terça-feira,19 março 2024
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O trabalho escravo: até quando? Implicações trabalhistas

Coordenação: Ana Claudia Martins Pantaleão

Em 13 de maio de 1988, no século XIX, foi aprovada a Lei Áurea que determinou o fim da escravidão no Brasil, após muita pressão e luta de abolicionistas que se organizavam de diversas formas para o combate.

Inobstante, passados dois séculos do grande marco brasileiro, o trabalho escravo insiste em se manter presente em nossa sociedade, situação que vem sendo, cada vez mais, divulgada na mídia. Conforme informação divulgada pelo Ministério do Trabalho e Emprego em 07/03/2023, somente este ano já houve resgate de 523 (quinhentos e vinte e três) vítimas que trabalhavam em condições análogas à escravidão.

Segundo este Ministério, o trabalho análogo à escravidão pode ser conceituado como:

“Considera-se trabalho realizado em condição análoga à de escravo a que resulte das seguintes situações, quer em conjunto, quer isoladamente: a submissão de trabalhador a trabalhos forçados; a submissão de trabalhador a jornada exaustiva; a sujeição de trabalhador a condições degradantes de trabalho; a restrição da locomoção do trabalhador, seja em razão de dívida contraída, seja por meio do cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, ou por qualquer outro meio com o fim de retê-lo no local de trabalho; a vigilância ostensiva no local de trabalho por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho; a posse de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho”.

Apesar do Ministério do Trabalho indicar a necessidade de restrição da locomoção do trabalho, em 20/10/2021 o Supremo Tribunal Federal, em análise ao Agravo Regimental n.º 1279023, entendeu que a restrição da liberdade não é requisito essencial para haver a consideração do trabalho análogo à de um escravo, posto que, segundo a interpretação dada pelo Artigo 149 do Código Penal, o ilícito poderá se aperfeiçoar de diversas formas, valendo citar:

“Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”

O que se observa é que a escravidão moderna é mais silenciosa que a do século passado e os prejuízos enfrentados por esses trabalhadores nem sempre ocorrem na modalidade física, mas, também, na modalidade psicológica e econômica. Privar a liberdade de alguém não necessariamente significa prendê-la, restringir sua locomoção, mas também, significa tratá-lo como objeto e não como pessoa humana, o que ocorre por intermédio de coação ou violação persistente de seus direitos, que limita a vítima quanto à escolha segundo sua própria vontade.

A conduta destes “empregadores” viola diretamente os direitos assegurados pelos regramentos trabalhistas aos trabalhadores, principalmente, no que pertine a dignidade humana, mas também no que concerne ao reconhecimento de vínculo empregatício, salário digno, horas extras, intervalo intrajornada, descanso semanal remunerado, férias, adicionais de insalubridade e periculosidade, recolhimentos fiscais, dentre diversos outros que poderiam ser citados.

Em que pese a questão financeira, é indene que o maior prejuízo enfrentado pelo trabalhador que atuou nessas condições é a memória estampada pelos traumas vividos, o corpo que se enfraquece pela violência sofrida, o sonho que se perde em meio à falta de esperança.

É cediço que a expectativa para o início de um novo trabalho é muito grande e, em razão disso, é necessário que o candidato observe detidamente as condições oferecidas por seu possível empregador, bem como se atente aos termos do contrato de trabalho. Vale destacar que propostas de emprego em que há claro desnível de mercado, principalmente aquelas em que ocorrerão fora do local de residência, devem ser analisadas com acuidade, sendo necessária uma pesquisa sobre a empresa.

Diante das informações coletadas pelo Tribunal Superior do Trabalho, de 2017 a 2022 a Justiça do Trabalho julgou 10.482 processos envolvendo este tema, sendo que o número de ações cresceu 41% (quarenta e um por cento) entre os anos de 2020 e 2021. Ainda, segundo o Ministério Público do Trabalho, pelo menos 57 mil trabalhadores já foram resgatados no Brasil e apenas em 2021 houveram 1415 denúncias sobre o trabalho escravo, aliciamento e tráfico de trabalhadores, sendo 70% (setenta por cento) maior do que o registrado em 2020.

No site do governo federal é possível observar uma planilha, atualizada em 5 de outubro de 2022, contendo o cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo e os números são alarmantes.

Há no Brasil legislação prevendo a punição desses empregadores, contudo, as fiscalizações devem ser incessantes e o Judiciário Criminal mais rápido na fixação da pena, para que novas pessoas não passem pela mesma situação e este crime seja finalmente coibido.

Além da pena de prisão, evidencia-se que o Ministério Público do Trabalho investe em ações civis públicas e termos de ajustamento de conduta, com fito de perquirir indenização aos trabalhadores expostos nesta condição. Ainda, o Ministério do Trabalho, através das fiscalizações, exigem o pagamento de multas e há, também, legislações municipais/estaduais que preveem penalidades específicas, como a cassação da licença de funcionamento.

Todo trabalho que viole o regramento trabalhista ou as condições básicas do ser humano podem e devem ser denunciadas, sendo que o canal específico para a denúncia no que tange ao trabalho escravo é o Sistema Ipê, disponível em https://ipe.sit.trabalho.gov.br/.

Denuncie!

 

 


Referências:

 

SILVA, Daniel Neves. “Abolição da escravatura”; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/datas-comemorativas/dia-abolicao-escravatura.html Acesso em 15 de março de 2023.

BOND, Letycia. “Em 2023, 523 vítimas de trabalho análogo à escravidão foram resgatadas”. Agência Brasil. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-03/em-2023-523-vitimas-de-trabalho-analogo-escravidao-foram-resgatadas#:~:text=O%20que%20%C3%A9%20trabalho%20an%C3%A1logo,degradantes%20ou%20em%20jornadas%20exaustivas. Acesso em 15 de março de 2023.

MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Combate ao trabalho em condições análogas às de escravo. Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/composicao/orgaos-especificos/secretaria-de-trabalho/inspecao/areas-de-atuacao/combate-ao-trabalho-escravo-e-analogo-ao-de-escravo Acesso em 15 de março de 2023.

SACERDOTE, Juliane. TST publica série de postagens sobre trabalho análogo à escravidão no Instagram. TST. Disponível em: https://www.tst.jus.br/-/tst-publica-s%C3%A9rie-de-postagens-sobre-trabalho-an%C3%A1logo-%C3%A0-escravid%C3%A3o#:~:text=Um%20trabalhador%20que%20tenha%20que,P%C3%BAblico%20do%20Trabalho%20(MPT). Acesso em 15 de março de 2023.

GOVERNO FEDERAL. Cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições analogas à de escravo. Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/composicao/orgaos-especificos/secretaria-de-trabalho/inspecao/areas-de-atuacao/cadastro_de_empregadores.pdf Acesso em 15 de março de 2023.

Advogada, consultora em Compliance, pós-graduada em Direito Material e Processual do Trabalho pela PUC-SP e em Direito Processual Civil pela Universidade Mackenzie. Mestranda em compliance pela Ambra University.

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