sábado, 27/julho/2024
ColunaTrabalhista in focoO trabalhador empregado e a crise pandêmica: reflexões sob a óptica do...

O trabalhador empregado e a crise pandêmica: reflexões sob a óptica do filme “O Emprego” (El Empleo)

Coordenador: Ricardo Calcini.

As afetações econômicas e sociais decorrentes da COVID-19 descortinam cenários de incertezas, medo, insegurança, inquietantes e desconcertantes sentimentos que são capazes de suplantar as percepções mais otimistas e entusiastas.

Em âmbito laboral, os reflexos da pandemia seguem acentuados. O Direito do Trabalho inserto na Consolidação das Leis do Trabalho tem sido regulamentado por Medidas Provisórias, destacando-se as MP´s 927 e 936 que, dentre tantos permissivos, regulamentam concessão/antecipação de férias (até mesmo ilimitada, antes mesmo de atingido o período aquisitivo), banco de horas, trabalho em feriados, suspensão de contrato de trabalho, além da redução de jornada e salário.

Especialmente no tocante as férias anuais remuneradas, infere-se que se trata de um período permissivo ao trabalhador, que é o seu descanso anual, período em que se dissocia das condições e ambientes habituais, nos quais costuma executar suas tarefas e visa preservar sua saúde física e mental.

Considerando-se a possibilidade de antecipação de férias, assim como a concessão em modalidade diversa dos prazos de pagamento (2 dias que antecedem ao gozo) e notificação expressamente previstos na CLT (antecedência de 30 dias), estar-se-ia diante de evidente prejuízo à saúde física e mental do trabalhador? Ainda, o direito à desconexão deve fomentar a essencialidade do debate e reflexão quanto aos direitos fundamentais do empregado?

Com efeito, a dignidade da pessoa humana, o direito à intimidade, à privacidade e também ao lazer, estão intimamente ligados à desconexão do trabalhador, necessárias ao seu restabelecimento físico e mental, sob pena de sua supressão por longo período adoecer e/ou coisificar o ser humano.

Lado outro, debater conteúdo jurídico através de produções cinematográficas é instigante e desafiador. Traz-se a essa reflexão uma obra cinematográfica, em realidade um curta metragem, que no silêncio dos atos e ações do protagonista se desvelam o açoite do trabalho enquanto atividade fustigante. O Emprego (El Empleo) é um curta-metragem argentino lançado em 2008, dirigido por Santiago Bou Grasso e escrito por Patrício Gabriel Plaza. Em angustiantes aproximados 6 minutos denota-se pela expressão taciturna e apática do personagem que ali o “capital” vem extraindo o insumo produtivo e que caminha para metamorfosear.

O curta metragem já recebeu mais de 100 (cem) prêmios internacionais. Desperta a atenção a coisificação do homem pelo próprio homem, a desumanização que o mundo corporativo sofre em que pessoas se utilizam de outras pessoas (que se sujeitam) como meros objetos.

É uma narrativa silenciosa (filme mudo) de uma sociedade perversa e doente. Dos poucos e únicos sons perceptíveis no filme, destacam-se um tic tac de relógio, seguido de seu alarme, que desperta o empregado, que levanta-se para a sua rotina diária. Sua trajetória interna no lar é mórbida, daquelas de entristecer o telespectador. Suas coisas são móveis e seus móveis são pessoas, desde o abajur, espelho que usa para barbear-se, mesa e cadeira em que senta-se e apoia seu mísero café da manhã solitário, mancebo cabideiro e chaveiro. Ao seguir na rua, a coisificação do ser se revela em homens carro/táxi, homem sinaleiro, homens portas. No local de trabalho a repetição da coisificação: homem elevador, mulher guarda volume, e, por fim, ele próprio, personagem que retrata um empregado, servindo de tapete para alguém limpar confortavelmente os pés faz o desfecho de um filme curto, reflexivo e angustiante, que nos tiram da zona de “conforto” para repensarmos em que momento a ficção da animação se adequa a realidade laboral/social.

A não utilização de diálogos entre personagens no filme explora o silêncio como um recurso amplificador do impacto visual para que, com olhar crítico, se possa explorar o lugar do ser humano – aqui, especificamente do trabalhador/empregado na sociedade moderna, no que nos tornamos, ao que nos permitimos – e perceber o porquê do inexplicável vazio existencial que negamos involuntariamente.

A naturalidade da expressão do personagem do filme reforça a ideia de automatização dos afazeres diários ao cumprimento do tilintar das horas, incapazes de observarmos os acontecimentos que se desvelam, o que faz parecer que é o provável, permitido, aceitável e imutável. Através da atividade laborativa desenvolvida pelo personagem e pelos demais homens/coisas do filme que são no contexto apenas figurantes, percebesse a alienação. Alienação aos meios de produção, ao planejamento e execução, aos bens de consumo, alienação ao próprio homem, a negação a si mesmo enquanto sujeito de direitos, e a sua dignidade, aquela que se procura ter, em observância a máxima de “o trabalho enobrece e dignifica o homem”, transmuta-se para “o homem que se perde de si mesmo”. É o auto consumismo social destrutivo que se reflete nas faces que não demonstram sentimentos exceto a expressão de derrota e resignação.

Em tempos de crise econômica o “suposto” remédio prescrito para todos os males é a chamada “flexibilização dos direitos dos trabalhadores”, e a reflexão emerge. O filme “O emprego” é uma representação de quando o trabalho deixa de engrandecer para aniquilar, e o quanto a proteção do trabalhador é imprescindível para conter abusos e explorações.

A crise pandêmica ainda irradia seus reflexos: a proteção do trabalhador na condição de pessoa humana, a sobrevivência da empresas, a permanência da atividade empresarial e manutenção dos contratos de trabalho e empregos, por vezes, irão colidir, inevitavelmente. Equalizar a relação jurídica laboral com os anseios dos detentores dos meios de produção parece ser uma missão hercúlea, carecendo a observância da capacidade do Estado Democrático de Direito manter-se democrático, com a concretização das garantias e direitos fundamentais neste cenário excepcional, extremamente diversificado, não obstante as constantes mutações inerentes a dinâmica do direito.

Avatar photo

Advogada. Professora do Curso de Direito da Univali em Pós Graduações de Direito e Processo do Trabalho. Graduada em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí – Tijucas, SC Mestre em GPP- UNIVALI de Itajaí, SC. Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário, e Docência no Ensino Superior.

Receba artigos e notícias do Megajurídico no seu Telegram e fique por dentro de tudo! Basta acessar o canal: https://t.me/megajuridico.
spot_img

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Mais do(a) autor(a)

Most Read

Seja colunista

Faça parte do time seleto de especialistas que escrevem sobre o direito no Megajuridico®.

Últimas

- Publicidade -