sexta-feira, 26/julho/2024
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O trabalho em condições análogas à de escravo na contemporaneidade e seus contornos

Coordenadora: Ana Claudia Martins Pantaleão

O conceito atual de trabalho em condições análogas à de escravo é fruto de uma evolução progressiva acerca do reconhecimento de seus contornos e características centrais que passou a ser construído em nosso ordenamento desde a edição da lei áurea, em 1888, e contou tanto com a colaboração da legislação brasileira quanto dos diplomas de Direito internacional. Contudo, ainda hoje, não alcançamos, de fato, a erradicação plena dessa prática que, contemporaneamente, também conhecemos como “Neoescravidão”.

A evolução da proteção contra o trabalho em condições análogas à de escravo parte desde o reconhecimento da impossibilidade de alienação do ser humano até o entendimento atual que confere perfil de práticas análogas à escravidão a condutas que caracterizem o tratamento do trabalhador como “coisa” e lhe mitiguem ou desprezem atributos atrelados aos direitos fundamentais de personalidade e à dignidade humana na relação de trabalho.

No plano internacional, estatuiu a Convenção da ONU de 1926 (Decreto 58.563/66), o quanto segue:

“Art. 1º Para fins da presente Convenção fica entendido que: A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade; […]”

Mais adiante, com a edição do Código Penal Brasileiro, em 1940, em que pese a possibilidade de ocorrência, por parte do empregador, do aviltamento da dignidade do trabalhador, impingindo-lhe a superexploração e a escassez de condições adequadas de higiene, saúde e segurança, dentre outras, para a caracterização de trabalho análogo ao escravo, considerava-se conditio sine qua non o reconhecimento do cerceamento da liberdade de locomoção.

Vejamos a redação original conferida ao art. 149 do Código Penal Brasileiro, em 1940:

“Art. 149: Reduzir alguém a condição análoga à de escravo:
Pena – Reclusão, de dois a oito anos”

Perceba-se que a tipificação era excessivamente aberta, dificultando o entendimento dos requisitos necessários para a caracterização do tipo penal. E, por encontrar-se previsto no Capítulo VI do Código penal, acerca dos crimes contra a Liberdade Individual, a interpretação prevalente ocorria no sentido de que, para a caracterização do delito, necessário se fazia a perda da liberdade em seu sentido estrito, qual seja, de locomoção.

Em 2003, o art. 149, CP, foi alterado pela Lei nº 10.803/03, e o conceito de trabalho escravo deixa de dar enfoque exclusivo à liberdade de locomoção do trabalhador para se centralizar no princípio da dignidade humana, privilegiando a perspectiva kantiana de que:

“o homem é um fim em si mesmo e, por isso, não pode ser tratado como objeto nem ser usado como meio de obtenção de qualquer objetivo, como a servidão.”

Preceitua a atual redação do art. 149 do Código Penal:

“Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: […]
§ 1 o Nas mesmas penas incorre quem:
I – Cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – Mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. […]”

Para uma perfeita compreensão de todas as hipóteses de enquadramento do trabalho em condições análogas à de escravo, conjuga-se ao art. 149, CP, a leitura do art. 203 do mesmo diploma, em seu parágrafo 1º e incisos, senão vejamos:

“Art. 203 – Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho:
[…]
§ 1º Na mesma pena incorre quem:
I – Obriga ou coage alguém a usar mercadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida;
II – Impede alguém de se desligar de serviços de qualquer natureza, mediante coação ou por meio da retenção de seus documentos pessoais ou contratuais. […]”

Assim, contemporaneamente, para muito além do cerceamento da liberdade de locomoção do trabalhador, consideram-se práticas passíveis de caracterização do delito, o trabalho forçado ou obrigatório, o trabalho em jornadas exaustivas, o trabalho em condições degradantes, a servidão contemporânea, bem como o trabalho com imposição ao trabalhador de retenção compulsória no local de trabalho ou de seus documentos.

Cabe ressaltar que tais condutas são espécies do trabalho em condições análogas à de escravo, envolvendo não somente a coação física, mas também a coação moral e psicológica do trabalhador.

