sexta-feira, 26/julho/2024
ColunaTrabalhista in focoO dano morte decorrente do acidente de trabalho e seus desdobramentos atuais

O dano morte decorrente do acidente de trabalho e seus desdobramentos atuais

Coordenadora: Ana Claudia Martins Pantaleão

As recentes decisões do STF a respeito das Ações Diretas de Inconstitucionalidade de nº 6050, 6069 e 6082, trazidas à análise do excelso tribunal por impulso de ação coletiva movida em favor dos trabalhadores vitimados pelo desastre de Brumadinho, nos trouxe uma maior clareza acerca do reconhecimento do chamado “Dano Morte” no tocante aos acidentes de trabalho.

Em linhas gerais, o Dano Morte se trata de hipótese de dano de natureza extrapatrimonial. Tem por fato gerador a ofensa ao direito de personalidade primordial de todos os seres humanos: a vida. À partir do entendimento da morte como uma forma de dano em relação à própria vítima, passamos a desenvolver o tema ora trazido à discussão.

DOS DANOS EXTRAPATRIMONIAIS

Os danos extrapatrimoniais são caracterizados pela ofensa aos atributos de personalidade. Tratam-se de lesões imateriais. Danos cometidos contra a subjetividade do indivíduo.

No tocante aos direitos da personalidade e nos dizeres de Carlos Roberto Gonçalves, em sua obra “Direito Civil Brasileiro”, temos: “A concepção de direitos da personalidade apoia-se na ideia de que, a par dos direitos economicamente apreciáveis, destacáveis da pessoa de seu titular, como a propriedade ou o crédito contra um devedor, outros há, não menos valiosos e merecedores da proteção da ordem jurídica, inerentes à pessoa humana e a ela ligados de maneira perpétua e permanente. São os direitos da personalidade, cuja existência tem sido proclamada pelo direito natural, destacando-se, entre outros, o direito à vida, à liberdade, ao nome, ao próprio corpo, à imagem e à honra.”

Assim, quando falamos em ofensa aos direitos de personalidade, falamos também da ofensa à garantia constitucional que respalda todos os seres humanos, indistintamente, acerca do reconhecimento da dignidade da pessoa humana.

Para fins do presente estudo, trataremos o princípio da dignidade da pessoa humana como garantidor de uma gama de demais direitos, tais como: a) direitos de ordem moral; b) direitos inerentes à integridade física; c) direito inerentes à integridade psicológica.

Carlos Alberto Bittar subdivide os danos extrapatrimoniais entre aqueles relacionados entre o indivíduo para com a sociedade e aqueles relativos à pessoa em si considerada.

Pertencem à primeira categoria quaisquer lesões de direitos que digam respeito à integridade moral do indivíduo. Na segunda categoria, encontramos os direitos relacionados à integridade psíquica e física da pessoa.

Por conseguinte, e, acordo com a construção supra, podemos inferir que os danos extrapatrimoniais, quando especificamente relacionados ao evento morte, podem tanto ser de natureza direta – inerentes ao de cujus e decorrentes da lesão ao direito à vida – quanto de natureza indireta -inerentes às vítimas indiretas e fundados no prejuízo de afeição e cuja base se encontra na lesão à integridade psíquica de terceiros.

DANO MORTE X DANO EM RICOCHETE

Importante distinção a ser realizada é a diferença das figuras do dano morte e do dano em ricochete.

Embora ambos institutos caracterizem hipóteses de dano extrapatrimonial e possam decorrer do mesmo sinistro, tratam-se de modalidades diferentes de danos, levando em conta não somente o bem jurídico atingido, como também o titular do direito.

Como já conceituado, o dano morte se funda na lesão da integridade física e do direito à vida. É hipótese de dano direto. A vida e a integridade física são os bens jurídicos os quais se busca indenizar através da reparação pelo dano morte. Ainda, considerando os bens jurídicos tutelados, percebemos que a titularidade do direito pertence ao falecido.

O Dano em ricochete trata-se do dano ocorrido de forma oblíqua. É o dano sofrido por terceiros em razão do evento morte. A indenização pelo dano em ricochete visa reparar os danos psicológicos e o sofrimento experimentado oriundos pela perda do ente familiar.

Embora o dano em ricochete também vise a reparação de um dano de natureza extrapatrimonial, percebemos que o bem jurídico tutelado por este difere do objeto da tutela jurídica do dano morte.

Assim, em que pese o fato gerador de ambos os danos poder ser o mesmo, os bens jurídicos atingidos e os titulares do direito diferem entre si. Não havendo como prosperar quaisquer incertezas acerca da diferenciação e caracterização de cada qual.

No caso específico de Brumadinho, ressalte-se que os danos em ricochete já haviam sido objeto de acordo em ação civil pública impetrada pelo Ministério Público do Trabalho em relação às famílias que se habilitaram no processo. O que não excluiu a validade da nova ação proposta pelo Sindicato representante da categoria a qual os 270 funcionários falecidos pertenciam, no intuito de ver reconhecido o direito às famílias da indenização pelo dano morte, decorrente do acidente de trabalho.

