quinta-feira,28 março 2024
ArtigosMorte Encefálica e início da vida: analisando incompatibilidades

Morte Encefálica e início da vida: analisando incompatibilidades

Em 12 de abril de 2012, com relatoria do Ministro Marco Aurélio, o Supremo Tribunal Federal considerou lícita a prática do aborto de fetos anencéfalos (ADPF 54), por ausência de tipicidade. Basicamente não reconheceu nem mesmo a equiparação dessa prática ao aborto legalmente permitido no Código Penal Brasileiro, em seu artigo 129, II, conhecido como “aborto sentimental, humanitário, piedoso ou ético”, qual seja, aquele cuja gravidez resulta de estupro. O afastamento foi da tipicidade, sequer da antijuridicidade.
Segundo a doutrina, a justificativa para a legalidade do aborto, por opção livre da gestante, em caso de estupro, se dá visando à preservação de sua “dignidade humana” e saúde psíquica, tendo em vista o sentimento de aversão pelo ser humano em gestação por sua ligação com um ato traumático, bem como os danos psicológicos da rememoração das circunstâncias em que a cópula ocorreu.
Na ADPF 54 a prática do aborto de anencéfalos é reconhecida devido à atipicidade da conduta, que se daria em cumprimento a uma interpretação constitucional do Código Penal. Consta do corpo decisório o argumento de que a morte encefálica tornaria a remoção do feto indiferente, eis que não haveria vida humana por ausência de atividade cerebral. Enfim, os bens jurídicos ligados à gestante estariam ali para serem tutelados, enquanto que o bem jurídico “vida intrauterina” não se faria presente.
“In verbis”:

“Asseverou estarem as mencionadas mulheres cientes dos riscos à saúde física e psíquica e terem diferenciado o evitável do inevitável, a tragédia da tortura. Isto é, ‘de um lado, o inevitável da tragédia e, de outro, o sofrimento desnecessário e evitável da continuidade da gravidez com diagnóstico de morte cerebral. Quiseram a supressão da situação torturante’”.

No seguimento, o Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução 1989, de 10 de maio de 2012, “definiu os critérios para o diagnóstico de anencefalia” que servirão “de parâmetro para efeitos da possibilidade de interrupção da gravidez”.
Fato é que o STF acabou reconhecendo que a presença de atividade cerebral marca o início da vida humana intrauterina e sua ausência significa a inexistência dessa vida humana, de modo que o anencéfalo, sem essa atividade, é um cadáver e não um ser humano em gestação. Aquilo que se chamaria de aborto, segundo o STF, não passaria da remoção de um cadáver de dentro do corpo da gestante. Advogou-se ainda, no corpo da ADPF 54, o reconhecimento da figura do “crime impossível”, por “absoluta impropriedade do objeto”, nos termos do artigo 17, CP. Senão vejamos:

“Para o Professor Dílio Procópio Drummond de Alvarenga, ‘dogmaticamente, a razão da impunibilidade do aborto do feto anencefálico – que é um morto cerebral, prende-se à ausência de tipicidade, fundada em três causas: falta de objeto jurídico, falta de sujeito passivo próprio e falta de objeto material. O fato não é mais do que um quase crime, na modalidade de crime impossível”.

O objetivo deste trabalho é a abordagem do argumento que sustenta essa decisão do STF, bem como toda a defesa do aborto de anencéfalos sob um prisma crítico. Inicialmente será apresentado um breve estudo sobre os critérios médico – legais para reconhecimento da morte para, em seguida, analisar a coerência ou incoerência da utilização de um mesmo critério para determinação do início da vida e de seu fim.
Finalmente, as ideias expostas serão repassadas, apresentando-se uma manifestação conclusiva.

CRITÉRIOS DE RECONHECIMENTO MÉDICO – LEGAL DA MORTE

A doutrina apresenta algumas situações que podem ser tomadas como o “momento da morte”. Vejamos:

a) Morte Clínica – paralisação das funções cardíaca e respiratória.
b) Morte Cerebral – ausência de impulsos elétricos cerebrais (linha reta no eletroencefalograma ) . Observe-se que a doutrina médica diferencia “morte cerebral” de “morte encefálica”, sendo a segunda mais ampla, abrangendo, destarte, o cérebro, o tronco cerebral e o cerebelo. Além disso, na morte encefálica há comprometimento irreversível da “vida de relação” e da “coordenação da vida vegetativa”, ao passo que na morte cerebral ou cortical, ocorre somente o comprometimento da “vida de relação”.
c) Morte Biológica – deterioração celular.

