quinta-feira,28 março 2024
ArtigosOmissão perante a tortura e inconstitucionalidade omissiva

Omissão perante a tortura e inconstitucionalidade omissiva

A Constituição Federal Brasileira determina, desde 1988, que o crime de tortura seja tratado com os rigores de crime hediondo, nos termos da lei (inteligência do artigo 5º., XLIII, CF). Também deixa claro que devem responder da mesma forma “os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem” (grifo nosso).

O mandamento constitucional de criminalização foi descumprido por vários anos, pois que não havia previsão legal explícita de crime de tortura propriamente dito no direito pátrio. A tortura somente surgia no Código Penal como qualificadora do homicídio e como agravante genérica. Nesse entretempo veio a lume o artigo 233, do Estatuto da Criança e do Adolescente, criminalizando a tortura impingida às crianças e adolescentes. Porém, além de não poder ser considerado aquilo que o constituinte esperava, mesmo porque somente aplicável a uma dada categoria de pessoas como vítimas (crianças e adolescentes), também padecia de inconstitucionalidade por violação do Princípio da Legalidade Estrita, eis que não descrevia em que consistia a prática de tortura. Isso conforme aduz Ferrajoli:

o “Princípio da Legalidade Estrita” se distingue da “mera legalidade”, “como uma regra metajurídica de formação da linguagem penal que para tal fim prescreve ao legislador o uso de termos de extensão determinada na definição de figuras delituosas, para que seja possível a sua aplicação na esfera judicial como predicados ‘verdadeiros’ dos fatos processualmente comprovados”.

Inobstante o STF não tenha chegado a reconhecer por seu Pleno a inconstitucionalidade do dispositivo, conforme HC 70389, a doutrina aponta essa pecha ao dispositivo.
Isso tudo perde a importância quando exsurge a Lei 9455/97, revogando expressamente o artigo 233 do ECA e prevendo os crimes de tortura de que tratava a Constituição Federal.

No que diz respeito às condutas comissivas há previsão induvidosa de cinco crimes de tortura, de acordo com o artigo 1º., I, “a”, “b” e “c”; II e § 1º., todos da Lei 9455/97. Contudo, o artigo 1º., § 2º., prevê o crime de “omissão perante a tortura”, com pena de detenção bem mais branda. Pois bem, este crime, segundo entendimento dominante, não constitui um típico “crime de tortura”, mas meramente uma espécie de “prevaricação especial”, de modo que não está sujeito a todos os rigores assemelhados aos conferidos aos demais crimes hediondos e equiparados, afora o tratamento sancionatório bem mais leve em comparação com os demais dispositivos do mesmo diploma.

Conforme salienta Borges, trata-se do que se convencionou chamar de “tortura imprópria”. Um “crime omissivo” que excepciona indevidamente a configuração de participação na tortura própria ou comissiva, a qual levaria o omitente a responder nas mesmas penas do autor como partícipe, na medida de sua culpabilidade.
Com a criação de um crime omissivo privilegiado na Lei de combate à tortura, o legislador afasta a aplicação da “Teoria Monista” abraçada pelo artigo 29, CP e adota, excepcionalmente, a “Teoria Pluralista” do concurso de agentes. Ou seja: a não existir a previsão do § 2º., do artigo 1º., da Lei 9455/97, aquele que se omitisse dolosamente ante a prática da tortura, responderia, juntamente com o torturador, na medida de sua culpabilidade (inteligência do artigo 29, CP). Ademais, tratar-se-ia, não de crime omissivo próprio, mas de crime comissivo por omissão e esta (omissão) seria relevante na medida em que o omitente teria o dever jurídico de agir nos estritos termos do artigo 13, § 2º., “a”, CP. Mas, com a criação do tipo penal privilegiado, isso já não é possível, pois que o omitente é beneficiado pela norma mais branda.

Por integração da Lei 9455/96 com o artigo 13, CP, Gonçalves entende que aquele que devia “evitar” a tortura e não o faz responde como partícipe no crime de tortura respectivo e não nas penas mais brandas do § 2º. sob comento. Somente poderia ser aplicado o dito § 2º., quando, após a tortura, aquele que tem o dever de “apurar” o crime não o faz deliberadamente. Contudo, assevera o autor que o § 2º., embora integrante da Lei 9.455/97, não constitui uma modalidade de “crime de tortura”, mas um mero crime omissivo. Tanto é assim que a ele não se aplica o regime inicial fechado previsto no artigo 1º., § 7º., do mesmo diploma.