DA TRANSMISSIBILIDADE E LEGITIMIDADE PARA VINDICAR A INDENIZAÇÃO PELO DANO MORTE

A possibilidade de terceiros receberem indenizações de natureza extrapatrimonial decorrentes de danos suportados pela vítima enfrenta alguns questionamentos.

Há quem defenda que a morte havida de forma instantânea não ensejaria o direito à indenização considerando que, nesta hipótese, não haveria sofrimento por parte do falecido.

Contudo, conforme já salientado, através da indenização pelo dano morte o que se pretende ver ressarcido não é o sofrimento da vítima, mas sim o alijamento do bem jurídico primordial da vítima, qual seja, a vida.

O artigo 5º da Constituição Federal prevê, em seu caput, a garantia ao direito à vida. Portanto, uma vez ofendido tal direito, constitucionalmente reconhecido e juridicamente tutelado, não se torna razoável o entendimento de que a lesão a tal direito não seja passível de se tornar indenizável.

Tal como preceitua Savigny “Não há ação sem direito; não há direito sem ação, a ação segue a natureza do direito.” (grifo nosso)

Até meados da segunda metade do século passado, a doutrina prevalente acerca do assunto alegava que a extinção da personalidade jurídica seria o fator determinante e obstativo ao direito à indenização, qual seja, se a morte causa a perda da personalidade jurídica, também se perde o direito a qualquer forma de ressarcimento relativa ao de cujus.

Uma vez considerados os bens morais atrelados ao seu titular de forma personalíssima, incapazes seriam de subsistir ao falecimento do titular do direito, já que terceiros não seriam capazes de experimentar a angústia e a dor acometida pela vítima do dano. Assim, somente os bens de natureza patrimonial poderiam sobreviver em relação ao titular.

Embora tal argumento se firme na legitimidade de parte e na titularidade do direito ofendido, lembremo-nos do que estatui o art. 927 do Código Civil que preceitua: “Aquele que, por ato ilícito (arts 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”

Ainda no mesmo raciocínio, consideremos o art. 189, Código Civil: “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts 205 e 206.” (grifo nosso)

Ora, pela construção legal existente no Código Civil, não se pode afirmar que o direito do titular da pretensão seja extinto pela morte, mas tão somente pela inobservância dos prazos de prescrição e decadência ali previstos, tal como colacionado pelo ilustre Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Amaury Rodrigues, em brilhante palestra proferida a respeito do tema.

Assim, temos que a morte não extingue o direito. E em havendo o direito e a existência de um ato ilícito como fato gerador de tal, iminente se faz o direito ao ressarcimento em detrimento da perda do direito de personalidade.

A jurisprudência atual e a doutrina moderna acerca do tema contornam todos os argumentos acima considerados partindo do pressuposto que o crédito correspondente ao dano moral tem natureza patrimonial.

Neste diapasão, vejamos a doutrina de Mário Moacyr Porto, que nos traz a seguinte lição: “A dor não é bem que componha o patrimônio transmissível do de cujus. Mas me parece de todo em todo transmissível, por direito hereditário, o direito de ação que a vítima, ainda viva, tinha contra o seu ofensor. Tal direito é de natureza patrimonial.”

No mesmo sentido, Léon Mazeaud:” O herdeiro não sucede no sofrimento da vítima. Não seria razoável admitir-se que o sofrimento do ofendido se prolongasse ou se estendesse ao herdeiro e este, fazendo sua a dor do morto, demandasse o responsável, a fim de ser indenizado da dor alheia. Mas é irrecusável que o herdeiro sucede no direito de ação que o morto, quando ainda vivo, tinha contra o autor do dano. Se o sofrimento é algo entranhadamente pessoal, o direito de indenização do dano moral é de natureza patrimonial, e tal como, transmite-se aos sucessores.”

Ainda, reconheceu o TST, em 2013: “Indenização por dano moral. Sucessão pelo espólio. Prova do Dano Moral. Diante dos termos do art. 943 do CC, o direito de exigir a reparação e a obrigação de prestá-la transmite-se com a herança. Conquanto a afronta à moral atinja tão somente os direitos subjetivos da vítima, o direito à respectiva indenização transmite-se com o falecimento do titular possuindo o espólio ou os herdeiros legitimidade para prosseguir com a ação indenizatória por dano moral ajuizada pelo de cujus. Ademais, determina o art. 43 do CPC, de aplicação subsidiária ao Processo do Trabalho, que ‘ocorrendo morte de qualquer das partes, dar-se-á a substituição pelo seu espólio ou pelos seus sucessores, observado o disposto no art. 265’, caso dos autos. […] Recurso de Revista não conhecido” (TST, 6ª Turma, RR nº 723-38.2011.5.09.0008, Rel. Min Aloysio Corrêa Veiga, DJ 13 Dez 2013.) (grifo nosso)

A título de reforço, citamos ainda decisão do STJ a respeito do tema: “A posição atual e dominante que vigora nessa corte é no sentido de que embora a violação moral atinja apenas o plexo de direitos subjetivos da vítima, o direito à respectiva indenização transmite-se com o falecimento do titular do direito. Possuindo o espólio, ou os herdeiros, legitimidade ativa ad causam para ajuizar ação indenizatória por danos morais em virtude de ofensa moral suportada pelo de cujus.