Os autores se dividem no que se refere a identificar alguma dessas “mortes” como aquela que deva ser tida como o verdadeiro momento da morte.
Desde logo, porém, é preciso pontuar que, embora na área da Biologia, seja a morte biológica a melhor definição, inclusive apresentando a morte como um “processo” e não um “fato instantâneo”, não é possível utilizar tal critério no mundo jurídico, que exige a determinação de um exato momento de morte, seja no campo penal (v.g. consumação de um crime de homicídio), seja em outras áreas jurídicas (v.g. transmissão da herança). Para o campo jurídico o conceito de morte como deterioração celular seria muito amplo e de constatação conturbada. Deixe-se então para a biologia e para a lúgubre noção poética de Pessoa, o pensamento de que o ser humano é “cadáver adiado que procria”.
Encontrar-se-ão posições tanto na doutrina jurídica, como na de Medicina Legal, defendendo o momento da morte como sendo ora a “morte clínica”, ora a “morte cerebral ou encefálica” ou até mesmo exigindo sua coincidência.
A Lei de Transplantes (Lei 9434/97), adota o critério da morte cerebral (mais especificamente a “morte encefálica”) para o diagnóstico (art. 3º, “caput”), podendo passar a servir de baliza para as decisões.

Também a doutrina espanhola reconhece a morte cerebral (encefálica) como a definidora do momento da morte.
Não obstante toda a problemática na definição do que constitua morte, a questão pode ser facilmente dirimida por um critério pragmático, qual seja, verificar, em qualquer caso, a ocorrência da “irreversibilidade”, seja da morte cerebral, seja da morte clínica ou de ambas. Sendo a situação irreversível em qualquer caso, devidamente constatado por profissional médico, pode-se concluir pela efetiva ocorrência da morte.
Como ensina Carvalho:

Morte é “a desintegração irreversível da personalidade em seus aspectos fundamentais morfofisiológicos, fazendo cessar a unidade biopsicológica como um todo funcional e orgânico, definidor daquela personalidade que assim se extinguiu”.

Também neste diapasão o conceito de Santos:

“Ab initio, parece-nos que a Morte, é a desintegração do dinamismo vital, psicológico; sociológico e cultural do indivíduo Humano, em Direito denominado Pessoa (do latim persona, ae) de modo total e irreversível”.

Importa, portanto, para a constatação de morte que esta seja definitiva ou irreversível. Em suma, o morto não é mais um ser humano, uma pessoa nem em ato, nem em potência, para usar de uma categoria aristotélica. Isso na medida em que o ser em potência é o que tem a capacidade ou os atributos para vir a ser, enquanto que o ser em ato já é.

O ANENCÉFALO É UM MORTO?

É visível que o Supremo Tribunal Federal utilizou, para a definição da presença ou não de vida em um ser em processo de formação (início da vida), o mesmo critério utilizado para a definição de vida ou morte em um ser em processo final de desintegração (fim da vida). Nesse caminho chegou à conclusão de que o anencéfalo não detém o bem jurídico “vida humana”.
Como bem alerta Santos:

“O conceito de morte encefálica para a morte do homem inclui perigosas consequências. Por exemplo, os bebês com anencefalia não pertencem mais à comunidade do homem. Não há mais alguém, mas apenas alguma coisa. Não obstante, o conceito de morte encefálica é aceito mundialmente”.

