quinta-feira,28 março 2024
ColunaElite PenalRepresentação no Crime de Estelionato e a Interpretação do STJ

Representação no Crime de Estelionato e a Interpretação do STJ

1- Introdução 

O crime de Estelionato fora modificado pelo recente pacote “Anticrime”, a lei 13.964 de 2019, e ação penal que antes era pública incondicionada passou a ser condicionada a representação do ofendido. O que quer dizer que antes da referida alteração legislativa, o inquérito policial se iniciaria independentemente de haver ou não o requerimento daquele que fora ofendido na prática do crime, e agora, após a alteração, a abertura do inquérito policial necessita de forma expressa do requerimento do ofendido.

Uma alteração que se mostra mais benéfica àquele que fora denunciado pela prática desse  delito, visto que a depender dos casos a vítima pode não oferecer a representação e com isso não se iniciará a Ação Penal Pública Condicionada.

Desse modo, cabe a análise quanto a aplicação dessa normal processual nos casos em curso, como os tribunais têm se posicionado e o entendimento doutrinário e jurídico quanto a aplicação dessa nova  norma processual.

2- O Crime de Estelionato

O crime de Estelionato tem previsão expressa no Código Penal, em seu artigo 171, apresentando a seguinte redação:

Art. 171 – Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.

Constitui um ilícito onde um sujeito ativo se utiliza de comportamento astucioso para criar uma falsa percepção da realidade, a simulando, ao ponto de induzir a vítima ao erro, visando a obtenção de uma vantagem ilícita em face do prejuízo de outrem.

Logo, a persuasão é o principal meio de atuação do chamado estelionatário, sua engenhosidade, seja através de e-mail, telefone, redes sociais e afins. Mediante uma armadilha planeja, o autor do fato consegue a obtenção da vantagem econômica desejada. Sendo seu principal diferencial justamente o uso de técnicas para levar a vítima ao engano, o que o difere dos demais crimes contra o patrimônio, bem como assevera o Doutrinador Guilher Nucci:

“a principal diferença entre o estelionato e outros crimes patrimoniais é justamente o engano. Diz GALDINO SIQUEIRA que, “se, no furto, há a tirada às mais das vezes, oculta e sempre invito domino; se, no roubo e na extorsão, há o emprego de violência ou de meio intimidativo, no estelionato, o engano é o meio empregado pelo agente para determinar, em seu proveito que, outro, em prejuízo próprio, lhe transfira a coisa. Por isso mesmo que o engano é preordenadamente empregado para conseguir a disposição patrimonial, é um engano artificioso, engendrado e causativo da mesma disposição”.”[2]

O que pode levar o agente a condenação com pena de reclusão de até cinco anos, ou até mais podendo  receber a pena em dobro caso esse crime seja cometido contra idoso, vítima que poderia ser mais facilmente ludibriada em vista de sua vulnerabilidade. Diante disto, é perceptível que essa prática delitiva é grave e praticada de forma significativa no país. Segundo dados do INFOPEN, que até o ano de 2017 haviam 3.206 (três mil duzentos e seis) presos pela prática desse crime.[1]

3- Da Ação Penal do Crime de Estelionato

O Crime de Estelionato (artigo 171 do CP) sofreu uma recente modificação quanto a sua ação penal, que era pública e incondicionada, onde o Ministério Público poderia oferecer denúncia mesmo sem o requerimento da vítima e o inquérito policial se iniciaria independente de haver ou não o requerimento daquele que fora ofendido pela prática do crime. Após a entrada em vigor da lei 13.964 de 2019, conhecida como “lei anticrime”, a ação penal que antes era pública incondicionada passou a ser condicionada a representação do ofendido, com o acréscimo do §5º ao artigo 171 do Código Penal.

Dessa forma a alteração legislativa, impôs que o inquérito policial necessita, de forma expressa, do requerimento do ofendido para que se iniciem as investigações, conforme previsão expressa do artigo 5º, §4º do CPP. De modo que se a vítima não oferecer denúncia, não existirá um inquérito para a apuração desse delito e consequencialmente não haverá denúncia por parte do Ministério Público.

4- Quanto à Aplicação da Lei Processual no Tempo

Questionamentos aparecem quanto a aplicação dessa alteração processual, visto que ação penal trata-se de uma norma de direito processual penal, como seria a sua aplicação? Se seria imediata, teria a sua aplicação somente nos delitos cometidos após a data de publicação da lei ou se essa nova norma poderia retroagir para beneficiar aquele que já fora condenado pela prática do Estelionato.

