sexta-feira, 26/julho/2024
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A organização internacional do trabalho e o trabalho em condições análogas ao escravo

Coordenadora: Ana Claudia Martins Pantaleão

Conforme já mencionado em artigo anterior (Desrespeito à dignidade da pessoa humana – trabalho em condições análogas ao escravo), ainda não existe legislação penal para imputação e penalização daqueles que mantém trabalhadores em condições análogas à escravidão.

Não obstante já terem transcorrido mais de cem anos da assinatura da Lei Áurea (135 anos em 2023), ainda são encontrados trabalhadores em condições análogas à escravidão como amplamente divulgado na mídia.

Várias são as medidas que podem ser tomadas para coibir este tipo de trabalho, como por exemplo:

–  que se continue com as ações fiscalizadoras em diversas regiões do pais;

– sejam propostas cada vez mais pelo Ministério Público ações civis públicas em defesa dos trabalhadores que se encontram nestas condições, pois permitir que as empresas apenas se comprometam através da assinatura de termos de ajuste de conduta, a não praticar tais atos e aplicar-lhes multas somente em caso de descumprimento, não é um meio eficaz para coibir tal prática;

– sejam realizados programas de conscientização nacional para educação, mobilização e organização de trabalhadores escravizados;

– seja determinada a prisão, julgamento e punição de todos os responsáveis pela submissão de trabalhadores a condições análogas à de escravo;

– a submissão de pessoas ao trabalho análogo ao escravo seja tipificado como crime hediondo, inclusive aumentando o período de reclusão;

– criação de um cadastro onde constem os autores deste tipo de prática de desrespeito aos trabalhadores a fim de que não tenham acesso a créditos ou outros benefícios, por ser inadmissível tal conduta.

Não difere a conclusão se comparada às acusações das autuações com os conceitos da Organização Internacional do Trabalho, uma vez que como alerta o Relatório Global do Seguimento da Declaração da OIT, relativa a Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho (Genebra, 2001) a expressão “trabalho forçado” tem um preciso significado jurídico, e não deveria ser confundido com a terminologia popular que às vezes lhe é dada para descrever trabalho mal remunerado, perigoso ou realizado más condições ambientais, também, não configuram a contratação coercitiva, servidão por dívidas nem trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente, muito menos a supressão da liberdade da pessoa.

O Relatório Global do Seguimento da Declaração da OIT, relativo a Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, decorrente da 89ª Reunião da Conferência Internacional do Trabalho (Genebra, 2001), chama a atenção, já no resumo, para a expressão “trabalho forçado”, que tem um preciso significado jurídico, e não deveria ser confundido com a terminologia popular que às vezes lhe é dada para descrever trabalho mal remunerado, perigoso ou realizado em condições gerais de exploração.  Destaca que o elemento que caracteriza o trabalho forçado é a contratação coercitiva (por exemplo, quando o empregado fica impedido física e legalmente de abandonar o domicílio do empregador).

A problemática possui nexo direto com outra questão: o tráfico de pessoas, onde se destaca que há “países de origem”, “países de trânsito” e “países receptores”. O Relatório cita os elementos coercitivos: o trabalho forçado, a servidão por dívidas e práticas análogas à servidão. Estabelece, ainda, um vínculo entre o tráfico moderno e as formas atuais de servidão por endividamento.

No âmbito da OIT – Organização Internacional do Trabalho, o Programa Internacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (IPEC), tem buscado uma abordagem holística da questão, ressaltando a importância da aplicação prática de serviços de consultoria como forma de assegurar que o trabalho forçado não esteja sendo praticado.

As Convenções Internacionais que tratam do Trabalho Forçado são a de número 29 (Trabalho Forçado, 1930) e 105 (Abolição do Trabalho Forçado, 1957), persistentes em convidar ao aprofundamento da compreensão do problema e a redobrados esforços para a eliminação de todas as formas dessa espécie de trabalho que atenta contra a liberdade humana.

A Convenção n. 29 da OIT, de 1930,  em seu artigo 2º, n. 1 define trabalho forçado como “todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob ameaça de sanção e para o qual não tenha se oferecido espontaneamente”.[1]

A Convenção n. 105 da OIT, de 1957, em seu artigo 1º conclama os países membros a abolir “toda forma de trabalho forçado ou obrigatório e dele não fazer uso: a) como medida de coerção ou de educação política ou como punição por ter ou expressar opiniões políticas ou pontos de vista ideologicamente opostos ao sistema político, social e econômico vigente; b) como método de mobilização e de utilização da mão-de-obra para fins de desenvolvimento econômico; c) como meio de disciplinar a mão-de-obra; d) como punição por participação em greves; e) como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa”.

O Relatório da OIT, após examinar antecedentes históricos da proibição do trabalho forçado, estuda detidamente as principais formas de manifestação:

  • escravidão e raptos;
  • participação obrigatória em projetos de obras públicas;
  • trabalho forçado na agricultura e em regiões rurais remotas (sistemas de recrutamento coercitivo);
  • trabalhadores domésticos em situação de trabalho forçado;
  • trabalho em servidão por dívida;
  • trabalho forçado imposto por militares;
  • trabalho forçado no tráfico de pessoas;
  • alguns aspectos do trabalho em penitenciárias e da reabilitação por meio do trabalho.

Mulheres, minorias étnicas ou raciais, migrantes, crianças e, sobretudo pessoas pobres, compõem os grupos mais vulneráveis a essas formas contemporâneas de trabalho forçado.

A OIT ressalta que as formas contemporâneas de trabalho forçado exigem urgentemente mais pesquisas e atenção, para preparar o terreno para indicadores e avaliações mais precisos e com perspectiva de gênero como base para uma definição política e ação futura.

