sexta-feira, 26/julho/2024
ArtigosA não incidência do ICMS sobre a demanda contratada de energia elétrica

A não incidência do ICMS sobre a demanda contratada de energia elétrica

I – Introdução
O julgamento do Recurso Extraordinário n. 593.824-7/SC em 24/04/2020 trouxe de volta discussão antiga acerca da não incidência do ICMS sobre a demanda contratada de energia elétrica. Tal assunto se encontra em discussão há muito tempo, tanto no STJ quanto no STF, e impacta as grandes empresas que precisam negociar contratos específicos de energia elétrica com as concessionárias.

A decisão pela não incidência do ICMS nesse caso constitui-se grande ajuda que desonera as empresas consumidoras e deslegitima cobranças em curso dentro das faturas de energia. Certamente é uma vitória do contribuinte, submetido a um sistema tributário extremamente oneroso, burocrata e complexo.

II – O que é a demanda contratada de energia elétrica?

O sistema de energia elétrica brasileiro compõe-se das redes de distribuição e das subestações das concessionárias, que juntas alimentam vários tipos de consumidores.

Para que se distribua corretamente a energia elétrica, mister se faz planejar a expansão e manutenção do sistema, o que garantirá o atendimento de todos os usuários. Para que a distribuição correta ocorra, é de suma importância que o limite máximo de utilização da energia requerida seja conhecido; tal limite é o produto da soma de todas as cargas instaladas em cada uma das unidades consumidoras que operam simultaneamente.

A soma das cargas instaladas e operantes ao mesmo tempo é denominada demanda, esta expressa por meio de quilowatts (kW). Assim, a demanda é o máximo da capacidade exigida pelo sistema elétrico em determinado momento.

A Resolução Normativa n. 414/2010, emitida pela Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, assim conceitua a demanda contratada:

Demanda de potência ativa a ser obrigatória e continuamente disponibilizada pela distribuidora, no ponto de entrega, conforme valor e período de vigência fixados em contrato, e que deve ser integralmente paga, seja ou não utilizada durante o período de faturamento, expressa em quilowatts (kW).
A ideia de demanda acima é comumente utilizada como parâmetro para a elaboração de contratos de fornecimento de energia elétrica para uma unidade consumidora. O estabelecimento de uma demanda contratada insta que o consumidor se mantenha dentro de seus limites, evitando a ultrapassagem da carga disponível e, consequentemente, a sobrecarga do sistema elétrico.
A demanda contratada não se confunde com o consumo efetivo da energia elétrica, que é medido em “quilowatts-hora” e diz respeito ao período em que o sistema elétrico efetivamente abasteceu determinada carga.

O valor a ser pago pela demanda contratada se refere ao total contratado pela unidade consumidora para o período, este servindo como um valor mínimo. Alguns contratos definem uma multa caso a unidade consumidora ultrapasse o valor contratado (demanda ultrapassada), podendo a tarifa aplicada, em caso de ultrapassagem, ser superior a tarifa cobrada pela demanda efetivamente contratada.

Além dos custos de eventual multa pela ultrapassagem da demanda contratada, há ainda o pagamento pela demanda não utilizada. Explica-se: suponha-se que a unidade consumidora faça projetos que visem otimizar o seu consumo de energia elétrica e consiga economizar tanto que o seu consumo sequer atinja a demanda mínima que “comprou”. Mesmo tendo consumido abaixo da demanda efetivamente contratada, ainda assim a unidade consumidora permanecerá obrigada ao pagamento do valor da demanda mínima estabelecida em contrato.

Na hipótese acima, para enxugar as despesas, poderá o consumidor da demanda energética contratada renegociar o valor mínimo firmado em contrato, para que este reflita o seu novo consumo.

III – A não incidência do ICMS sobre a demanda contratada

A Constituição Federal de 1988 alçou a energia elétrica ao status de mercadoria, em seu art. 155, § 3º, quando enunciou que “à exceção dos impostos de que tratam o inciso II do caput deste artigo e o art. 153, I e II, nenhum outro imposto poderá incidir sobre operações relativas a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País.”