Logo, pelo quanto explanado, podemos concluir que o dano não é transmissível, mas o direito de ação, bem como o direito à respectiva indenização decorrente do dano são transmissíveis aos herdeiros/espólio e os créditos respectivos passam a compor a universalidade de bens do de cujus.

No tocante aos julgados recentes do STF, ponto interessante a ser considerado é o de que entidade de classe representativa dos direitos dos trabalhadores falecidos foi reconhecida como legitimada para impetrar ação coletiva buscando o direito do reconhecimento do dano morte aos trabalhadores vitimados no desastre de Brumadinho, seguindo a sistemática do Código de defesa do Consumidor (art. 81, § único, III), aplicável para a defesa de direitos individuais homogêneos.

Em que pese alegações da parte ré de que, os funcionários falecidos não mais poderiam ser substituídos e representados pela entidade sindical pois já não se pode considerar o de cujus como membro de uma categoria. A decisão considerou que a lesão de direito individual homogêneo possui origem comum e não deslegitima o ente sindical de representar seus membros mesmo após falecidos, eis que o direito à indenização restou integrado ao patrimônio jurídico dos falecidos no momento de suas mortes, momento este em que ainda eram funcionários da empresa ré e ainda figuravam como membros da categoria representada pelo ente sindical o qual ajuizou a ação coletiva.

DO ARBITRAMENTO DOS VALORES

Inicialmente, cabe ressaltar que o ressarcimento pelo dano morte é unitário, vez que sua reparação visa indenizar a lesão de um único bem jurídico, diferentemente das indenizações baseadas no prejuízo de afeição das vítimas indiretas, as quais devem ser concedidas a quantas vítimas oblíquas forem reconhecidas.

Cabe salientar que decisão atual do STF no tocante à matéria afastou a possibilidade de tarifação do dano de natureza extrapatrimonial, reconhecendo que os critérios previstos no art. 223, G, caput e §1°, introduzidos pela lei 13647/17, deverão ser observados pelo julgador tão somente como critérios orientativos para fundamentar o arbitramento do quantum indenizatório.

Embora o STF não tenha reconhecido a inconstitucionalidade do art. 223, G, caput e § único da CLT e tenha optado pelo reconhecimento de tal dispositivo como parâmetro orientativo, por intermédio de interpretação conforme, atualmente podemos afirmar de forma segura que o valor do dano morte não está vinculado ao valor do salário contratual do trabalhador falecido.

Assim, a variação do valor arbitrado deverá ocorrer de acordo com as circunstâncias ponderáveis do caso concreto, em coerência e consonância com o princípio da isonomia e observando-se parâmetros razoáveis a fim de que o caráter pedagógico da condenação estimule as empresas a adotar medidas profícuas de prevenção aos acidentes de trabalho.

Salientamos, ainda, que a indenização pelo dano morte bem como as demais de natureza extrapatrimonial das vítimas indiretas não prejudica o reconhecimento das indenizações de natureza patrimonial, tais como o pensionamento aos beneficiários, fundado no art. 948, II, do Código Civil, bem como eventuais despesas médicas e as despesas funerárias.

Referências Bibliográficas:

ARAÚJO, Adriana Carmo Sampaio em “Direitos do homem: uma reflexão da sua evolução com enfoque na dignidade da pessoa humana”, artigo disponível em https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/3188

BITTAR, Carlos Alberto em Responsabilidade Civil nas atividades nucleares, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1985.

BONAVIDES, Paulo em Curso de Direito Constitucional, 12ª edição, Malheiros Editores, 2002.

GONÇALVES, Carlos Alberto em Direito Civil Brasileiro, volume IV, Editora Saraiva, 2007.

PORTO, Mário Moacyr em Temas de responsabilidade Civil, São Paulo, revista dos Tribunais, 1989.

OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de em Indenizações por acidente de trabalho ou doenças ocupacionais, 9ª edição, editora LTR, 2016.

Paula Aléssio Veloso

Advogada. Consultora jurídica. Conciliadora formada pela EJEF "Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes" e com formação complementar pelo "Centro de Mediadores". Pós graduada em Direito Público pela Unipotiguar. Pós graduada em Gestão Estratégica de pessoas pela Universidade Braz Cubas.
Pós graduanda em Direito e Processo do Trabalho Negocial.

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