sexta-feira, 26/julho/2024
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Motoristas da UBER são funcionários. Uma análise da decisão.

Coordenadora: Ana Claudia Martins Pantaleão

No dia 14 de setembro de 2023 foi proferida decisão pelo juiz Maurício Pereira Simões, da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo, que causou extremo impacto no país, posto que foi reconhecido o vínculo de emprego entre os motoristas e a empresa Uber, além de obrigar esta empresa ao pagamento de danos morais coletivos milionários.

O que diferencia esta decisão das demais já proferidas é que esta se deu em caráter de Ação Civil Pública, ou seja, tratou-se de uma ação movida pelo Ministério Público do Trabalho com intuito de proteger os interesses coletivos dos motoristas que prestam serviços à Uber, detendo esta decisão abrangência nacional e de efeito ex nunc.

Ao longo das 96 páginas, o que se verifica é uma verdadeira aula sobre hermenêutica e uma vasta e inteligente fundamentação acerca da decisão que fora proferida. A sentença destaca, a priori, a importante hipótese de que a UBER tem como prática a realização de acordos em processos individuais em que existe decisão reconhecendo o vínculo empregatício para evitar que o tema seja analisado pelas demais instâncias da Justiça do Trabalho, manipulando, assim, a jurisprudência.

Dito isto, o Magistrado fez um apelo aos demais julgadores para analisarem detidamente este caso, posto o impacto abissal que ocorrerá com a decisão a ser transitada em julgado, principalmente, quando já existente diversas outras decisões, em caráter individual, e não uniformes. Vale citar:

“As demandas individuais têm se multiplicado às centenas, as decisões são em sentidos não uniformes, mesmo as que têm os mesmos resultados não dizem respeito sempre aos mesmos fundamentos. Há processos em que a demanda é procedente e o fundamento jurídico não coincide com outras de mesma solução, o mesmo pode ser dito das demandas que julgaram improcedentes os pedidos. E a Justiça não pode ser uma espécie de “loteria”, como se a incerteza e a vagueza fossem elementos que deveriam ser sopesados pelas partes nas relações sociais. Poder Judiciário que emite decisões de casos em iguais situações jurídicas, em sentidos múltiplos, com resultados incertos, acaba por colocar o cidadão numa condição em que não haja previsibilidade, nem um mínimo de segurança jurídica, as pessoas não podem avaliar se o agir social que praticam é legal ou ilegal, lícito ou ilícito, constitucional ou inconstitucional”.

Apesar de as partes se empenharem em uma discussão acerca da atividade preponderante da empresa Uber, já que esta defende ser uma empresa de tecnologia e o Ministério Público sustenta ser uma empresa de transporte, a sentença fez questão de salientar que o caso não se limita a esta discussão, mas sim no que pertine a existência de elementos configuradores da relação de emprego.

É cediço que a relação de emprego se configura com a presença concomitante de cinco elementos, quais sejam: [i] trabalho prestado por pessoa física; [ii] pessoalidade; [iii] onerosidade; [iv] trabalho prestado de forma não eventual; e [v] subordinação.
Acerca do primeiro elemento, a sentença faz questão de apontar a contradição havida na defesa da Uber que afirma que até mesmo a pessoa jurídica pode realizar o cadastro na plataforma. Ora, se os requisitos para a validação do perfil e prestação de serviços é a “selfie” do motorista acrescido da carteira nacional de trabalho (portado apenas por pessoas físicas), como é possível que uma pessoa jurídica esteja apta a este serviço?

Ainda, verificou-se que a todo o momento a comunicação entre a Uber e o motorista se dá em caráter pessoal, direto com a pessoa natural, inclusive, com apontamentos, avaliações e bloqueios direcionados à pessoa física.

No que pertine à pessoalidade, salutar o apontamento da sentença ao afirmar que o acesso ao aplicativo para a prestação dos serviços se dá através de controle facial, o que indica, sem sombra de dúvidas, a impossibilidade de se fazer substituído. Há que se frisar que qualquer substituição de motorista não ocorre sem o consentimento da Uber e, por isso, resta caracterizada a pessoalidade, segundo elemento da relação de emprego.

Incontestável o recebimento de valores em razão do trabalho prestado e, apesar da Uber defender que o pagamento é feito pelos clientes, tal informação cai por terra ao se ter em vista que o motorista recebe apenas parte do valor da corrida, já que a outra parte é retida pela Uber. E mais, é a Uber quem define preços e os valores a serem pagos aos motoristas, evidenciando, portanto, se tratar de pagamento com natureza salarial.

Não fosse o bastante, é fato que o motorista se vincula ao contrato com claro intuito de aferir contraprestação financeira, portanto a análise deve ser feita pelo antecedente, a fim de cravar o terceiro elemento da relação de emprego.

Acerca do trabalho prestado de forma não eventual, a sentença é certeira ao afirmar que os “motoristas não se vinculam ao contrato com a Ré para o labor de um serviço certo, fortuito ou casual, mas sim para permanecerem na atividade de transporte de passageiros. Não são o número de horas ou dias que definem a não-eventualidade, mas o tipo de evento específico e determinado.”