A energia elétrica, que na Carta Magna antecedente estava incluída na tributação do Imposto Único de competência da União, foi deslocada, na CRFB/1988, para a competência dos estados-membros com o ICMS.

Tal possibilidade abriu precedentes para que os estados-membros instituíssem hipóteses de incidência para a cobrança desse imposto sobre a energia elétrica, interpretando de diversas maneiras o fato gerador do ICMS.

O fato gerador do ICMS, de acordo com MESSA (2016, p. 359) está nas “operações relativas à circulação de mercadorias e sobre a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.”

Sendo a energia elétrica uma mercadoria, e, portanto, passível da incidência do ICMS, não obstante o fato gerador já estabelecido, os estados-membros têm entendido pela incidência do imposto não só na transmissão da propriedade ou posse da energia em si, mas também em outras hipóteses, o que tem deixado o contribuinte confuso.

Alguns estados, pois, têm realizado a cobrança do ICMS não só na circulação da energia elétrica, como também na sua disponibilização, contrariando o próprio fato gerador do imposto. Em razão disso, muitas empresas consumidoras de energia elétrica por demanda contratada têm ingressado com ações, sob a alegação de que a simples colocação da energia elétrica à disposição do consumidor não configura o fato gerador do imposto.

De acordo com a tese ventilada pelos contribuintes, quando se fala em energia elétrica, a circulação só se aperfeiçoa quando a energia sai da linha de transmissão e ingressa no estabelecimento da unidade consumidora (transmissão de propriedade ou posse). A energia mantida à disposição e não utilizada pelo consumidor permanece retida nas linhas de transmissão, e assim, não se configura o fato gerador, porque a energia não “passa para as mãos” do consumidor – flui livre, “sem dono” e pode ser vendida a outrem.

O Superior Tribunal de Justiça já havia julgado o tema, editando, por conseguinte, a súmula n. 391, STJ, que diz que “o ICMS incide sobre o valor da tarifa de energia elétrica correspondente à demanda de potência efetivamente utilizada.”

Outra decisão proferida pelo STJ que merece destaque é a resultante do Recurso Especial n. 1.299.303/SC, que, submetido ao rito dos Recursos Repetitivos (art. 543-C, CPC/1973), ainda sob a égide do Código de Processo Civil de 1973, dizia o seguinte:

EMENTA: RECURSO ESPECIAL. REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. ART. 543-C CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO. ENERGIA ELÉTRICA. INCIDÊNCIA DO ICMS SOBRE A DEMANDA “CONTRATADA E NÃO UTILIZADA”. LEGITIMIDADE DO CONSUMIDOR PARA PROPOR AÇÃO DECLARATÓRIA C/C REPETIÇÃO DE INDÉBITO. 1. Diante do que dispõe a legislação que disciplina as concessões de serviço público e da peculiar relação envolvendo o Estado-concedente, a concessionária e o consumidor, esse último tem legitimidade para propor ação declaratória c/c repetição de indébito na qual se busca afastar, no tocante ao fornecimento de energia elétrica, a incidência do ICMS sobre a demanda contratada e não utilizada. 2. O acórdão proferido no REsp 903.394/AL (repetitivo), da Primeira Seção, Ministro Luiz Fux, DJe de 26.4.2010, dizendo respeito a distribuidores de bebidas, não se aplica aos casos de fornecimento de energia elétrica. 3. Recurso especial improvido. Acórdão proferido sob o rito do art. 543-C do Código de Processo Civil.

Contudo, a controvérsia permaneceu, porque o STJ não afastou a incidência do imposto sobre toda a demanda contratada, levando a questão para o Supremo Tribunal Federal por meio do Recurso Extraordinário n. 593.824-7/SC, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, com a seguinte ementa:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ICMS. INCIDÊNCIA. OPERAÇÕES RELATIVAS A ENERGIA ELÉTRICA. BASE DE CÁLCULO. VALOR COBRADO A TÍTULO DE DEMANDA CONTRATADA (DEMANDA DE POTÊNCIA). RELEV NCIA JURÍDICA E ECONÔMICA DA QUESTÃO CONSTITUCIONAL. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.