Retornando a Borges, este também cita o equívoco legislativo em tratar a omissão no “evitar” e a omissão na “apuração” no mesmo tipo privilegiado, em confronto com a vontade do constituinte, o qual manda tratar igualmente aquele que pratica a tortura e aquele que perante ela se omite. Porém, reconhece que o legislador ordinário, à revelia do constituinte, criou “uma figura privilegiada para os omitentes”.
Na mesma senda, embora criticando a brandura da lei perante os omitentes, se manifesta Nucci, inclusive levando em conta a necessidade da relevância da omissão nos termos do artigo 13, § 2º., CP, mas admitindo que a descrição típica privilegia tanto quem deve “evitar” como quem deve “apurar” a tortura.
Também reforça as fileiras críticas ao dispositivo e à opção do legislador em desprezar os artigos 13, § 2º., CP e 29, CP, Andreucci, aduzindo a necessidade de discussão no “plano teórico” quanto “ao tratamento mais brando que a lei ordinária confere ao omitente”.

Por seu turno, Bechara afirma que o crime previsto no artigo 1º., § 2º., da Lei 9455/97 “não é de tortura propriamente dito”, mas um crime omissivo que ainda depende do dever jurídico de quem se omite em “evitar” ou “apurar” os crimes de tortura (inteligência do artigo 13, § 2º., CP). O autor ainda admite uma interpretação conforme a Constituição, afastando o tipo privilegiado se o omitente age com dolo de não evitar a tortura e não simplesmente em conduta “negligente”. Nesse caso, responderia como partícipe do crime de tortura e não por mera omissão perante a tortura. Afirma o autor que tal interpretação se coaduna com o “disposto no art. 5º., XLIII da CF”.

A lamentável realidade é que o legislador ordinário atribuiu tratamento privilegiado indistinto a todo omitente, ao arrepio do dispositivo constitucional (artigo 5º., XLIII, CF), especialmente quando este, em sua parte final, determina a punição idêntica àqueles que podendo evitar a tortura se omitirem. A situação é lastimável, mas há uma nítida exceção ao disposto nos artigos 29 e 13, § 2º., CP, afastando-se qualquer possibilidade de incriminação do omitente por crime de tortura por via de participação. Essa interpretação, embora com toda boa intenção de cumprir o ditame constitucional, iria ferir outros dispositivos que seriam o “Princípio da Legalidade” e a regra do “Favor Rei”. E não é violando as garantias constitucionais por excesso punitivo que se pode consertar uma violação desta mesma Constituição por via de insuficiência protetiva. A omissão do legislador ordinário quanto ao tratamento adequado àquele que fica inerte perante a prática da tortura quando tinha o dever jurídico de agir, enseja uma sugestão “de lege ferenda”, ou seja, uma indicação de necessária e urgente reforma da lei ordinária a fim de harmonizá-la com a Constituição Federal. Bastaria a simples eliminação do § 2º., do artigo 1º., da Lei de Tortura ou então a sua reescrita, afirmando a responsabilização nas mesmas penas do torturador em relação àquele que se omita, seja em evitar ou em apurar a tortura. Esta última opção seria certamente a melhor, porque deixaria estreme de dúvidas a opção legislativa de rigor punitivo idêntico ao omitente.

Note-se que não é somente o artigo 5º., XLIII, CF que é golpeado com o disposto no artigo 1º., § 2º., da Lei 9455/97. A legislação internacional acatada pelo Brasil também indica que o omitente deve responder por tortura e não por um crime menos gravoso. Nessa medida, pode-se dizer que há inconstitucionalidade e inconvencionalidade por insuficiência protetiva do legislador ordinário brasileiro. A “Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura”, ratificada pelo Brasil em 20 de julho de 1989, estabelece a responsabilização por tortura de todo funcionário ou empregado público que, atuando nessa qualidade, podendo impedir a tortura, “não o façam” (artigo 2º., “a”). Novamente é preciso ter em mente, conforme lição de Cambi, que os direitos fundamentais estão sujeitos a uma “proibição de excesso”, quando sofrerem uma excessiva restrição, mas também estão submetidos a uma “proibição de insuficiência”, sempre que se constate que um direito fundamental esteja “insuficientemente protegido”.