Acerca da caracterização de cada uma das hipóteses de enquadramento do trabalho análogo ao escravo, passamos a discorrer a seguir:

1) DO TRABALHO FORÇADO OU OBRIGATÓRIO:

A Convenção nº 29 da OIT, de 1930, (Decreto 41.721/57), conceitua o trabalho forçado como:
Art. 1º “todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”.

A proteção contra os trabalhos forçados ou em condições análogas à de escravo recebeu larga disciplinação no cenário internacional, com destaque para a Convenção nº 105 da OIT (Decreto 58.822/66) que salienta os termos e obrigações assumidas pelos países-membros da OIT na Convenção 29, fomentando a abolição de toda forma de trabalho forçado ou obrigatório, nos termos de seu art. 1º:

“Todo País-membro da Organização Internacional do Trabalho que ratificar esta Convenção compromete-se a abolir toda forma de trabalho forçado ou obrigatório dele não fazer uso:

a) Como medida de coerção ou de educação política ou como punição por ter ou expressar opiniões políticas ou pontos de vista ideologicamente opostos ao sistema político, social e econômico vigente;
b) Como método de mobilização e de utilização de mão-de-obra para fins de desenvolvimento econômico
c) Como meio de disciplinar a mão-de-obra;
d) Como punição por participação em greves;
e) Como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa.”
Considere-se ainda que não configura hipótese de trabalho forçado ou obrigatório o serviço militar obrigatório, o trabalho inerente às obrigações cívicas do cidadão, o trabalho executado como consequência de condenação por decisão judicial, dentre outros que a lei assim estabelece.

2) DO TRABALHO EM JORNADAS EXAUSTIVAS:

As jornadas exaustivas não se confundem com a realização de horas extras. São, em verdade, jornadas que violam a dignidade do trabalhador. Não há aqui a existência de um caráter objetivo de quantidade de horas em labor. O excesso é aferido no caso concreto, levando em conta fatores como o tempo em serviço, a atividade, a frequência da ocorrência, a intensidade e o desgaste físico ou mental em razão do trabalho, dentre outros capazes de demonstrar o esforço excessivo no caso concreto.

Na ausência de uma lei definidora de um parâmetro, importante se faz destacar o conceito de jornada de trabalho exaustivo trazido pela Orientação nº 03 da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo- CONAETE do Ministério Público do Trabalho:

Orientação 03: “Jornada de trabalho exaustiva é a que, por circunstâncias de intensidade, frequência, desgaste ou outras, cause prejuízos à saúde física ou mental do trabalhador, agredindo sua dignidade, e decorra de situação de sujeição que, por qualquer razão, torne irrelevante a sua vontade”.

Pela redação deste dispositivo, percebemos que, além da caracterização de um esforço intenso por parte do trabalhador, necessário se faz o reconhecimento da irrelevância de sua vontade em cumprir a jornada de trabalho, não havendo opção outra a não ser submeter-se às exigências patronais.

3) DO TRABALHO EM CONDIÇÕES DEGRADANTES:

Jornadas em condições degradantes são aquelas que exploram a mão-de-obra do trabalhador fornecendo-lhe condições deploráveis e miseráveis de manutenção, sem nenhuma garantia sequer do mínimo necessário e digno ao trabalhador.

Em linhas gerais, o trabalho em condições degradantes resta caracterizado quando da aferição do conjunto de indícios. Diferencia-se de uma mera irregularidade pois consubstancia uma situação de fato, na qual é possível identificar que as condições de trabalho não oferecem condições ínfimas para garantir a dignidade do trabalhador, ou seja, quando os direitos da personalidade do trabalhador são aviltados, lhes transformando em meros instrumentos aptos à consecução dos objetivos exploratórios do empregador.

O Ministério Público do Trabalho, através da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo- CONAETE, conceitua o trabalho em condições degradantes conforme se segue:

Orientação 04. “Condições degradantes de trabalho são as que configuram desprezo à dignidade da pessoa humana, pelo descumprimento dos direitos fundamentais do trabalhador, em especial os referentes a higiene, saúde, segurança, moradia, repouso, alimentação ou outros relacionados a direitos da personalidade, decorrentes de situação de sujeição que, por qualquer razão, torne irrelevante a vontade do trabalhador”.