O STF, na ocasião do julgamento do indigitado julgado, ocorrido em 24/04/2020, entendeu e fixou a tese de que “a demanda de potência elétrica não é passível, por si só, de tributação via ICMS, porquanto somente integram a base de cálculo desse imposto os valores referentes àquelas operações em que haja efetivo consumo de energia elétrica pelo consumidor.”
Portanto, da conjugação dos dois pronunciamentos – tanto do STJ quanto do STF – temos que não há que se cogitar a incidência do ICMS nem sobre a demanda contratada nem sobre a demanda de ultrapassagem, haja vista não ter havido transmissão da energia elétrica para o estabelecimento do consumidor, que caracterizaria o fato gerador do imposto.
Os impactos das decisões, sobretudo a do Supremo Tribunal Federal, sobre as indústrias e os demais contribuintes que têm na energia elétrica um de seus principais insumos será muito benéfico, tendo em vista a sua aplicação não só aos processos judiciais em curso, como também às autuações fiscais que tramitam administrativamente.


IV – Referências
BRASIL. Constituição (1988). 22ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

BRASIL. Código Tributário Nacional (1966). 22ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

PADILHA, Rodrigo. Direito Constitucional. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

MESSA, Ana Flávia. Direito Tributário e financeiro. 7ª Ed. São Paulo: Editora Rideel, 2016.

ANEEL. Demanda Contratada. Disponível em: < https://www.aneel.gov.br/busca?p_p_id=101&p_p_lifecycle=0&p_p_state=maximized&p_p_mode=view&_101_struts_action=%2Fasset_publisher%2Fview_content&_101_returnToFullPageURL=%2Fweb%2Fguest%2Fbusca&_101_assetEntryId=15047783&_101_type=content&_101_groupId=656835&_101_urlTitle=demanda-contratada&inheritRedirect=true >. Acesso em 18 de maio de 2020.

GALHARDO, Alexandre. A incompatibilidade da incidência do ICMS sobre as demandas contratada e de ultrapassagem nos contratos de fornecimento de energia elétrica. Portal Tributário, 2020. Disponível em: < http://www.portaltributario.com.br/artigos/incompatibilidadeicms.htm >. Acesso em 19 de maio de 2020.

LARA, Daniela Silveira; MATTOS, Manuela Brito. STF: ICMS incide apenas sobre demanda contratada de energia elétrica efetivamente consumida. Rolim, Viotti e Leite Campos Advogados, 2020. Disponível em: < https://rolimvlc.com/informes/stf-icms-incide-apenas-sobre-demanda-contratada-de-energia-eletrica-efetivamente-consumida/ >. Acesso em 18 de maio de 2020.

MOTA, Douglas; AMARAL, Thiago Abiatar Lopes. STF analisará, em repercussão geral, a incidência de ICMS sobre demanda contratada. Demarest Advogados, 2019. Disponível em: < https://www.demarest.com.br/stf-analisara-em-repercussao-geral-a-incidencia-de-icms-sobre-demanda-contratada/ >. Acesso em 18 de maio de 2020.

NASRALLAH, Amal. STF define em repercussão geral que não incide ICMS sobre a demanda contratada. Tributário nos bastidores, 2020. Disponível em: < https://tributarionosbastidores-com-br.cdn.ampproject.org/c/s/tributarionosbastidores.com.br/2020/04/stf-define-em-repercussao-geral-que-nao-incide-icms-sobre-a-demanda-contratada/amp/ >. Acesso em 18 de maio de 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.299.303/SC. Recorrente: Estado de Santa Catarina. Recorrida: Multicolor Têxtil S/A. Relatora: Ministra Assusete Magalhães. Brasília, 04 de setembro de 2012. Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroUnico&termo=00522906620118240000&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea >. Acesso em 18 de maio de 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 593.824-7/SC. Recorrente: Estado de Santa Catarina. Recorrida: Madri Comércio de Compensados e Laminados Ltda. Relator: Ministro Edson Fachin. Brasília, 30 de setembro de 2008. Disponível em: < http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2642244 >. Acesso em 18 de maio de 2020.

 

 

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Advogada. Pós-graduada em Direito Tributário e Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Pós-graduanda em Direito Empresarial pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Atuação profissional em Contratos e no varejo de Shopping Centers.

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