sexta-feira, 26/julho/2024
ColunaElite PenalO reconhecimento de pessoas no Processo Penal Brasileiro

O reconhecimento de pessoas no Processo Penal Brasileiro

Para identificar a autoria de crimes, um dos meios utilizados é o reconhecimento de pessoas no processo penal. Esse procedimento deve ser feito pela vítima e testemunhas que presenciaram a ocorrência do delito.

Já existem estudos apontando que a maioria das pessoas que fazem a identificação ficam em dúvida. Alguns dos principais motivos que dificultam a identificação são: o passar do tempo e o uso de elementos como capacete, touca etc.. Nos crimes com ameaça, por exemplo, o uso da arma de fogo impacta diretamente no emocional e psicológico da vítima.

O reconhecimento de pessoas está disposto no artigo 226 do Código de Processo Penal [1]:

Art. 226.  Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;

Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;

IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

Parágrafo único.  O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.

 

É de suma importância para a acusação determinar a autoria de um possível delito, porém, o reconhecimento de pessoa é permeado de desconfianças por parte da defesa. Quando o procedimento ocorre em sede policial, se mal dirigido pode ocasionar danos irreversíveis.

Uma tentativa de combate à má condução no processo penal é feita através da ONG Innocence Project Brasil [2] que atua em casos graves de condenações de inocentes. Muitas vezes as pessoas previamente reconhecidas não obtém mais a oportunidade de reverter a acusação.

A jurisprudência já reconhece a fragilidade da produção da prova por meio do reconhecimento de pessoas no processo penal, conforme demonstra o julgado [3]

1. O reconhecimento fotográfico realizado no âmbito da delegacia de polícia, por si só, não é suficiente para a decretação de um decreto condenatório, especialmente quando, mesmo sendo possível, não é renovado em juízo, sob as garantias do contraditório e da ampla defesa.

Em sede de habeas corpus, o STJ [4] também atuou nesse sentido,

Reconhecimento fotográfico em sede policial não ratificado em juízo – prova insuficiente para a condenação “1. A prova utilizada para fundamentar a condenação do Paciente – reconhecimento fotográfico em sede policial – é de extrema fragilidade, haja vista que, ainda que a inobservância das recomendações legais dispostas no art. 226 do Código de Processo Penal não dê causa a nulidade do ato, a inexistência de confirmação em juízo demonstra a sua insuficiência para embasar uma condenação quando não corroborada por outras provas.”

A problemática não é em si o reconhecimento, e sim, como as memórias humanas são passíveis de uma falha imensa. Dificultando a reconstrução segura de uma identificação. Conforme Matida [5] explana:

[…] Assim, no grupo das variáveis de estimação, podemos reunir tempo de exposição, distância, iluminação, emprego de arma de fogo, o estresse, o efeito da raça diferente, pluralidade de sujeitos envolvidos no delito, disfarces e transcurso temporal etc. Já como variáveis sistêmicas, é adequado agrupar as instruções que o responsável oferece á vítima/testemunha, a composição do enfileiramento, o conhecimento da identidade do suspeito pelo responsável pelo ato, a apresentação do suspeito mais de uma vez. São numerosas as pesquisas, fundamentadas em experimentos empíricos, que constatam que estes fatores podem influenciar o conteúdo da memória humana, fazendo que o recurso a ela mereça cuidados redobrados. […]

Em continuidade sobre o tema, Lopes Jr. [7] destaca,

[…] A presença de arma distrai a atenção do sujeito de outros detalhes físicos importantes do autor do delito, reduzindo a capacidade de reconhecimento. O chamado efeito do foco na arma é decisivo para que a vítima não se fixe nas feições do agressor, pois o fio condutor da relação de poder que ali se estabelece é a arma.  Assim, tal variável deve ser considerada altamente prejudicial para um reconhecimento positivo, especialmente nos crimes de roubo, extorsão e outros delitos em que o contato agressor-vítima seja mediado pelo uso de arma de fogo. […]

Aqui cabe destacar o projeto Prova Sob Suspeita [6] que visa o enfrentamento da precariedade da produção probatória no processo penal brasileiro, caracterizado pelo desrespeito às garantias individuais, violência e racismo.

