridico.
spot_img

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Mais do(a) autor(a)

Most Read

Seja colunista

Faça parte do time seleto de especialistas que escrevem sobre o direito no Megajuridico®.

Últimas

- Publicidade -