Nitidamente, como já visto, foi nessa senda de exclusão dos anencéfalos da comunidade dos homens, dos seres humanos ou pessoas que o STF trilhou.
Sob o ponto de vista Médico – Legal, o fez com assento em ampla aceitação desse critério para determinação da morte de seres humanos já nascidos, inclusive para remoção de órgãos para fins de transplante na maior parte do mundo e na legislação brasileira específica (Lei 9434/97 – artigo 3º.).
A questão praticamente inexplorada é saber se esse critério, considerado válido para definir a morte da pessoa no final de sua jornada, pode também ser compatível para concluir pela ausência de vida ou morte do feto.
Aduz Angotti Neto:

“Achar que do critério pragmático de morte encefálica pode-se deduzir o critério biológico e ontológico para se definir o início da vida humana é um verdadeiro non sequitur. É uma analogia boba, burrice mesmo.
Não precisa nem ser médico para perceber isso. Basta pensar logicamente para compreender que critério de morte para pessoas em processo de término da vida é algo totalmente distante do estabelecimento de um critério para o início da vida. Critério este já muito bem estabelecido no caso dos humanos com base na embriologia e na genética”.

Afinal, há seres vivos que sequer são dotados de cérebros ou que possuem cérebros muito rudimentares (v.g. vegetais, minhocas, insetos em geral etc.). Para que haja vida não há necessidade alguma da presença de um cérebro funcional. Mas, e para que haja uma vida qualificada como “humana”? Também não. O ovo não tem cérebro, o embrião não tem cérebro e o feto, mesmo saudável, vai desenvolvendo aos poucos o sistema nervoso central. Nem por isso é possível questionar que sejam seres vivos e que sejam humanos, pois daquela mulher grávida não nascerá jamais um repolho, um porco, uma pomba ou um cachorro e sim um ser humano.
Kaczor critica a postura segundo a qual se parte do pressuposto de que se a morte cerebral (encefálica) “define o fim da vida humana, assim também a vida cerebral, o cérebro presente e ativo, marca o início da pessoa humana”.
Valendo-se da lição do neurologista Alan Shewmon, apresenta Kaczor a função do cérebro não como constitutiva e integradora da vida humana, mas como harmonizadora:

“A lógica hegemônica para igualar morte cerebral com morte pessoal é que o cérebro dá unidade integradora ao corpo transformando-o de mero conjunto de órgãos e tecidos em organismo como um todo. Em apoio a essa conclusão, frequentemente se cita a impressionante lista da miríade de funções integradoras do cérebro. Em exame mais meticuloso e depois da definição operacional de termos, de qualquer modo, se descobre que em sua maioria as funções integradoras do cérebro não são na realidade somaticamente integradoras e, reciprocamente, em sua maioria as funções somaticamente integradoras do corpo não são mediadas pelo cérebro. Com respeito à vitalidade no nível do organismo o papel do cérebro é mais harmonizador do que constitutivo, melhorando a qualidade e o potencial de sobrevivência de um organismo que se pressupõe vivo. A unidade integradora de um organismo complexo inerentemente não se pode localizar, é feição holística empenhando a integração mútua entre partes, não coordenação de cima para baixo ditada por uma parte sobre a multiplicidade passiva de outras partes. A perda da unidade integradora somática não é razão que se possa alegar fisiologicamente para igualar morte cerebral com morte do organismo como um todo”.

No entanto, não estaria a exposição de Shewmon relacionada à chamada “Morte Biológica”, a qual, como visto, não serve ao mundo do Direito? Efetivamente, o autor está tratando do funcionamento do organismo que se pode dar sem as funções do encéfalo e isso está diretamente ligado à vida e morte biológicas. Assim sendo, o argumento de Shewmon somente é válido para afirmar que, biologicamente, a morte encefálica não é um critério seguro.
Dessa maneira, é necessário compreender como argumenta Kaczor para procurar invalidar a morte encefálica como critério para determinação do início da vida, ainda que sob o prisma jurídico e ético. Em suas palavras:

