sábado, 27/julho/2024
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Reflexões sobre abuso sexual intrafamiliar de vulneráveis e a dificuldade de produção de provas no processo penal

Por Isabella de Oliveira*

Introdução

Neste texto proponho uma reflexão sobre a escassez das provas a serem periciadas nos crimes de abuso sexual intrafamiliar de vulneráveis, com vítimas crianças e adolescentes, bem como da pertinência de produção de laudo pericial ainda no inquérito policial. O texto foi construído com o intuito de abordar aspectos do incesto com informações que podem ser acessadas por toda sociedade. O abuso sexual que ocorre às margens das interações familiares com vítima vulnerável acaba por se caracterizar como uma “ilicitude habitual” cuja produção de provas será escassa ou nula. Sabe-se que existem denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes que são falsas, geralmente oriundas de situações de divórcios e de alienação parental, assim a fragilidade dos elementos probatórios instigam a reflexão sobre o aperfeiçoamento das técnicas no processo penal.

Definição de Abuso Sexual de Vulnerável Intrafamiliar e Escassez de Provas

Inicialmente, duas definições são importantes: a de pedofilia como doença, distinguindo-a do abuso sexual como crime e a conceituação de incesto. Em definição não especializada, a Pedofilia ou pedosexualidade é condição clínica em que o desejo sexual do indivíduo adulto é direcionado para crianças ou adolescentes que estão na fase de pré-puberdade ou de puberdade.

A pedofilia se considerada somente como desordem mental e desvio sexual do indivíduo adulto, pode induzir ao entendimento de que o sujeito que pratica o crime em tela não possui consciência do ato nem meios de evitá-lo por ser “doente”. É preciso diferenciar o abusador e o pedófilo, sendo que o abusador em regra tem consciência do ato que pratica independente de ser pedófilo ou não. A Pedofilia é doença, mas o abuso sexual de qualquer natureza é crime.

Incesto na definição legal é a prática de relações sexuais por membros da mesma família, incluindo aqueles que são impedidos de contrair o matrimônio entre si pela lei civil. O abuso sexual somado ao laço familiar, principalmente o vínculo nuclear, é chamado incesto podendo ser de três tipos:

1) propriamente dito, quando exercido por membro consanguíneo da família nuclear, como o pai/mãe, avô/avó ou o irmão/irmã;
2) secundário, se praticado por pessoas que assumem socialmente a função parental como o padrasto/madrasta, quem possua a guarda/responsabilidade sobre a criança ou adolescente; e
3) poliformo, que estende a significação de “núcleo familiar” para as relações exteriores à família como trabalho ou educação sendo que o sujeito ativo usa do seu cargo ou função para manter relações sexuais com seus dependentes, seja criança, adolescente ou adulto.

Perfil das vítimas – Cerca de 67,7% das crianças e jovens que sofrem abuso e exploração sexuais são meninas. Os meninos representam 16,52% das vítimas. Os casos em que o sexo da criança não foi informado totalizaram 15,79%. Os dados sobre faixa etária mostram que 40% dos casos eram referentes a crianças de 0 a 11 anos. As faixas etárias de 12 a 14 anos e de 15 a 17 anos correspondem, respectivamente, 30,3% e 20,09% das denúncias. Já o perfil do agressor aponta homens (62,5%) e adultos de 18 a 40 anos (42%) como principais autores dos casos denunciados [1].

É importante ressaltar que esses agravos, muitas vezes, estão próximos das vítimas, ainda segundo dados do UNICEF, 80% das agressões físicas contra crianças e adolescentes são causadas por parentes próximos. Na oportunidade, a pediatra do IFF Marlene Roque Assumpção fez uma reflexão sobre o tema e ressaltou que a violência intrafamiliar acaba por se constituir como uma forma de comunicação e de relação que contamina todos os membros da família, manifestando-se por meio de atos de violência física, psicológica, sexual ou de negligência [2].

Famílias incestuosas existem em todas as classes sociais, geralmente apresentam fatores determinantes comuns: mãe com fraca autoestima e dependente social e economicamente do abusador, consumo de álcool e drogas, pais ausentes e negligentes, relações internas distantes e dispersas, violência doméstica. No caso do abuso sexual intrafamiliar o que ocorre é uma “ilicitude eventual”, que não raro se torna habitual e não mera compulsividade do indivíduo de praticar atos sexuais e libidinosos com vulneráveis.

A Psicologia, especialmente os estudos de Martin Seligman, aborda os processos psíquicos desencadeados em vítimas de violência doméstica habital, tais como a “Indefensividade Adquirida” e “Síndrome de Estocolmo”.

A Indefensividade Adquirida ocasiona perda da confiança em si mesmo quando a vítima passa a acreditar que está totalmente impotente diante de sua tragédia pessoal e impossibilitada de se libertar da situação de violência. O resultado é a submissão total da vítima que passa a acreditar que a violência aplicada é um “castigo” por não ter “se comportado bem”. A alternância de agressões e afetos ratifica a relação de dependência vítima-agressor e se torna ainda mais nociva quando há a dependência no plano econômico, familiar, habitacional, comunitário.