No primeiro capítulo do Relatório Global de 2001 já consta advertência:

Ao se falar de trabalho forçado, é preciso ter muito cuidado com a terminologia utilizada. É comum os meios de comunicação a ele se referirem como “escravidão moderna”, associando o conceito a condições abusivas de trabalho ou salário muito baixos.

Trabalho forçado é expressão jurídica, mas também um fenômeno econômico. Não será possível “respeitar, promover e tornar realidade” o princípio da eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou compulsório sem se conhecer o exato significado dessa expressão. Sua definição completa contempla exclusões, mas a idéia básica é bastante clara. Foi enunciada na primeira convenção da OIT sobre a matéria, a Convenção 29, de 1930, artigo 2º (…).

Dispõe o artigo 2º da Convenção 29 da OIT: 

Artigo 2º: 

  1. Para fins desta Convenção, a expressão “trabalho forçado ou obrigatório” compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.
  2. A expressão “trabalho forçado ou obrigatório” não compreenderá, entretanto, para os fins desta Convenção:
  3. a) qualquer trabalho ou serviço exigido em virtude de leis do serviço militar obrigatório com referência a trabalhos de natureza puramente militar;
  4. b) qualquer trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas comuns de cidadãos de um país soberano,
  5. c) qualquer trabalho ou serviço exigido de uma pessoa em decorrência de condenação judiciária, contanto que o mesmo trabalho ou serviço seja executado sob fiscalização e o controle de uma autoridade pública e que a pessoa não seja contratada por particulares, por empresas ou associações, ou posta á sua disposição;
  6. d) qualquer trabalho ou serviço exigido em situações de emergência, ou seja, em caso de guerra ou de calamidade ou de ameaça de calamidade, como incêndio, inundação, fome, tremor de terra, doenças epidêmicas ou epizoóticas, invasões de animais, insetos ou de pragas vegetais, e em qualquer circunstância, em geral, que ponha em risco a vida ou o bem-estar de toda ou parte da população;
  7. e) pequenos serviços comunitários que, por serem executados por membros da comunidade, no seu interesse direto, podem ser, por isso, considerados como obrigações cívicas comuns de seus membros, desde que esses membros ou seus representantes diretos tenham o direito de ser consultados com referência à necessidade desses serviços.

Na Seção 4, do Relatório, são analisadas as incidências em vários países do mundo, inclusive no Brasil, onde se relata:

Casos de trabalho forçado têm sido localizados na mineração e no trabalho sazonal de desmatamento, na produção de carvão vegetal e numa série de atividades agrícolas entre as quais o corte de cana, a plantação de capim e a colheita de algodão e de café. (…) O principal aspecto do trabalho forçado nas áreas rurais brasileiras é o uso do endividamento para imobilizar trabalhadores nas propriedades até a quitação de suas dívidas, em geral contraídas de modo fraudulento.  É uma atividade clandestina e ilegal, difícil de ser combatida por diversos fatores, entre os quais a imensa extensão do país e as dificuldades de comunicação.

Entre as limitações a que são submetidos trabalhadores rurais, incluem-se a imposição de dívidas pelo transporte, alimentação e ferramentas de trabalho; a retenção de documentos de identidade e carteiras de trabalho, além do recurso a ameaças físicas e a castigos por parte de guardas armados.

Verifica-se, portanto, quão grave é a situação dos trabalhadores que vivem em tal situação, o que difere, irretorquivelmente, daqueles que trabalham em situação que desatende às exigências da legislação trabalhista, configurando, neste caso, irregularidade administrativa, mas não tipificação penal.

Portanto, que para caracterização do trabalho forçado é essencial que haja supressão da liberdade da pessoa e, ainda, castigo para aqueles que resistem à realização das atividades determinadas.

A OIT estabelece, pelo Relatório-2005, dois elementos básicos para caracterização do trabalho forçado:

trabalho ou serviço imposto sob ameaça de punição; e

aquele executado involuntariamente.

E ressalta que uma situação de trabalho forçado é determinada pela natureza da relação entre uma pessoa e um empregador e não pelo tipo da atividade desenvolvida, por mais duras ou perigosas que possam ser as condições de trabalho. Nem é a legalidade ou ilegalidade da atividade, segundo leis nacionais, que determina se o trabalho é ou não forçado.

A Convenção n. 105, de 1965, da Organização Internacional do Trabalho, preconiza a abolição da escravidão por dívida e a servidão. O Grupo de Combate ao Trabalho Escravo no Brasil, do Ministério do Trabalho e Emprego, em 2003,  fez 199 inspeções de combate a essa irregularidade que pode caracterizar o crime de  frustração ao direito do trabalho ( L. n. 9777, de 1998, art. 203).

Assim sendo, verifica-se que a preocupação quanto a esta prática e o intenso trabalho do Ministério Público em coibi-la. 

Atualmente as ações contra o trabalho em condições análogas ao escravo estão se intensificando de modo que os responsáveis são punidos não só ao pagamento de indenizações, mas também com a privação de sua liberdade.

Concluirmos então, que inobstante a necessidade de criação de diversas formas de coibição ou tipificação da submissão de trabalhadores à condições análogas à de escravo, para a erradicação do trabalho em condições análogas à escravo, deverá cada vez mais ser proposta pelo Ministério Público ação civil pública pleiteando, além dos direitos dos trabalhadores mantidos nestas condições, dano moral coletivo e ainda, que as condenações sejam em valores hábeis a desencorajar os infratores à prática deste tipo de submissão dos trabalhadores.

 

Advogada com 20 anos de experiência. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Mackenzie e em Administração e Direito do Terceiro Setor pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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