“Ainda que a morte cerebral seja o meio legal para determinar a morte, ela não é um bom caminho para indicar quando começa a vida pessoal. Stephen Schwartz salienta que se usa a morte cerebral como critério para determinar a morte da pessoa precisamente porque o ser humano não vai mais poder atuar como pessoa no futuro depois da morte cerebral. A cessação dessa capacidade leva à determinação da morte. De outro lado, se há potencialidade para a atividade humana normal, o caso se vê muito diferente; se o cérebro apenas temporariamente não está funcionando adequadamente e o ser humano vai ser capaz de desabrochar no futuro, não ocorreu morte cerebral. Mas esse é precisamente o caso análogo ao do típico feto ou embrião humano: a ausência de atividade não é permanente, mas temporária, por falta de amadurecimento. Assim, o status fetal é afim ao do coma temporário do qual alguém vai se recuperar totalmente, não ao de morte cerebral.
Poder-se-ia também perguntar por que o cérebro é de importância tão tremenda para a pessoalidade. Minhocas, vespas e formigas têm cérebros, mas dificilmente alguém as contará como pessoas. Surge de novo o problema do alienígena ou do anjo: se entram em cena fazendo suas gestas maravilhosas, mas não têm cérebro, faria realmente sentido negar-lhes a pessoalidade? Esses anjos e alienígenas seriam obviamente pessoas, mesmo lhes ‘faltando’ o cérebro; assim, ter cérebro não é essencial para ser pessoa.
E mais: se alguém sustenta que ter cérebro marca o começo da pessoalidade, então ela começa no primeiro trimestre da gestação. Mas, de outra parte, caso se requeira cérebro pleno e completo, a pessoalidade começa mais tarde. Realmente o desenvolvimento do cérebro não para no parto, mas continua na infância. Entendido em seu sentido mais amplo, o desenvolvimento do cérebro com o aprendizado pode continuar a vida toda de alguém”.

A grande questão, porém, está em que o argumento de Kaczor para que não se possa usar o critério de morte encefálica para determinar o início da pessoalidade da mesma forma que se faz para determinar seu fim, tem por sustento o fato de que o ser humano em formação tem potencial de se desenvolver, enquanto que o ser humano morto está numa situação de irreversibilidade, a qual, como já visto, é critério seguro para reconhecimento da morte. No caso do ovo, do embrião o do feto, ainda em formação, haverá um cérebro em funcionamento um dia, essa potencialidade é realmente decisiva para fazer com que o critério de início da vida não possa ser o mesmo adotado para o fim da vida humana.
Contudo, os argumentos de Kaczor se diluem, no caso específico dos anencéfalos, porque estes não são dotados desse potencial desenvolvimento. É preciso reconhecer esse limite da crítica da equiparação dos critérios de início e fim da vida humana.

Acontece que, para além da argumentação sobredita, ligada à questão da potencialidade de desenvolvimento cerebral, à existência de uma seta para o futuro no caso do ovo, embrião ou feto e sua inexistência no caso de um homem ou mulher mortos; para além desse problema encontra-se o perigo da generalização da equiparação. Num primeiro momento, se equipara o anencéfalo ao morto porque não tem funcionalidade cerebral ou encefálica. Em seguida, a tendência é pretender colocar de lado a questão da potencialidade exposta por Kaczor e promover uma extensão da equiparação ao ovo, embrião ou feto, ainda que sadios, mas não dotados de um sistema nervoso central totalmente desenvolvido ou mesmo nem iniciado (v.g. no caso do ovo ou do embrião). Na verdade essa ampliação do argumento da anencefalia já se operou em controvertida decisão do STF, de relatoria do Ministro Luiz Roberto Barroso (HC 124306, da 1ª. Turma), quando foi admitido como legal o abortamento até o terceiro mês de gravidez, sob a fundamentação de que ainda não existiria vida a ser tutelada.

A questão realmente importante é saber que pode haver vida independentemente de funcionamento ou mesmo presença de um cérebro e que se essa vida está se desenvolvendo no útero de uma mulher, então somente pode ser uma vida humana, que, só pelo fato de ser uma vida humana, merece consideração e dignidade. A utilização do critério de fim da vida humana para o seu início no caso dos anencéfalos, enfrentaria bem a objeção de Kaczor quanto à potencialidade presente no ovo, embrião ou feto e inexistente no indivíduo morto. Essa potencialidade não está realmente no anencéfalo, mas o perigo (ou melhor, a experiência já em curso) do extrapolamento dessa teorização para alcançar todos os conceptos ainda não dotados de função cerebral, está a desaconselhar sua adoção. E a extensão ainda pode ser maior, pode converter-se o argumento dos anencéfalos em pretexto para a eliminação precoce de crianças com graves disfunções cerebrais, de adultos com prognóstico ou mesmo diagnóstico de que não terão um pleno desenvolvimento cerebral, ou que perderam tal condição, e assim por diante ladeira abaixo. Se o leitor tem dúvida, observe o Habeas Corpus já proferido pelo STF, bem como, principalmente, leia a absurdidade escrita sem o mínimo de pudor em “Should the Baby Live: The problem of Handicapped Infants” (“O bebê deve viver? O problema das crianças deficientes”), de autoria de Peter Singer e Helga Kushe. Chegam os autores a prenunciar que suas ideias poderão ser mal vistas pelos leitores da obra que sejam portadores exatamente das deficiências que eles propõem serem bons motivos para matar crianças já nascidas!