A Síndrome de Estocolmo, por sua vez, é um estado psicológico adquirido. A vítima detida acaba por assumir um papel de cúmplice para com os atos de seu “sequestrador”. Sabe-se pela experiência que em situações assim os prisioneiros podem ajudar materialmente e intelectualmente a seus agressores a atingir seus objetivos, fugir da polícia, não serem pegos. É mecanismo de defesa inconsciente do “sequestrado” para bloquear um choque emocional ainda mais devastador e acaba por produzir um vínculo de simpatia e identificação do “sequestrado” para com o “sequestrador”.
Feita a introdução acerca de aspectos sociológicos e psicológicos pertinentes ao abuso sexual intrafamiliar, passamos à abordagem jurídica e ténica-processual.

Produção de Provas no Inquérito Policial e no Processo Penal

Os crimes contra a dignidade sexual são tecnicamente classificados como crimes materiais. São estes os que se consumam com um resultado naturalístico que ao ofenderem o “bem jurídico” tutelado atingem o mundo do direito provocando uma tratativa jurídica-processual como meio de reparação para a vítima ou de punição para o agressor.

Nos crimes sexuais o bem jurídico atingido é a liberdade pessoal e a dignidade sexual, que possui como contorno o direito do indivíduo de escolher seus parceiros sexuais, quando já possuem maturidade para tal, de vivenciarem a descoberta ou o amadurecimento de sua sexualidade e afetividade de forma natural e com dignidade.

Ainda que estes crimes estejam classificados como “crimes materiais”, a provação da autoria e materialidade na persecução penal possui alguns obstáculos. Além das questões introdutórias, são fatores que dificultam ou anulam a produção de provas nos crimes contra a dignidade sexual do vulnerável quando o abuso é intrafamiliar e habitual:

  • A vulnerabilidade da criança, quanto mais tenra sua idade mais frágil será a produção de provas;
  • A dificuldade da criança/adolescente em verbalizar sentimentos e acontecimentos, seja porque a faculdade da fala e seu vocabulário não estão maduros, por ser facilmente manipulável ou por possuir deficiência cognitiva, pouca memória ou memória contaminada;
  • Ausência de vestígios físicos no corpo do vulnerável;
  • O abuso sexual intrafamiliar acontece na clandestinidade das relações familiares tornando a prova testemunhal inexistente;
  • A vítima se lava ou é lavada rotineiramente;
  • Não há vestígio do sêmen do agressor;
  • Não há marcas de resistência como arranhões, contusões ou hematomas que podem ocorrer em estupro extrafamiliar;
  • Submissão da vítima ao agressor por diversos fatores;
  • Beijos lascivos e outros atos libidinosos sem conjunção carnal não deixam vestígios.

O consentimento da vítima de abuso sexual eximirá o acusado da autoria do crime, porque é necessário o dissenso da vítima durante toda pratica do ato. Felizmente, no caso de a vítima ser vulnerável o consenso da vítima não afasta o dolo do acusado se ficar provado que o crime ocorreu.

No processo penal o ônus da prova pertence exclusivamente à acusação, aquele que acusa deve provar a autoria do crime, isto se dá pela preservação do princípio da presunção de inocência. De outra ponta, a palavra da vítima no processo penal possui uma valoração probatória relativa, se verbalizada de forma contundente e coerente com as demais provas produzidas nos crimes de abuso sexual, especialmente de vulneráveis, a palavra da vítima pode promover a condenação do réu.

Então surge uma dificuldade processual: por um lado, a escassez de provas dificulta a sua defrontação com a palavra da vítima e também do agressor, de outro lado, o peso que a palavra da vítima vulnerável possui para condenar o acusado sem ausências de provas contundentes pode promover uma sentença injusta para o réu. Não podemos deixar de apontar que existem denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes que são falsas e estas ocorrem, por exemplo, em casos de divórcios, disputas litigiosas e alienação parental. Tem-se uma discrepância processual: a análise psicológica é solicitada no decurso do processo com defasagem temporal muito díspar da ocorrência dos fatos.

A agilidade na produção de provas críveis na fase de inquérito policial é fundamental para caracterizar a materialidade e autoria do crime ou mesmo para negá-la. A demora na realização das perícias e laudos pode deixar passar despercebidamente elementos essenciais para a provação, principalmente quando não houve a conjunção carnal.

Em suma é possível a condenação de um estuprador com base somente na palavra e no reconhecimento efetuado pela vítima, desde que não haja razões concretas para que se questione o seu depoimento. Há uma presunção de que as palavras desta são verdadeiras, mas é relativa. (GONÇALVES, apud LENZA, 2013, p. 543).

