sábado, 27/julho/2024
ColunaCivilista de PlantãoA avaliação econômica da legislação e a confiança na relação negocial

A avaliação econômica da legislação e a confiança na relação negocial

O Direito não é um fenômeno isolado no mundo fático. É necessária uma reflexão e o auxilio das demais ciências como a economia na hermenêutica das normas jurídicas em face das complexidades no mundo dos negócios.

“O Direito sem o mercado é a imobilidade ou paralisia da sociedade; o mercado sem o direito é o caos” (Alain Minc)

Introdução

A confiança é pressuposto de todo e qualquer negócio. É a força motriz da economia porquanto permite a troca de serviços e/ou produtos e benefícios mútuos entre as pessoas. É, de certo modo, um meio indispensável para o surgimento e conclusão de negócios.

A avaliação econômica da legislação como forma de maximizar os resultados sociais das comunidades bem como a garantia da liberdade econômica é de salutar importância neste âmbito.

Esta análise que se faz do Direito busca não apenas constatar o seu impacto na economia, como também avaliar a qualidade dos instrumentos legais numa ótica baseada em princípios econômicos [1].

Neste particular, Lewis Kornhauser [2], destacando a importância e eficácia do Common Law na solução de conflitos, propõe como premissas: (a) a tese comportamental, segundo a qual a economia pode oferecer uma teoria útil as predições do comportamento regulado pelo direito; (b) e a tese normativa, na qual o direito deve ser eficiente (sob a perspectiva de atingir resultados no menor espaço de tempo e com o menor custo).

Infelizmente, a análise econômica do Direito é pouco conhecida e difundida no meio acadêmico e, por óbvio, pouco aplicada nas decisões judiciais.

Com a evolução da sociedade, da tecnologia e da globalização os negócios jurídicos, além de serem instrumentos econômicos, passaram a exercer uma “função social” que juntamente com a boa-fé objetiva tornaram-se princípios norteadores do Código Civil de 2002.

O ato de contratar corresponde ao valor da livre iniciativa, erigida pela Constituição de 1988 a um dos fundamentos do Estado Democrático do Direito. Assim sendo, é natural que se atribua ao contrato uma função social, a fim de que ele seja concluído em benefício dos contratantes sem conflito com o interesse público [3].

Já o principio da boa-fé objetiva, pode ser compreendido como um conceito ético de conduta, moldado nas idéias de proceder com correção, com dignidade, pautada a atitude nos princípios da honestidade, da boa intenção e no propósito de a ninguém prejudicar [4]. Sendo assim, o juiz na aplicação do direito ao caso concreto deverá analisar sua aplicação na interpretação/contexto do negócio jurídico celebrado, no momento da constatação do abuso de direito ou na avaliação da responsabilidade pré ou pós-contratual.

Sob este aspecto, de forma a prestigiar, bem como preservar a confiança nos negócios o legislador também consagra o princípio da boa-fé objetiva e da cooperação, nos artigos 5º e 6º no novo Código de Processo Civil. Assim, compreende-se que o processo fluirá melhor existindo uma confiança na perspectiva de retidão, em sentido diametralmente oposto, a ausência de boa-fé objetiva, resulta em desconfiança, burocracia, má vontade, sendo um obste ao prosseguimento regular do feito [5].

Casuística

De forma a ilustrar a problemática proposta, veja-se o caso dos financiamentos com bem dado em garantia real.

Neste negócio, o devedor fiduciante, ao contratar o financiamento do veículo, responsabiliza-se pela sua guarda e conservação, sendo que a partir do momento que deixa de cumprir com suas obrigações contratuais, nada mais justo e correto, que restitua o veículo à financeira e não que proceda a sua ocultação.

Contudo, o que se observa é o aumento considerável dos níveis de inadimplência, provocado pela instabilidade política e econômica que vem sofrendo o país.

Problemas como ocultação do bem e até mesmo ilícitos como repasse do mesmo a terceiros a revelia do credor fiduciário vêm se tornando quase que uma rotina.

As premissas acima apontadas se aplicam ao conflito, em especial, no próprio âmbito do processo.

Ajuizada a ação de busca e apreensão posta à disposição do credor fiduciário (regulamentada pelo Decreto-lei 911/69) e, deferida a liminar de busca, o devedor deve indicar o paradeiro do bem, sob pena de multa.

O artigo 77, inciso IV, do Código de Processo Civil é claro ao dispor que a parte deve cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final, e não criar embaraços à sua efetivação.