Esse perigoso caminho é previsto por Kaczor ao asseverar mais adiante:

“Ao se perguntar se todo ser humano é pessoa, deve ficar bem claro que essa questão não é simplesmente sobre aborto. A questão de quais seres humanos temos de tratar com respeito entra em jogo em temas éticos numerosos demais para uma lista exaustiva, sobre relações raciais, rivalidades nacionais, conflitos religiosos, escravidão, pena de morte, gêmeos siameses, seres humanos deformados ou deficientes, limpeza étnica, para mencionar umas poucas”.

Por isso o autor rechaça, com bons argumentos, a legitimidade de uma concepção meramente gradualista ou de avaliação de certos atributos como critério para decidir quem merece respeito à vida, quem é pessoa, apontando a pura e simples humanidade do homem como norte para o reconhecimento da dignidade humana.
É preciso ter consciência de que se a imanência, que vem corroendo a transcendência no pensamento materialista reducionista, tem dificuldades enormes para fundamentar ético – filosoficamente a especial dignidade humana por ela mesma, tanto pior para os homens e mulheres e para a humanidade atual. O prejuízo não é somente de empobrecimento teorético e prático, há colocação em perigo de um mínimo de segurança quanto à manutenção da vida humana e da condição humana em sua efetiva dignidade e intangibilidade.
Kaczor defende que a humanidade e o respeito a ela deve decorrer de sua concepção como um “dom”, não como um conjunto de atributos ou uma qualidade isolada que deva ser realizada ou posta em ato. Em suas palavras:

“Com respeito aos seres humanos, a visão do dom é inclusiva; a óptica da realização é exclusiva. De acordo com a óptica inclusiva, todos os seres humanos, sem se olhar qualquer consideração que seja, têm uma dignidade fundamental pela qual se lhes deve respeito. De acordo com a óptica exclusiva, nem todos os seres humanos merecem respeito nem participam da dignidade fundamental, mas só os seres humanos portadores de certas características particulares”.

Ao eleger certos atributos ou capacidades de realização como critério para fazer jus ao reconhecimento da dignidade humana, começa a se dar azo àquilo que se tem denominado de “Princípio de Proporcionalidade”. Nessa situação, se dado atributo em realização é tomado como referência, ocorre que a dignidade de alguém aumenta ou diminui de acordo com a maior ou menor presença ou pode mesmo desaparecer diante da ausência desse atributo ou realização. Se tenho mais “X” sou mais humano, se tenho menos “X”, sou menos humano, se não tenho “X” não sou humano. Dessa forma, haveria seres humanos mais humanos que outros. Um exemplo típico: ao eleger a racionalidade como critério, então se uma pessoa é um gênio é, consequentemente, mais humana e digna do que uma pessoa com capacidade intelectual mediana e muito mais humana e digna do que um deficiente mental! Passa, enfim, a haver “graus de dignidade e de valor entre as pessoas”. Essa “valorização de realização separa as pessoas entre elas”. Esse tipo de pensamento é excludente e divisor. E nesse contexto não é claramente compreensível como se pode ter chegado a afirmar “que todas as pessoas são iguais perante a lei ou moralmente iguais”. Essa concepção de igualdade na diversidade acaba sendo pervertida a tal ponto que é apresentada como um “decreto arbitrário” que pode também ser arbitrariamente revogado.
É de se crer que não seja desejável abrir mão da igualdade das pessoas diante do ordenamento jurídico e das regras da moralidade, conquista inestimável da humanidade, lapidada ao longo dos séculos. Dessa forma, é preciso encontrar algo que nos torne a todos iguais em algum aspecto, uma característica comum a todo e qualquer ser humano:
“Se os seres humanos de algum modo são fundamentalmente iguais, essa propriedade tem que se fundar em algo que tenham igualmente. Aí o problema da igualdade se revolve. (…), a humanidade biológica é caracteristicamente participada igualmente por todos os seres humanos, de modo que é a humanidade de cada um que garante a pessoalidade”.