A palavra isolada da vítima, sem testemunhas a confirmá-la, pode dar margem à condenação do réu, desde que seja consistente, firme e harmônica com as demais circunstâncias colhidas ao longo da instrução, sendo impossível aceitá-la quando do contrário.(LOPES, 1994, p. 118 apud NUCCI, 2013, p. 466).

Na altura, perguntamos se é pertinente a produção de laudo psicológico ainda no inquérito policial quando se investiga crimes de abuso sexual intrafamiliar contra crianças e adolescentes. Maior proximidade temporal com a suposta ocorrência dos fatos poderia trazer dados mais contundentes e precisos na perícia psicológica, inclusive para casos de falsas denúncias como alienação parental, pois a suposta vítima não ficaria tempo demasiado à mercê de um adulto a induzi-la crer ou assimilar sobre fatos inverídicos.

 

Considerações Finais

Este assunto, pouco abordado dentro dos espaços acadêmicos do direito, demanda um maior debate legislativo sobre a tratativa técnica da pedofilia na legislação penal e processual penal brasileira, dada a responsabilidade que o tema demanda.
Como exemplo, trazemos à memória uma lacuna condenável na legislação penal que permite ao agressor de estupro de vulnerável responder apenas por estupro simples se o fato ocorrer no dia em que a vítima completar quatorze anos:

Estupro
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. § 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos. Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. Código Penal.

Estupro de vulnerável
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. Código Penal.

Analisando, se o crime for praticado quando a vítima tiver entre quatorze e dezoito anos, estará caracterizado o estupro qualificado e se a vítima tiver até quatorze anos incompletos será caracterizado estupro de vulnerável. No entanto se o crime ocorre no dia do aniversário da vítima será apenas estupro simples. Não é possível resolver no caso concreto esta celeuma imperdoável advinda de uma brecha na lei, vez que não é admitido no direito penal analogia nem interpretação extensiva.

Abordar a matéria da violência sexual ainda é difícil em nossa sociedade. Ora por ser um tabu, ora porque as relações sexuais e/ou conjugais entre adultos e adolescentes é culturalmente aceitável. De outra parte, profissionais da área jurídica e policial também possuem dificuldade em lidar com o assunto, seja por falta de conhecimento da legislação referente aos direitos da dignidade sexual da pessoa humana, mas também por pouca compreensão do que de fato é abuso sexual.

 


Referências

[1] http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica, 2017
[2]http://www.ebc.com.br/infantil, 2017.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: Nov. 2017.
BRASIL. Código de Processo Penal. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm. Acesso em 2017.
BRASIL. Código Penal. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em 2017.
______. Lei Federal 8.069, de 13 de janeiro de 1990. Dispõe sobre o estatuto da criança e do adolescente, e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm>. Acesso em: Out. 2017.
CLARINDO, Aniêgela Sampaio. Acusações De Abuso Sexual No mbito Da Alienação Parental. 2011.
DA COSTA, Sirlei Martins. Violência Sexual e Falsas Memórias na Alienação Parental. Revista Brasileira de Direito de Família e Sucessões. Editora Magister, n 26.
DIAS, Mangnani Thaisa. JOAQUIM, Dias Evandro. O problema da Prova nos Crimes Contra a Dignidade Sexual. Revista Juris FIB, ISSN 2236-4498. Volume IV, Ano IV, Dezembro 2013, Bauru – SP.
DOS SANTOS, Viviane Amaral. Os Possíveis Entrelaçamentos Nas Situações De Alienação Parental E De Violência Sexual Intrafamiliar Contra Crianças E Adolescentes E a Avaliação Psicossocial De Casos Dessa Natureza No Contexto Da Justiça.https://pt.scribd.com/document/342869102/Artigo-Viviane-Amaral-Alienacao-Parental-e-Violencia-Sexual-Intrafamiliar-3. Acesso em 2017.
____Indefensividade Adquirida e Síndrome de Estocolmo. Traduzido por JanJan.
NUNES, Cristina. O Processo de Revelação: Um Caso de Incesto. Rev Port Med Geral Fam 2014;30:386-96
MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado. Vol 2.
SCHAEFER, Luiziana Souto. ROSSETTO, Silvana. KRISTENSEN, Christian Haag. Perícia Psicológica no Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes. Pontifícia Universidade Católica Do Rio Grande Do Sul, 2012. Brasília, Abr-Jun 2012, Vol. 28 n. 2, pp. 227-234
VARGAS, Anacc. Pedofilia no mbito Familiar. Unipac_____.
VELLY, Ana Maria Frota. A Síndrome da Alienação Parental. Trabalho apresentado no II Congresso de Direito de Família do Mercosul com apoio do IBDFAM.

 

 

*Isabella de Oliveira, colaborou com nosso site por meio de publicação de conteúdo. Ela é Graduanda de Direito na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e servidora pública na Secretaria de Estado de Segurança Pública/MG.

 

 

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