Neste sentido, de forma recente, decidiu a 25ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO BUSCA E APREENSÃO. Intimação do réu para indicar a localização do veículo, sob pena de multa Admissibilidade A despeito de ausência de previsão legal expressa no Decreto-lei nº 911/69, é possível a imposição desse dever em decorrência dos princípios da boa-fé objetiva e da cooperação. Negado provimento” (Agravo de Instrumento nº 2098752-80.2017.8.26.0000 Comarca: Araraquara. Voto nº 18.217. Des. Hugo Crepaldi RELATOR. 25ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Julgado em 22/06/17)

E ainda:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA COMPRA E VENDA DE AUTOMÓVEL. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. ORDEM PARA QUE A RÉ INDIQUE A LOCALIZAÇÃO DO BEM. CABIMENTO. NÃO VIOLAÇÃO DA LEI DE REGÊNCIA. GRATUIDADE DE JUSTIÇA. CONCESSÃO EM PARTE, TÃO SÓ PARA ISENTAR A REQUERIDA DAS CUSTAS DO PRESENTE AGRAVO, SOB PENA DE SUPRESSÃO DE UM GRAU DE JURISDIÇÃO. O comando judicial contra o qual se insurge a devedora-fiduciante não ofende a legislação de regência, razão pela qual a decisão judicial guerreada deve ser preservada. De outro vértice, acolhe-se em parte o pleito de gratuidade de justiça, tão só, para isentar a ré-fiduciante do recolhimento das custas deste agravo. Quanto à extensão da referida benesse processual para toda a demanda, o pedido deve ser formulado no juízo “a quo”, sob pena de supressão de um grau de jurisdição. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO” (TJSP, Agravo de Instrumento nº 2182076-02.2016.8.26.0000, 26ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Antonio Nascimento, j. 29.09.2016)

“Agravo de instrumento. Liminar de busca e apreensão ainda não cumprida, diante da não localização do bem. Réu que ingressa espontaneamente no feito, requerendo o julgamento em conjunto da ação com a revisional do contrato, sem informar acerca do paradeiro do bem. Decisão agravada que determinou ao réu que informe a localização do veículo, sob pena de arbitramento de multa diária. Acerto da medida, em especial após o advento da Lei nº 13.043/14, que possibilitou a conversão da busca e apreensão em execução. Réu que comete ato atentatório à dignidade da Justiça. Precedentes desta Corte. Recurso não provido” (TJSP, Agravo de Instrumento nº 2020561-55.2016.8.26.0000, 32ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Ruy Coppola, j. 25.02.2016).

“AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. Cédula de crédito bancário com cláusula de alienação fiduciária em garantia. Inadimplemento das parcelas contratuais e deferimento da medida liminar. Veículo não localizado no endereço do devedor. Determinação judicial de intimação deste para indicação do local onde se encontra o bem, sob as penas da lei. Possibilidade. Inteligência do artigo 422 do Código Civil e do artigo 14,II, V e parágrafo único, do Código de Processo Civil. Aplicação do princípio da boa-fé objetiva. Recurso desprovido” (TJSP, Agravo de Instrumento nº 2192195-56.2015.8.26.0000, 28ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Dimas Rubens Fonseca Julgamento: 15.12.2015).

Não há razão econômica, moral e legal para sustentar a ocultação do bem engendrada pelos devedores dessas operações, meros possuidores diretos e não proprietários do bem ou de o Judiciário manter-se inerte ante o conflito instaurado.

Apesar de não haver norma expressa nesse sentido no Decreto-lei nº 911/69, não há porque deixar de aplicar o regime geral de contratos previsto pelo Código Civil, bem como os princípios da cooperação e da boa-fé objetiva agora consagrados pelo Novo Código de Processo Civil.

A boa fé objetiva impõe aos contratantes não só o cumprimento da prestação obrigacional principal, mas também a observância da lealdade no cumprimento de todas as prestações acessórias que emergem de uma obrigação complexa (art. 422 do CC), o que se refere à função integrativa do princípio da boa-fé contratual, que traduz a noção de deveres anexos, conforme leciona a Doutrina [6]:

“O conteúdo da relação obrigacional é dado pela vontade e integrado pela boa-fé. Com isso, estamos afirmando que a prestação principal do negócio jurídico (dar, fazer e não fazer) é um dado decorrente da vontade. Os deveres principais da prestação constituem o núcleo dominante, a alma da relação obrigacional. Daí que sejam eles que definem o tipo do contrato. Todavia, outros deveres se impõem na relação obrigacional, completamente desvinculados da vontade de seus participantes. Trata-se dos deveres de conduta, também conhecidos na doutrina como deveres anexos, deveres instrumentais, deveres laterais, deveres acessórios, deveres de proteção e deveres de tutela. Os deveres de conduta são conduzidos ao negócio jurídico pela boa-fé, destinando-se a resguardar o fiel processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra. Eles incidem tanto sobre o devedor quanto sobre o credor, mediante resguardo dos direitos fundamentais de ambos, a partir de uma ordem de cooperação, proteção e informação, em via de facilitação do adimplemento, tutelando-se a dignidade do devedor e o crédito do titular ativo”

Da relação obrigacional firmada pelas partes e permeada pela boa-fé, portanto, emerge o dever de lealdade inclusive após o inadimplemento.