Agora sim temos um critério razoável e proporcional para fundar a igualdade das pessoas perante a lei jurídica e a lei moral:

“Basear a pessoalidade dos seres humanos em sua humanidade participada não é inclusivo demais, não inclui seres que vemos obviamente que não são pessoas, nem de menos, não excluí seres humanos em coma, deficientes físicos ou mentais, adormecidos ou anestesiados”.

Nada mais do que simplesmente adotar um critério ontológico de definição da pessoa humana (e, consequentemente, de sua dignidade), afirmando que ser pessoa constitui “a própria essência, a substância ou mesmo, o ser do homem”.
E não se trata, necessariamente, de uma visão religiosa do homem, conforme esclarece Kaczor:

“Nem deveria a leitura da pessoalidade pelo dom ser vista como visão religiosa confessional. A leitura pelo dom já esta atuando implícita nas artes médicas via o conceito de patologia. Patologia não é simplesmente falta de alguma coisa. Mais, uma patologia é incapacidade, inadequação ou falha em realizar uma disposição que, nas circunstâncias relevantes, pode e deve ser realizada, dada a dotação do ser em pauta. Pássaros que não podem falar nem por isso estão sofrendo de patologia. Um ser humano que em seguida a um acidente não pode falar está sofrendo de patologia física ou mental. A prática da medicina, para seres humanos e não humanos, pode apelar e tem apelado para dons que um determinado ser pode e deve ser capaz de atuar, dadas as condições requeridas, maturidade e apoio”.

Se o argumento de Kaczor para contrastar a adoção de um mesmo critério para o fim e o início da vida com a indicação da irreversibilidade do óbito e, ao reverso, a potencialidade do ovo, embrião ou feto, sofria alguma limitação com a questão dos anencéfalos, agora não mais. Ocorre que o que importa é a pertença à espécie humana e a potencialidade ínsita à estrutura do “ser” do homem, não importando se essa potencialidade humana está, por algum motivo (v.g. patologia), obstada. O que importa é o “ser”, a substância do homem em termos do conjunto da humanidade e suas características, não a avaliação casuística. Como destaca o autor:

“Obviamente, os seres humanos não estão todos atuando racionalmente num tempo dado, mas cada ser humano é membro de um conjunto de seres (a saber, a humanidade) que podem, em certas circunstâncias, perfazer ações especificamente definidas como racionais”.

E no seguimento, de forma ainda mais explícita:

“E mais: uma avaliação pelo florescer humano nos permite identificar e lamentar as deficiências mentais como falta penosa de florescer. É em virtude de uma consideração do florescer específico da espécie que tomamos como perda séria para eles e para toda a comunidade humana que seres humanos mentalmente prejudicados não podem florir plenamente como a natureza dos seres que são. Um ser humano mentalmente incapacitado e um cão de guarda normal e sadio são igualmente incapazes de exercer o raciocínio distintamente humano e a liberdade, mas a deficiência do ser humano é trágica, enquanto a incapacidade natural do cão não tem consequências. Essa diferença se baseia no fato de o ser humano, mas não o cão, deixar de poder exercer sua forma de florescer específica da espécie. Desde que os seres humanos mentalmente deficientes participam de uma forma de florescer específica da espécie, ordenada aos bens da racionalidade e da liberdade, são pessoas humanas”.

Ou seja, mesmo no caso dos anencéfalos, o início de uma vida humana não pode ser atribuído à capacidade presente ou futura, casuística, de desenvolvimento pleno de funções cerebrais, racionalidade etc.. A aurora de uma vida humana está ligada à pertença daquele ser à espécie humana, o que é incontestável, inclusive sob o ponto de vista biológico e genético. A pretensão de eleição de caracteres específicos para indicar quem merece ou não ter a vida reconhecida e preservada como digna, já rendeu frutos venenosos ao longo da história:

“A história fornece evidência vigorosa em favor de uma sociedade inclusiva na qual todos os seres humanos sejam respeitados como pessoas com dignidade, contraposta a uma sociedade exclusiva. Na verdade, considerada a questão à luz da história, ressalta notável que cada vez em que se preferiu a visão de realização à de dotação cometeram-se erros morais grosseiros”.