Ressaltamos ainda que, assim como nas atividades exaustivas, a Orientação 04 da CONAETE salienta a irrelevância da vontade do trabalhador em sujeitar-se às condições impostas pelo empregador, reforçando, outrossim, o aspecto de “coisificação” do trabalhador.

4) DA SERVIDÃO CONTEMPORÂNEA:

Também chamada de “Truck system” ou “sistema de barracão”, nessa modalidade, o próprio empregador estabelece o comércio acessível aos trabalhadores e os induz a consumir seus produtos a preços exorbitantes, fazendo com que, ao longo do tempo, contraiam dívidas impagáveis e permaneçam prestando serviços até o pretenso momento da quitação de seus débitos. Pode envolver a coação física, como também a coação moral e psicológica.

A Convenção 95 da OIT (Decreto 41.721/57) dispõe, em seu artigo 7º, item 2, acerca do combate ao “truck system”:

“[…] quando o acesso a outras lojas ou serviços não for possível, a autoridade competente tomará medidas apropriadas no sentido de obter que as mercadorias sejam fornecidas a preços justos e razoáveis, ou que as obras ou serviços estabelecidos pelo empregador não sejam explorados com fins lucrativos, mas sim no interesse dos trabalhadores.”

No mesmo sentido, vejamos o art.462 da Consolidação das Leis do Trabalho:

“Art. 462 – Ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo quando este resultar de adiantamentos, de dispositivos de lei ou de contrato coletivo. […]
§ 2º – É vedado à empresa que mantiver armazém para venda de mercadorias aos empregados ou serviços estimados a proporcionar-lhes prestações ” in natura ” exercer qualquer coação ou induzimento no sentido de que os empregados se utilizem do armazém ou dos serviços.
§ 3º – Sempre que não for possível o acesso dos empregados a armazéns ou serviços não mantidos pela Empresa, é lícito à autoridade competente determinar a adoção de medidas adequadas, visando a que as mercadorias sejam vendidas e os serviços prestados a preços razoáveis, sem intuito de lucro e sempre em benefício dos empregados.
§ 4º – Observado o disposto neste Capítulo, é vedado às empresas limitar, por qualquer forma, a liberdade dos empregados de dispor do seu salário.”

Destacamos, ainda, que a servidão por dívida caracteriza uma forma de cerceamento da liberdade de locomoção diversa da concepção americana “lock and key” (fechadura e chave), a qual presume que a restrição da liberdade de locomoção ocorre mediante o aprisionamento e/ou enclausuramento do trabalhador.

Por diversas vezes, o trabalhador sente-se aprisionado a essa sistemática exploratória também em obediência aos próprios valores morais, entendendo-se realmente em dívida em relação ao empregador.

5) DO TRABALHO COM RETENÇÃO COMPULSÓRIA NO LOCAL DE TRABALHO OU DE DOCUMENTOS PESSOAIS/ CONTRATUAIS DO TRABALHADOR:

O art. 149, parágrafo 1º, incisos I e II do Código Penal combinado com o art. 203, parágrafo 1º, inciso II, do mesmo diploma, caracteriza como hipótese de trabalho em condições análogas à de escravo a conduta de obstaculizar o desligamento do trabalhador das atividades laborais mediante coação ou por retenção de documentos pessoais ou contratuais.

Na ocorrência de retenção de documentos de trabalhadores pelo empregador ou seus prepostos, há que se verificar, além dos prazos legais, se a finalidade da conduta está relacionada à retenção dos trabalhadores no local de trabalho.

Na situação do trabalho do estrangeiro em situação migratória irregular, tal expediente tem o intuito de impedir que o trabalhador possa se locomover livremente desprovido de passaporte. Não é incomum o empregador de má fé venha a reter qualquer tipo de documentação de seu trabalhador com a finalidade de mantê-lo no local de trabalho utilizando-se, para tal fim, também de coação física, moral ou psicológica.