Nesse sentido, aponta Lopes Jr. [8],

[…] Apesar de ser um importante elemento de convicção, a costumeira falta de observância dos requisitos legais por parte da polícia faz com que – a nosso juízo – o ato deva ser visto com reservas. Ademais, quando repetido em juízo, é cometida uma grave falha: descumprimento do disposto no art. 226, II. Das duas uma:  ou os juízes não colocam o réu ao lado de outras pessoas que com ele tiverem qualquer semelhança, ou convidam pessoas diversas daquelas que participaram do reconhecimento policial. Em ambos os casos, o reconhecimento é induzido. No primeiro, porque o réu é o único presente; no segundo, porque ele é o único visto pela vítima tanto na polícia como em juízo […]

As entidades supracitadas reforçam o suporte para a busca de um julgamento mais justo ou ainda a comprovação da inocência. Atuações de extrema importância em um país no qual a população carcerária é majoritariamente negra e frequentemente alvo de acusações infundadas e provas frágeis.

Com um simples direcionamento de quem seria o acusado, corre-se o risco da inobservância do estrito cumprimento das regras, colocando em xeque a presunção de inocência. É imprescindível o uso do reconhecimento de pessoas no processo penal seja bem conduzido e restrito. Atentando sempre à necessidade e a forma prescrita em lei, a fim de evitar prejudicar qualquer uma das partes envolvidas.

 


REFERÊNCIAS

[1] BRASIL. Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em fevereiro de 2021.

[2] https://www.innocencebrasil.org/

[3] Acórdão 1184184, 20180510048729APR, Relator: SILVANIO BARBOSA DOS SANTOS, 2ª Turma Criminal, data de julgamento: 4/7/2019, publicado no DJE: 12/7/2019. https://pesquisajuris.tjdft.jus.br/IndexadorAcordaos-web/sistj?visaoId=tjdf.sistj.acordaoeletronico.buscaindexada.apresentacao.VisaoBuscaAcordao&controladorId=tjdf.sistj.acordaoeletronico.buscaindexada.apresentacao.ControladorBuscaAcordao&visaoAnterior=tjdf.sistj.acordaoeletronico.buscaindexada.apresentacao.VisaoBuscaAcordao&nomeDaPagina=resultado&comando=abrirDadosDoAcordao&enderecoDoServlet=sistj&historicoDePaginas=buscaLivre&quantidadeDeRegistros=20&baseSelecionada=BASE_ACORDAOS&numeroDaUltimaPagina=1&buscaIndexada=1&mostrarPaginaSelecaoTipoResultado=false&totalHits=1&internet=1&numeroDoDocumento=1184184

[4]HC 488.495/SC. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1841135&num_registro=201900045033&data=20190701&formato=HTML

[5]MATIDA, Janaína. O reconhecimento de pessoas não pode ser porta aberta à seletividade penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-set-18/limite-penal-reconhecimento-pessoas-nao-porta-aberta-seletividade-penal?pagina=2

[6] http://www.provasobsuspeita.org.br/

[7] LOPES JR, Aury. DIREITO PROCESSUAL PENAL. 18a. ed. – São Paulo: Editora Saraiva, 2021.

[8] LOPES JR, Aury. DIREITO PROCESSUAL PENAL. 18a. ed. – São Paulo: Editora Saraiva, 2021.

Advogada (OAB/SC 62.499). Pós-graduanda em Criminologia, Política Criminal e Justiça Restaurativa (Católica-SC), Bacharela em Ciências Jurídicas (Univille). Pesquisadora na área de Direitos Humanos com ênfase em Estudos de Gênero.

Receba artigos e notícias do Megajurídico no seu Telegram e fique por dentro de tudo! Basta acessar o canal: https://t.me/megajuridico.
spot_img

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Mais do(a) autor(a)

Most Read

Seja colunista

Faça parte do time seleto de especialistas que escrevem sobre o direito no Megajuridico®.

Últimas

- Publicidade -