Nós, seres humanos, não podemos ser considerados, como querem alguns, como simples “mentes incorporadas”, de modo que passamos a existir quando nossos cérebros nos elevam à consciência e deixamos de existir quando essa consciência se esvai. Isso porque “o valor humano depende de dom de ser antes que de desempenho”. Se o critério de morte encefálica é útil e aceitável como fim da existência, isso não significa que possa ser adotado para esclarecer quando há o início de uma vida humana.
Ademais é preciso ter em consideração que:
“A razão pela qual o cadáver recém – falecido não é organismo, a razão pela qual é adequadamente considerado morto e não vivo, apesar de continuarem muitas células vivas no corpo, é que suas partes não mais funcionam como parcelas integradas, coordenadas de um todo, contribuindo e recebendo coordenadas com as outras, contribuindo para a saúde e o bom funcionamento do todo”.

Diversamente com o embrião:
“Embriões estão em plena posse de característica mesma que distingue um ser humano vivo de um morto, a capacidade de todas as células do corpo funcionarem juntas como organismo, com todas as partes atuando de maneira integrada, para a vida continuada e a saúde do corpo como um todo”.

E essa característica de organismo coordenado está igualmente presente num embrião ou feto anencéfalo ou completamente saudável.

A conclusão que se pode considerar definitiva em Kaczor sobre o tema deste artigo é a seguinte:
“Um caso particularmente difícil envolve uma doença diagnosticada que se prevê fatal pouco tempo após o nascimento. É difícil para a posição pró – vida lidar com o caso, pois o bebê haverá de morrer, abortado ou não. Se o aborto se realizar ao menos poupa-se a mãe de continuar a gravidez, dar à luz e ter de aguardar seu bebê morrer. O princípio de que devemos nos empenhar em salvar o bem que podemos em toda situação, mesmo difícil como essa, pareceria justificar o aborto de feto humano com doença fatal para poupar a mãe do trauma que terá de suportar se não abortar.
Ao considerar a ética de tais casos, importa notar que o aborto mesmo impõe ônus consideráveis à mulher. Qualquer das opções disponíveis nessas circunstâncias horríveis (abortar ou esperar a morte natural do bebê) é trauma provável. Dito isto e em vista da dignidade de quem seria abortado, parece claro que a expectativa de vida de uma pessoa não faz diferença sobre se podemos matá-la ou não. Já estar agendada a execução de alguém não nos autoriza – pessoas particulares – a eliminar mais cedo o inquilino do corredor da morte. Na verdade, o prazo de vida de uma pessoa varia muito dependendo de fatores culturais, etnia, gênero e cuidados disponíveis de saúde. O prazo de vida prospectivo de um ser humano é irrelevante para se admitir sua morte deliberada. Assim, se o ser humano no útero é pessoa, não se permite matá-lo mesmo se previsto que morra de outras causas dentro de poucas semanas” (grifos nossos).
Ainda é tempo de perceber que, mesmo que se movam com “boas intenções” com relação à mulher grávida de uma criança anencéfala, os defensores da destruição irreversível do feto nessas circunstâncias acabam ensejando o clima e o espaço fértil para fundamentar uma série de teorizações futuras que apresentam a morte como a panaceia para os males. Isso devido a uma falha ontológica em seu raciocínio (a falta de percepção do que seja um ser humano para além de suas funções cerebrais), bem como pela imprevisão das consequências que advém de uma ideia. Com razão afirma Weaver que “a boa intenção é fundamental, mas não é suficiente”.
Não se deve olvidar que :

“Uma vez postos em movimento, os processo culturais adquirem impulso próprio, desenvolvem sua própria lógica e geram novas realidades múltiplas, confrontando os indivíduos com um mundo exterior objetivo, poderoso e distante demais para ser ‘ressubjetivado’”.