O fato é que a Uber já espera que os motoristas prestem os serviços de sua atividade principal, o transporte, e os motoristas já esperam que a Uber faça os pagamentos à medida que o trabalho é prestado. A sentença explica a situação de uma maneira bastante didática:
“Numa figura de linguagem é possível observar dois elementos sociológicos presentes ao mesmo tempo na relação: a Ré pode investir, gastar, pagar, pois sabe que os motoristas irão transportar passageiros e isso irá gerar lucro; os motoristas sabem que podem ter contas mensais, como luz, água ou outras de consumo, pois podem contar com os pagamentos pelas viagens realizadas a partir da plataforma da Ré. Expectativas recíprocas (afeta as duas partes) e razoáveis (pois há segurança em contar com os deveres e direitos de ambos), portanto, trabalho não-eventual”

A alegação da UBER de que é possível que os motoristas fiquem desconectados por dias, semanas ou meses é rechaçada pela sentença sob fundamento de que a própria legislação trabalhista prevê a modalidade de trabalho parcial ou intermitente sem desfazer, contudo, a relação empregatícia. Existente, portanto, o quarto elemento da relação.

Já no que tange ao elemento subordinação, este de caráter extremamente importante, a sentença ressalta a necessidade de avaliar a situação com base no atual e não com base em uma doutrina ou jurisprudência de décadas atrás. A sociedade é muito dinâmica e as formas de controle se alteram constantemente, principalmente, com se tem o auxílio da tecnologia.

Neste sentido, a partir da informação de que os clientes podem avaliar e atribuir notas aos motoristas, bem como que tal avaliação impacta diretamente na estratégia de corridas a ser adotada pela UBER, tal como o número de viagens a ser direcionada ao motorista, bem como, a renda média diária, promoções, bloqueios, restrições ou ampliações, resta claro o controle do trabalho.

Além disso, o conjunto probatório comprovou que a UBER tem o poder de punição, seja para bloquear algum motorista, unilateralmente, apenas se verificado o não cumprimento de norma ou regulamento, seja para efetuar o descadastramento se verificado a constante recusa em receber dinheiro. Ainda, ao adotar estratégias que induzem a prestação dos serviços exatamente da maneira como a UBER quer, seja através de campanhas de recompensas, seja através de números de cancelamentos de corridas, fica claro o controle. Vale os destaques:

“O que resta evidente nos autos: i) a Ré decide quem pode dirigir ou não por intermédio de sua plataforma; ii) a Ré impõe as regras para trabalhar dirigindo por intermédio da plataforma; iii) a Ré controla em tempo integral as atividades dos motoristas; iv) a Ré conhece tudo, e de forma ampla e irrestrita, o que é feito pelo motorista, como e quando é feito, individualmente em relação a cada motorista; v) a Ré tem amplo poder fiscalizatório da atividade dos motoristas, diretamente pela plataforma; vi) a Ré tem poder de punir de forma média, com restrição de chamadas, bloqueios unilaterais temporários e de forma máxima, extrema, mediante bloqueio definitivo”.

A subordinação está presente na sua modalidade algorítmica, ou seja, os meios de organização, controle, fiscalização e punição são realizados pelo empregador de forma tecnológica através de algorítmicos, o que pode ser considerado mais eficaz que um controle tradicional.
A evolução dos meios telemáticos, da sociedade com relação ao uso da tecnologia e, também, da forma de desenvolver o trabalho trazem reflexões extremamente importantes a respeito da legislação trabalhista que temos hoje e, particularmente, percebe-se um descompasso com a realidade.

Diante de todo o cenário, entendeu a sentença pela existência cumulativa dos cinco elementos caracterizadores da relação de emprego, determinando que a UBER proceda, até o prazo de 6 meses a contar do trânsito em julgado, o registro em CTPS de todos os motoristas ativos e aqueles que vierem a ser contratados, sob pena de multa diária no valor de R$ 10.000,00 por cada motorista não registrado.

Ainda, em razão da violação aos direitos dos trabalhadores, bem como outros elementos constitucionais ofendidos, como a seguridade social, e, ainda, em razão de ter ocasionado danos in re ipsa à coletividade, a UBER foi condenada ao pagamento de R$ 1 bilhão a ser direcionado ao Fundo de Amparo ao Trabalho na proporção de 90% e o restante para as associações de motoristas por aplicativos que tenham registro em cartório e constituição social regular, em cotas iguais e de tantas quantas forem encontradas pelo Ministério Público do Trabalho no Brasil.

Esclarece-se que o ajuizamento desta ação coletiva não impede o ajuizamento de ações individuais pelos motoristas que forem afetados pela decisão, sendo este, inclusive, o meio correto para requerer o seu direito, caso este não seja imediatamente cumprido conforme ordem judicial.

Por fim, conveniente ressaltar que, da leitura da sentença, é possível observar tamanho esforço empreendido pelo juiz que não se limitou à análise crua do caso, mas sim de todo um contexto histórico, filosófico e jurídico, elevando, sobremaneira, a qualidade das decisões judiciais. É digno de aplausos!

Referências:
ACP nº 1001379-33.2021.5.02.0004 e

Colunista Júlia Tiburcio

Advogada, consultora em Compliance, pós-graduada em Direito Material e Processual do Trabalho pela PUC-SP e em Direito Processual Civil pela Universidade Mackenzie. Mestre em Compliance pela Ambra University.

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