quarta-feira,27 março 2024
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O Limite Entre a Liberdade de Expressão, a Intolerância Religiosa e o Crime de Racismo

A liberdade de expressão pode ser compreendida como a livre manifestação de ideias, opiniões, pensamentos ou convicções pessoais, sem que aquele que se manifesta sofra retaliações ou censuras por parte do aparato estatal ou mesmo por outros membros da sociedade. Em decorrência disso, a liberdade de expressão ocupa lugar privilegiado em diversos ordenamentos jurídicos ao redor do mundo, sobretudo por se apresentar como fenômeno essencial para o exercício da cidadania e da democracia, pois garante o fluxo irrestrito de informações, possibilitando o debate público e a discussão de propostas políticas livremente. Desse modo, torna-se claro que a liberdade de expressar as próprias ideias sem cerceamentos, está intrinsecamente ligada à dignidade da pessoa humana, uma vez que permite que os indivíduos exponham livremente suas perspectivas, opiniões ou sentimentos a respeito de determinado assunto.

No entanto, é importante perceber que o direito de se expressar livremente não representa direito absoluto, devendo sofrer limitações diante de outros direitos, igualmente garantidos pela Constituição Federal. Aliás, a própria Carta Magna demonstra essas limitações quando veda o anonimato (art. 5º, IV, CF) ou quando impõe o respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas (art. 5º, X, CF), dentre outros. Faz-se, portanto, indispensável o equilíbrio entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade.

É de bom alvitre destacar que nos termos do art. 3º, inciso IV da Constituição, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Assim, violações a direitos impõem ao estado o dever de agir e reprimir tais condutas.

Nesse sentido, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal ao julgar o RHC 146303/RJ, cujo Relator foi o Ministro Edson Fachin, decidiu que são inadmissíveis manifestações de incentivo ao ódio público contra qualquer segmento religioso e seus praticantes. Vejamos:

A incitação ao ódio público contra quaisquer denominações religiosas e seus seguidores não está protegida pela cláusula constitucional que assegura a liberdade de expressão. (STF. 2ª Turma. RHC 146303/RJ, rel. Min. Edson Fachin, red. p/ o ac. Min. Dias Toffoli, julgado em 6/3/2018).

Mas não é só isso. Entendeu ainda o Pretório Excelso que a incitação de ódio público levada a efeito por líder religioso contra outras religiões pode configurar o crime de racismo. No caso concreto, um pastor evangélico publicou em seu blog conteúdo ofensivo a sacerdotes e seguidores de outras religiões, empregando termos pejorativos como “prostituta católica”, “prostituta espiritual” e “pilantragem” aos seus devotos. Chegou ainda a associar algumas religiões à prática do satanismo, que também não deixa de ser uma religião.

As publicações ofensivas do pastor ensejaram o oferecimento de denúncia pela prática do crime previsto no art. 20, § 2º, da Lei nº 7.716/81 (define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor), in verbis:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Pena: reclusão de um a três anos e multa. (…)

2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza:

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

Alegou a defesa do denunciado que este agiu amparado pelo exercício de uma garantia constitucionalmente assegurada, pois “a condenação ideológica de outras crenças é inerente à prática religiosa”, no entanto a tese defensiva não prosperou e o STF manteve a condenação, haja vista que em diversos trechos do discurso do condenado percebe-se o incentivo ao ódio e à intolerância. Indiscutivelmente, o direto de expressão sem censuras ou restrições é privilégio dos mais valiosos no ordenamento jurídico, porém a existência de tal direito não pode servir como escusa para a prática de abusos, de modo que diante de eventuais abusos, punem-se condutas como caluniar, injuriar, difamar ou fazer apologia de fatos criminosos, por exemplo.

A incitação ao ódio público contra quaisquer denominações religiosas e seus seguidores não está protegida pela cláusula constitucional que assegura a liberdade de expressão. Assim, é possível, a depender do caso concreto, que um líder religioso seja condenado pelo crime de racismo (art. 20, §2º, da Lei nº 7.716/81) por ter proferido discursos de ódio público contra outras denominações religiosas e seus seguidores. (STF. 2ª Turma. RHC 146303/RJ, Rel. Min. Edson Fachin, red. p/ o ac. Min. Dias Toffoli, julgado em 6/3/2018).

Durante o julgamento os Ministros ainda relembraram o “Caso Ellwanger” (HC 82424 – setembro de 2003), quando foi mantida pelo STF a condenação do escritor gaúcho Siegfried Ellwanger, pela prática do crime de racismo contra os judeus.

Tais discursos de ódio, ou hate speech, consistem em manifestações ofensivas ou ameaçadoras feitas contra pessoas com base em critérios preconceituosos (nacionalidade, cor, orientação sexual, deficiência física, mental, etc.). No direito norte-americano, entende-se que até mesmo o discurso de ódio deve ser alcançado pela proteção da liberdade de expressão. Entretanto, no Brasil esse tipo de discurso não goza de proteção constitucional.

Todavia, a situação deve ser analisada com base no caso concreto, pois a mera crítica de um líder religioso a outras religiões não configurará racismo. Para tanto, é necessário que haja a intenção de oprimir, restringir direitos ou violar a dignidade dos seguidores de outros grupos religiosos. Ver RHC 134682/BA.

 


Fontes:

BERNARDES, Juliano Taveira; FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves. Direito Constitucional. Tomo II. 7ª ed. Salvador: Juspodivm, 2017.

Supremo Tribunal Federal

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