Não diverge o escólio de Morin, ao tratar da chamada “Ecologia da Ação”:

“O que quer dizer ecologia da ação? Significa que toda ação humana, a partir do momento em que é iniciada, escapa das mãos de seu iniciador e entra no jogo das interações múltiplas próprias da sociedade, que a desviam de seu objetivo e às vezes lhe dão um destino oposto ao que era visado”.

De qualquer forma, é fato que o Supremo Tribunal Federal já criou dois abortos legais por via jurisprudencial (o dos anencéfalos e aquele até o terceiro mês de gestação), os quais não são previstos na norma permissiva do artigo 128, I e II, CP. No caso da anencefalia a decisão tem poder vinculativo, pois resulta da ADPF 54. Quanto ao aborto até o terceiro mês, foi uma decisão incidental e sem efeito “erga omnes”, mas com potencial de se ampliar.

CONCLUSÃO

O presente trabalho teve por objetivo analisar criticamente a utilização indistinta do critério de reconhecimento de morte para o final da vida humana e para também marcar o início da vida humana.
Foram expostos os critérios apontados pela dogmática Médico Legal para determinação da morte, demonstrando-se que tem prevalecido o da morte encefálica, não sem o acréscimo da característica imprescindível da “irreversibilidade”.
A adoção desse critério da morte (no final da vida) para decisão sobre a atipicidade do “aborto de anencéfalos” foi posta em discussão. Deixou-se clara a impropriedade da assunção de um mesmo critério para determinar o fim da vida humana e o seu início.

Entretanto, a discussão da incompatibilidade desses critérios, por si só, considerando o fundamento de que o ser humano já nascido quando morre não tem mais potencialidade, e o ovo, embrião ou feto, ainda se podem desenvolver plenamente, inclusive com relação ao funcionamento cerebral e encefálico, não se mostrou suficiente com relação aos anencéfalos, porque estes também não têm a potencialidade de desenvolvimento.

A grande questão constatada foi que há uma falha de percepção ontológica quanto ao ser (criança) que habita o álveo materno. Essa falha ontológica coloca o intérprete e aplicador do Direito em chão movediço e abre caminho para uma crescente adoção da morte e da exclusão seletiva como “solução final” para uma série de situações em que se lida com alguém que é deficiente, seja com relação ao seu funcionamento mental ou qualquer outra anormalidade. Pior que isso (se é que é possível falar em “pior”), não são somente deficiências que podem ser pretexto para destruição de vidas (nascidas e em gestação), mas o mero fato de não ter ainda um sistema nervoso desenvolvido, tal como se vê, na prática e no Brasil, em outra decisão do STF, permissiva do abortamento até o terceiro mês de gestação, independentemente de problema algum de saúde da gestante, do feto ou mesmo da origem da gravidez (estupro). A tendência para que essa “solução final” de morte e exclusão se amplie para um número cada vez maior de indivíduos para os quais haverá uma autorização expressa para matar, é enorme, tanto que já dá origem a textos supostamente “bioéticos” (sic), como aquele de Singer e Kushe.

Infelizmente, em nome da dignidade humana, se corrompe e banaliza exatamente a própria dignidade humana, e essa tendência não parece que vai recuar, senão ampliar-se cada vez mais na atualidade. Talvez e somente talvez, quando já tiver produzido todos os males de que é capaz, surgirá a consciência do erro. Nesse quadro, nada mais adequado do que finalizar o presente texto com o pequeno poema de Brecht, intitulado “Lendo Horácio”:

“Mesmo o dilúvio
Não durou eternamente
Veio o momento em que
As águas negras baixaram.
Sim, mas quão poucos
Sobreviveram”!


REFERÊNCIAS

ANGOTTI NETO, Hélio. Disbioética III – O extermínio do amanhã. Brasília: Monergismo (no prelo).

__________. Disbioética. Volume I. Brasília: Monergismo, 2017.

BAUMAN, Zygmund. Legisladores e Intérpretes. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

BRECHT, Bertolt. Poemas. Trad. Paulo Cesar Souza. 3ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Os Abortos do STF. Disponível em www.jus.com.br, acesso em 22.07.2017.

CONDIC, Maureen L. Life: Defining the beginning by the end. First Things. n. 133, may, p. 50 -54, 2003.

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Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

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