Nesse contexto, é possível exigir do devedor que indique onde se encontra o bem. É claro que não há como exigir uma obrigação precisa e certa, porque muitas podem ser as variáveis, e eventual comportamento contrário à veracidade será valorado em cada caso concreto. Contudo, a boa-fé exige que o devedor aja positivamente de modo a colaborar para a localização.

E isso é corroborado pela incidência da boa-fé objetiva também em âmbito processual, hoje expressa no artigo 5º do Novo Código de Processo Civil. Dessa forma, também sob o viés processual, considerando a medida infrutífera de busca e apreensão, o devedor deve cooperar a fim de que seja possível cumpri-la.

A devida efetividade jurisdicional, bem como, a garantia fiduciária, muitas vezes é colocada em risco nos certames judiciais, estimulando a inadimplência, encarecendo os financiamentos em detrimentos de todos aqueles cumpridores pontuais de suas obrigações nessa seara.

Conclusão

Não é incomum depararmos varias vezes com mandados judiciais devolvidos pelo simples motivo da recusa do devedor fiduciário em indicar o paradeiro do veículo.

Há, portanto, a necessidade de uma mudança de paradigmas para apreciação deste particular: O que está sendo defendido é apenas o direito de propriedade, ora consagrado na constituição federal, do credor fiduciário, sendo que eventuais cláusulas abusivas contratuais devem ser discutidas em revisionais e não neste procedimento regulado pelo Decreto-lei 911/69.

Em defesa, portanto, da confiança, boa-fé objetiva, da cooperação, e do direito constitucional a propriedade, o Judiciário deveria agir com mais rigor, intimando os devedores fiduciários a indicar a localização do veículo, sob pena de multa (idônea e suficiente), de forma a zelar pela devida efetividade jurisdicional.

Como vimos o Direito deve ser eficiente, oferecendo a economia um suporte teórico e instrumental para expandir sua compreensão e alcance, de modo a aperfeiçoar o desenvolvimento, a aplicação e principalmente, a avaliação de normas jurídicas e suas consequências no mundo fático.

Nesta perspectiva, considerando a aplicação destes princípios a expectativa é de incrementar o volume de crédito para financiamento de veículos, em decorrência da desburocratização, agilidade e maior rigor do sistema de cobrança judicial, porquanto implicará na redução de custos e maior segurança jurídica para o financiamento de bens.

A inadimplência, a segurança jurídica/higidez da economia, o direito a propriedade, a confiança, cooperação e a boa-fé contratual devem ser vistos sob a perspectiva da teoria tridimensional do Direito de Miguel Reale [7] (fato, valor e norma), bem como, da análise econômica do Direito, na aplicação da norma jurídica.

O Direito não é um fenômeno isolado no mundo fático.

É necessária uma reflexão e o auxilio das demais ciências como a economia na hermenêutica das normas jurídicas em face das complexidades no mundo dos negócios, de modo a garantir a credibilidade das instituições na defesa da ordem econômica e dos direitos individuais, transcendendo-se da letra vaga e fria da Lei e da burocracia do sistema.

Referências Bibliográficas

[1] SADI, Jairo et al. Direito, Economia e Mercados. São Paulo: Elsevier, 2005.

[2] KORNHAUSER, Lewis. “Sequential decisions by a single tortfeasor”. The journal of legal studies 20, n. 02, (junho 1991): 363-380.

[3] REALE, Miguel. A função social dos contratos. Disponível em: http://www.miguelreale.com.br/artigos/funsoccont.htm. Acessado em 29/08/2017.

[4] Silvio Rodrigues. Direito Civil. São Paulo, 3º Volume, Ed. Saraiva, 28ª ed., pág. 60.

[5] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil Artigo por Artigo. 1. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

[6] ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência”, Manole, 6ª edição, p. 489.

[7] REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, 5a edição. São Paulo: Editora Saraiva, 1994.

Advogado e Consultor. Pós-Graduado em Direito Societário pelo Instituto Insper (SP), com Especialização em Direito Processual Civil pela Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP (Lato Sensu). Atua nas áreas de Direito Empresarial, Societário, Direito Bancário e Recuperação Judicial. Autor de diversos trabalhos científicos publicados na área.

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