Sempre que falamos sobre a autonomia do paciente nos vem o célebre questionamento:
O paciente pode recusar um tratamento médico ainda que este tratamento seja benéfico a ele?
A questão deve ser analisada sob o prisma da bioética em consonância a legislação brasileira em vigor.
O dilema bioético inicia-se com uma breve leitura do artigo 15 do Código Civil Brasileiro, onde nos diz que:
“Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”.
De acordo com o Professor Doutor Diaulas Costa Ribeiro, devemos interpretar este artigo da seguinte maneira:
A leitura desse artigo –”conforme a Constituição” – deve ser: ninguém, nem com risco de vida, será constrangido a tratamento ou a intervenção cirúrgica, em respeito à sua autonomia, um destacado direito desta Era dos Direitos que não concebeu, contudo, um direito fundamental à imortalidade [1]
Isto é, a autonomia da vontade não dispensa a capacidade para expressa-la!
Mas, para além desta interpretação, importante se faz levarmos em consideração o aspecto da vida e do cuidado do paciente e, não apenas, a faceta material de que o médico tem a obrigação de salvar vidas, mesmo que esta vida já esteja em estágio de terminalidade.
Se encararmos a morte com evento natural, passamos a olhar o paciente como pessoa detentora de direitos e garantias fundamentais, trazendo-lhe a dignidade no momento de sua autonomia.
O paciente, por sua vez, alcança a lúcida autonomia com a tomada de decisão dentro dos ditames da dignidade a que entende lhe ser cabível.
Neste sentido, conseguimos entender que a recusa de tratamento também faz parte da autonomia do paciente e uma forma de cuidado.
Seria fácil se a autonomia da recusa de tratamento pairasse apenas sob as normas do Código Civil já que, se expandirmos a análise do dilema, verificaremos que o Conselho Federal de Medicina ainda não conseguiu acompanhar a regra civilista.
A ADPF nº 618 traz cristalinamente este retardo com relação ao direito civil e faz com que o Conselho mude as regras voltadas para os médicos quando o assunto é a autonomia do paciente.
Nesta ADPF, aponta-se lesão à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da Constituição) e aos direitos à vida (art. 5º, caput da Constituição) e à liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI a VIII da Constituição) por meio de decisões judiciais, por atos do Conselho Federal de Medicina e por atos de instituições de saúde que negam às Testemunhas de Jeová o direito de recusar a transfusão de sangue na hipótese de risco iminente de morte. [2]
Se a recusa de tratamento advém de um paciente informado, consciente e maior de idade, isto faz parte da biografia da pessoa, não podendo ela ser submetida, contra a sua vontade, a tratamento que entende não ser benéfico para si, devido às suas crenças e outras atribuições de vida.
Contribuindo para este entendimento, o de que o Conselho Federal de Medicina está em defasagem ao Código Civil de 2002, podemos citar o artigo 26 do Código de Ética Médica a saber:
É vedado ao Médico:
Deixar de respeitar a vontade de qualquer pessoa, considerada capaz física e mentalmente, em greve de fome, ou alimentá-la compulsoriamente, devendo cientificá-la das prováveis complicações do jejum prolongado e, na hipótese de risco iminente de morte, tratá-la. [3]
O Médico deve seguir a vontade do paciente, exceto em casos de iminente risco de morte.
Corroborando para este entendimento, temos o artigo 31 do Código de Ética Médica, senão vejamos:
É vedado ao Médico:
Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.
Neste sentido, observamos que em todo o Código de Ética Médica encontraremos normas que reforçam a obrigatoriedade do médico em respeitar a vontade do paciente, exceto em casos de iminente risco de morte.
Diferentemente do Código Civil, que dá a livre e integral autonomia ao paciente de se negar a receber tratamento, mesmo que esta escolha lhe traga risco de morte.
E não é para menos, o paciente tem o direito de livre escolha desde que seja maior de idade, esteja bem informado e consciente dos seus atos.
A autonomia e a recusa terapêutica a que encontramos no Código Civil, segue preceitos autorizativos constitucionais da pessoa humana, podendo ela opinar na sua relação com o médico para escolher o que é melhor para si, mesmo em iminente risco de morte.
O Conselho Federal de Medicina, na tentativa de se aproximar a realidade atual, acabou por expedir a Resolução 2232/2019 e, logo em seu artigo inaugural, traz decisão deontológica quanto ao assunto, senão vejamos:
A recusa terapêutica é, nos termos da legislação vigente e na forma desta Resolução, um direito do paciente a ser respeitado pelo médico, desde que esse o informe dos riscos e das consequências previsíveis de sua decisão (art. 1º).[5]
Ocorre que, a intenção do Conselho foi boa se não fossem outros dois artigos a neutralizarem o direito do paciente ao recebimento de cuidado e o respeito a sua autonomia.
O artigo 2º, preceitua que:
É assegurado ao paciente maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente, no momento da decisão, o direito de recusa à terapêutica proposta em tratamento eletivo, de acordo com a legislação vigente.
Parágrafo único. O médico, diante da recusa terapêutica do paciente, pode propor outro tratamento quando disponível. [6]
Isto é, a recusa de tratamento será respeitada apenas em casos de tratamento eletivo, sendo obrigatório ao Médico aceitar a decisão do paciente, mas propor outro tratamento quando disponível.
Já o artigo 11 da mesma resolução reza que:
Em situações de urgência e emergência que caracterizarem iminente perigo de morte, o médico deve adotar todas as medidas necessárias e reconhecidas para preservar a vida do paciente, independentemente da recusa terapêutica [7]
Neste momento, a resolução mostra um contrassenso ao Código Civil, ficando à luz de distância do reconhecimento, pelo Conselho Federal de Medicina, do direito do paciente em ver respeitada a sua autonomia e recusa, mesmo em caso de iminente risco de morte.
Também podemos citar uma incoerência à própria Constituição Federal, que em seu artigo 5º preza pela inviolabilidade do direito à vida, isto é, em face de terceiros e não propriamente do paciente.
O respeito a autonomia do paciente, não configuraria o crime de omissão de socorro do Médico, já que, mesmo que não haja o tratamento ao qual foi recusado pelo paciente, ainda assim o Médico não o deixará desassistido, aplicando-se as melhores técnicas em cuidados paliativos para trazer qualidade de vida ao paciente.
A recusa terapêutica é o exercício do direito do paciente, da sua autonomia, sendo leal a sua biografia de pessoa, o que não pode ser confundido com abandono terapêutico praticado pelo Médico.
Resta ao Supremo Tribunal Federal o julgamento das incoerências da Resolução 2232/2019, aguardando-se decisão pelo respeito ao direito do paciente.
[1] Revista Bioética, ed. 2006 – A eterna busca da imortalidade humana: a terminalidade da vida e a autonomia
[2] ADPF 618. Acesso no: http://sbdp.org.br/wp/wp-content/uploads/2021/03/ADPF-618.pdf
[3] Revisão do Código de Ética Médica: Acesso no https://rcem.cfm.org.br/index.php/cem-atual
[4] vide item 3
[5] Resolução 2232/2019 do Conselho Federal de Medicina. Acesso no https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2019/2232
[6] vide item 5
[7] vide item 5
Advogada e Professora. Mestranda em ciências da saúde e nutrição; Pós Graduada em Direito Médico e da Saúde; Pós Graduada em Direito Privado; Coautora de livro e autora de artigos.
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