Ressaltamos que, em um mesmo cenário fático, poderemos encontrar a conjugação de todas essas práticas ou de apenas uma e ainda assim, restará configurado o trabalho com redução a condição análoga à de escravo.

A legislação penal brasileira, ao aperfeiçoar a redação do art. 149, CP, colaborou sobremaneira para a instrumentalização do combate ao trabalho análogo ao de escravo.

Se anteriormente, a caracterização das práticas análogas à escravidão prescindia da demonstração do alijamento da liberdade de locomoção do trabalhador, atualmente, a ótica do ordenamento se volta para a subjugação, seja através do uso da força ou de meios fraudulentos e maliciosos, bem como da desconsideração da vontade do trabalhador e da fomentação da miséria, tão somente visando a obtenção de vantagens econômicas ao empregador.

Muito embora a legislação penal seja a responsável pela criação dos parâmetros atuais na matéria, na seara trabalhista, o reconhecimento do trabalho em condições análogas à de escravo não está adstrito aos requisitos penais, nem depende da persecução penal ou mesmo de condenação criminal.

Nesse sentido, oportuna se faz a citação de José Carlos Souza Azevedo:

“Tal fato não impede, pela ótica civil e trabalhista, autuação do infrator pela fiscalização do trabalho (auditores-fiscais) e da responsabilidade coletiva perante o Ministério Público do Trabalho, pois as lesões, ainda que para o mais legalista magistrado possa não ser considerado como trabalho escravo, não deixaram de afrontar preceitos legais trabalhistas, que embasam a atuação do TEM ou dão ensejo à repercussão coletiva; que fundamentam os pedidos do MPT de adequação de conduta, reparação do dano, compensação do dano e indenização por dano moral coletivo.”

Em linhas gerais, essas são as considerações basilares para o entendimento da sistemática atual de exploração do trabalho em condições análogas à de escravo. Um fenômeno que, infelizmente, ainda persiste na atualidade, vitimando trabalhadores no âmbito das relações rurais como também nas relações de trabalho urbanas.

Referências:

1) Ministério Público Federal. Câmara de Coordenação e Revisão, 2 Roteiro de atuação: contra escravidão contemporânea / coordenação e organização de Raquel Elias Ferreira Dodge, Subprocuradora-Geral da República. – 2. ed. – Brasília: MPF/2ªCCR, 2014. 174 p. (Série Roteiro de Atuação, 2)
2) VASCONCELOS, Danilo Nunes. Conceituação de trabalho escravo contemporâneo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6353, 22 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86710. Acesso em: 15 dez. 2023.
3) Manual de Combate ao Trabalho em Condições Análogas às de Escravo. Manual de Combate ao Trabalho em Condições análogas às de escravo Brasília: MTE, 2011. 96 p. 1. Trabalho Escravo, Manual, Brasil. 2. Combate Trabalho Escravo, Brasil. 3. Proteção Trabalho Escravo, Manual Brasil. I. Brasil. Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). II. Título.
4) AZEVEDO, José Carlos Souza. Trabalho escravo: atuação do ministério público do trabalho nas regiões sul e sudeste do estado do Pará. Direitos fundamentais do trabalho na visão de procuradores do trabalho, São Paulo: LTr, 2012, 41.
5) FLAITT, Isabela Parelli Haddad. O trabalho Escravo à Luz das Convenções ns. 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho. Disponível em https://international.vlex.com/vid/trabalho-luz-internacional-508921554 acesso em 15/12/23.
6) CONAETE https://mpt.mp.br/pgt/publicacoes/?atuacao=conaete&td=orientacoes,acesso em 15/12/2023, às 18:49 hs.

Paula Aléssio Veloso

Advogada. Consultora jurídica. Conciliadora formada pela EJEF "Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes" e com formação complementar pelo "Centro de Mediadores". Pós graduada em Direito Público pela Unipotiguar. Pós graduada em Gestão Estratégica de pessoas pela Universidade Braz Cubas.
Pós graduanda em Direito e Processo do Trabalho Negocial.

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