Como bem acentua Grego, a meta da legislação internacional, que certamente deve influir na conformação interna da legislação brasileira, não é somente limitada à punição da prática já consumada da tortura, mas tem por finalidade precípua “evitar” ou “impedir” a ocorrência dessa atuação deletéria para a dignidade humana:

“O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, em cooperação com a International Bar Association, em conclusão ao capítulo 2 do Manual de Direitos Humanos para Juízes, membros do Ministério Público e Advogados, estabeleceu uma série de comportamentos que deveriam ser assumidos pelos estados a fim de evitar a tortura, bem como as penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes” (grifos finais nossos).

E também o mesmo Greco tece sua crítica ante a conformação do crime omissivo de forma mais branda e não considerado como uma espécie de participação na tortura:

“No entanto, por mais incrível que isso possa parecer, a autoridade que tinha que tinha o dever de impedir o ato responderá pelo crime com pena significativamente menor, ou seja, ao invés de responder como ocorreria, normalmente, se fosse aplicado o § 2º. do art. 13 do Código Penal, pelas mesmas penas do crime que devia e podia, mas não tentou evitar, a ele será cominada uma pena de detenção de um a quatro anos, ou seja, a metade da pena prevista para aquele que comete diretamente a tortura”.

Lima também é veemente ao manifestar-se da seguinte forma sobre o tema:

“Percebe-se claramente que a imposição de penas mais brandas a quem comete tortura por omissão é uma afronta direta ao desejo do constituinte de evitar qualquer tipo de complacência aos atos referentes à tortura, pois com essa pena, o condenado faz jus, inclusive, aos benefíciosda suspensão condicional do processo, sursis e substituição da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos”.

Malgrado toda a clareza solar indicada pela doutrina quanto à inconstitucionalidade por insuficiência protetiva do artigo 1º., § 2º., da Lei 9455/97, é preciso salientar que o STJ, no REsp 1.163.756 decidiu pela constitucionalidade do dispositivo.
O que dizer diante disso? Talvez somente lembrar a frase impactante do impagável Mário Quintana:
“Dizem que a Justiça é cega. Isso explica muita coisa…”

No mínimo se pode apontar, tanto em relação ao legislador ordinário, quanto ao “decisum” sofrível do STJ, aquilo que Figueiredo Dias nominou de um “daltonismo da consciência ética” , embora se entenda que a razão maior esteja na cegueira apontada tão magistralmente por Quintana.
Enfim, o único caminho, conforme já apontado é uma sugestão “de lege ferenda” para remoção simples do § 2º., do artigo 1º., da Lei 9455/97, deixando agirem os artigos 29 e 13, § 2º., CP ou, talvez melhor, consignar na lei de combate à tortura que os omitentes responderão nas mesmas penas dos autores diretos da tortura, na medida de sua culpabilidade e de acordo com o artigo 5º., XLIII, CF, não deixando qualquer margem de dúvida. Infelizmente, pretender aplicar de forma diversa o § 2º. sob comento, enquanto redigido da forma como está, considerando sua inconstitucionalidade por insuficiência protetiva, não pode ser a solução, pois que o ajuste de uma infração à Constituição se daria por ao menos duas violações principiológicas ligadas diretamente à própria ordem constitucional (legalidade e “Favor Rei”).

 


REFERÊNCIAS

ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Legislação Penal Especial. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

BECHARA, Fábio Ramazzini. Legislação Penal Especial. São Paulo: Saraiva, 2005.

BORGES, José Ribeiro. Tortura. Campinas: Romana Jurídica, 2004.

CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. São Paulo: RT, 2009.

CUNHA, Rogério Sanches “et al.” Legislação Criminal Especial. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2010.

DELMANTO, Roberto, DELMANTO JÚNIOR, Roberto, DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Leis Penais Especiais Comentadas. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Tomo I. São Paulo: RT, 2007.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Trad. Ana Paula Zomer, et. al. São Paulo: RT, 2002.

FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. 3ª. ed. São Paulo: RT, 1994.

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Crimes Hediondos, Tóxicos, Terrorismo, Tortura. São Paulo: Saraiva, 2001.

GRECO, Rogério. Leis Penais Especiais Comentadas – Crimes Hediondos e Tortura. Niterói: Impetus, 2016.

LIMA, Evelyn Gomes de. A relevância da omissão de funcionário público perante atos de tortura no ordenamento jurídico brasileiro. Boletim IBCCrim. n. 289, p. 9 – 11, dez., 2016.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo: RT, 2006.

QUINTANA, Mário. Da preguiça como método de trabalho. 4ª. ed. São Paulo: Globo, 2000.

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

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