Antes responder a essas indagações torna-se imprescindível a análise quanto às categorias de normas e as suas formas de aplicação no tempo.

Inicialmente existe a lei penal pura, que dispõe sobre o direito penal em si mesmo, dessa forma versa sobre o limite mínimo e máximo da pena, sobre revogação ou criação de um tipo penal, alteração quanto ao regime de cumprimento de pena e afins, esse tipo de norma possui aplicabilidade após a sua publicação, ou seja, será aplicada para os delitos cometidos após a prática do ato delituoso. No entanto, poderá retroagir para atingir aqueles casos ocorridos anteriores a vigência da norma, desde que seja mais benéfica ao Réu. Caso não seja benéfica, sua aplicação seguirá a regra geral de aplicabilidade em casos posteriores a nova norma.

Também existe a chamada lei processual pura, com fundamentos no artigo 2º do Código de Processo Penal, sendo aquela que não apresenta conteúdo material de Direito Penal e dita somente com relação às normas processuais, aplicando-se o “princípio da imediatidade, onde a lei será aplicada a partir dali, sem efeito retroativo e sem que se questione se mais gravosa ou não ao réu.”[3]

E a lei mista, que apresenta conteúdo penal e processual, e segue a mesmo lógica relacionada a norma penal pura, o que quer dizer aplicação abrangerá os delitos cometidos após a sua vigência e somente retroagirá aos crimes anteriores caso seja para o benefício do réu, jamais para prejudica-lo.

Logo, a partir dessa análise o único questionamento que deve ser feito é se essa nova  norma processual é pura ou se é mista, para compreender a forma de sua aplicação.

4.1- Entendimento Doutrinário Sobre a Aplicação da Mudança na Ação Penal Do Estelionato

A alteração para ação penal pública condicionada a representação no crime de estelionato, fora publicada no dia 24 de dezembro de 2019, e entrou em vigor após 30 dias corridos, ou seja, no dia 23 de janeiro de 2020. Logo a aplicação dessa lei só ocorrerá sobre os crimes cometidos após esse dia 23.

O questionamento que se tem feito é com relação de que forma seria essa norma aplicada aos casos de estelionato ocorridos antes da vigência de sua vigência. Segundo o Doutrinador Aury Lopes Jr. a norma que trata sobre questões de representação de ação pública são leis mistas [4] por isso poderia haver a retroatividade quando for mais benéfica ao réu no processo.

Rogério Sanches apresenta em sua doutrina duas situações diferentes com relação a essa problemática. Em um primeiro momento em que a denúncia já fora apresentada pelo Ministério Público, Sanches afirma que estaríamos de um ato jurídico perfeito, que não seria alcançado mela mudança, ao afirmar que a norma apresentou uma modificação quanto ao direito de representação e não como uma condição de prosseguimento da ação. Em um segundo momento, onde ainda não houver denúncia, afirma o Doutrinador  que somente nesse caso o MP devera “aguardar a oportuna  representação da vítima ou o decurso do prazo decadencial”[5].

Apresenta entendimento diverso o professor de Direito David Matzkeer, que diz que a nova norma terá aplicação em todos os casos que  não houver transitado em julgado. De modo que em sua doutrina afirma que deve

“ser realizada a notificação da vítima ou de seu representante legal para informar se deseja representar criminalmente, para que o processo ou inquérito possa permanecer tramitando, ou até mesmo para continuar o cumprimento da pena. O prazo deverá ser de 30 dias, por analogia ao previsto no artigo 91 da lei 9099/1995. A partir da vigência, notificada a vítima ou seu representante legal, e, não havendo representação ou manifestação de interesse em 30 dias, entendo que a ação penal ou o inquérito policial deverá ser extinto em razão da decadência. Caso não seja extinto, o réu/investigado poderá utilizar a via do habeas corpus para trancar a ação penal ou inquérito.”[6]

Logo ao divergir do entendimento de somente aplicação nos casos onde ainda não houve denúncia, o Professor informa que deve haver a notificação da vítima para apresentar o seu direito de representação ou não à ação penal, dentro do prazo de 30 dias, entendimento que também é seguido pelo Doutrinador Alexandre Morais da Rosa [7], sob pena de extinção do inquérito ou da ação penal já iniciada, por falta de requisito de prosseguibilidade.

Aury Lopes Jr. também apresenta esse entendimento, ao afirmar que essa norma mais benigna para o réu deve retroagir,

“cabendo aos juízes e tribunais (pois ela se aplica em grau recursal) suspender o feito e intimar a vítima (…) Se não representar (deixar passar o prazo)ou se manifestar expressamente no sentido de renunciar ao direito de representar, o feito será extinto, diante da extinção da punibilidade do art. 107, IV do CP.”[8]

4.2- Entendimento do STJ na Aplicação da Mudança na Ação Penal Do Estelionato

Na Quinta turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Habeas Corpus de número 573093, o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca proferiu decisão monocrática seguindo o entendimento do apresentado pelo Doutrinador Rogério Sanches, afirmadno que “a posição mais acertada seria a de que a retroatividade da representação no crime de estelionato deve se restringir à fase policial, não alcançando o processo, o que não se amoldaria ao caso dos autos, considerando a condição de procedibilidade da representação e não de prosseguibilidade.”[9]

Desse modo, o entendimento do Ministro é no sentido que somente haveria a possibilidade de intimação do ofendido para apresentar o seu interesse na representação somente nos processos que ainda estão em fase de inquérito policial, não acobertando os processos em curso que continuaria existindo de forma normal.

O que representa a situação de insegurança jurídica presente no Judiciário Brasileiro, visto que nos tribunais dos pais existem outras formas de análise quanto ao prosseguimento da ação penal no crime de Estelionato.

5- Conclusão

A alteração processual apresentada pela  lei 13.964 de 2019 representa uma medida despenalização, no momento que impõe a necessidade da representação do ofendido como condição de procedibilidade. E por se tratar de uma norma processual mista, é claro o  fato quanto a sua retroatividade para o benefício do denunciado ou do investigado.

O entendimento apresentado pelo ilustre doutrinador Rogério Sanches e retificado pelo Ministro do STJ Reynaldo Soares da Fonseca, representa um entrave ao instituto que visa a retroatividade da norma mais benéfica ao réu. Pois, impede a retroatividade dos casos em curso aplicando essa nova lei somente nos casos em fase de inquérito policial.

Com fundamento de que lei 13.964/2019 apresentou somente uma mudança quanto a condição de procedibilidade, ou seja, a representação na ação pública,  e não com relação a procedibilidade do processo de Estelionato. Essa omissão quanto a continuidade do processo não deveria servir como um impedimento de aplicação nos casos em curso e sim de modo diverso, visto que as lacunas do Direito não devem ser sanadas em prol do prejuízo do réu de forma contrária ao objetivo da lei, que seria uma medida de despenalização. Diante ao exposto parece ser mais plausível análise feita por Aury Lopes Jr., Alexandre Morais da Rosa e David Matzkeer, em prol da retroatividade do norma processual mista mais benéfica ao réu e a favor de um Direito Penal menos punitivista e em prol das garantias constitucionais.

Referências Bibliográficas

[1]http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/infopen-jun-2017-rev-12072019-0721.pdf

[2] Curso de Direito Penal, Parte Especial, Guilherme de Souza Nuccci, volume 2, página 514, Editora Gen.

[3] Direito Processual Penal, Aury Lopes JR., página 126, 17ª edição, editora Saraiava Jur.

[4] Direito Processual Penal, Aury Lopes JR., página 126, 17ª edição, editora Saraiava Jur.

[5] Pacote Anticrime, Rogério Sanches Cunha, página 61, 1ª edição, editora Jus Podivm.

[6] Lei Anticrime, David Matzkeer, página 27, 1ª edição, editora Cia do Ebook.

[7]https://podcasts.google.com/feed/aHR0cDovL2ZlZWRzLnNvdW5kY2xvdWQuY29tL3VzZXJzL3NvdW5kY2xvdWQ6dXNlcnM6Njk5ODQ0MjMyL3NvdW5kcy5yc3M/episode/dGFnOnNvdW5kY2xvdWQsMjAxMDp0cmFja3MvODM3MDgwODk2?hl=pt-BR&ved=2ahUKEwiGu8n40IfqAhVkiOAKHaxgC7UQieUEegQICxAM&ep=6

[8]Direito Processual Penal, Aury Lopes JR., página 129, 17ª edição, editora Saraiava Jur.

[9]https://ww2.stj.jus.br/processo/dj/documento/mediado/?componente=MON&sequencial=108536791&tipo_documento=documento&num_registro=202000865090&data=20200417&tipo=0&formato=PDF

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