sexta-feira, 26/julho/2024
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O direito à desconexão

Coordenadora: Ana Claudia Martins Pantaleão

A era da pandemia impôs medidas urgentes para a contenção do vírus e obrigou diversos trabalhadores a ocuparem seus lares com o trabalho. Se por um lado o funcionário se beneficiou com o fato de estar no conforto de sua casa, sem precisar gastar tempo se deslocando, por outro, evidenciou que o nível de estresse, fadiga mental e de ansiedade se elevaram.

A dificuldade de se desligar do trabalho e as consequências daí decorrentes passaram a ser temas de discussão e análise no mundo jurídico, principalmente, ao se ter em vista que o trabalhador desenvolveu a sensação e necessidade de estar sempre conectado prestando informações sobre suas atividades e rendimento.

Carneiro Junior et al (2023) é assertivo ao afirmar que “ninguém fica parado sem a sensação de dívida. É preciso executar múltiplas tarefas: responder, informar, manter-se inundado de atividades que maximizem o rendimento”. O home office, em tempos de pandemia, gerou incertezas e angústias nos diversos trabalhadores, que misturavam o tempo de descanso e trabalho na missão de gerar melhores resultados e manter o emprego.

As cobranças, além daquelas realizadas pela empresa, passaram a ocorrer, também, pelo próprio trabalhador, sobrecarregando-o física e mentalmente. A conexão com o trabalho, por vezes, se mantém durante o período que deveria ser de descanso, assegurando o trabalho ativo da mente por 24 horas, prejudicando a concentração e favorecendo a ocorrência de acidentes.

É como se estes trabalhadores vivessem em constante estado de tensão, o que é corroborado por Amado (2018, p. 262 apud Carneiro Junior et al, 2023, p. 9) ao afirmar que “ousar desconectar-se pode implicar a curto ou a médio prazo, ser desligado da empresa”.

A jornada exacerbada é fato gerador para doenças ocupacionais diretamente relacionadas à ansiedade e depressão, motivo pelo qual o direito à desconexão é imprescindível para a proteção dos dois direitos fundamentais prescritos no artigo 6º, caput, da Constituição Federal: lazer e saúde.

É cediço que a tecnologia é uma excelente aliada à otimização das atividades, contudo, o ser humano deve ser o responsável pela limitação da sua dependência, já que do contrário, acaba por se aprisionar em um círculo vicioso.

Neste sentido, é muito importante o controle da empresa sobre as comunicações fora do ambiente de trabalho ou à excessiva cobrança no que pertine às atividades a serem realizadas durante o expediente. É óbvio que a empresa pode e deve cobrar pelo bom desempenho do funcionário, mas tal não pode extrapolar o aceitável, sob pena de estimular a hiperconexão.

O TST corrobora:

O direito à desconexão certamente ficará comprometido, com a permanente vinculação ao trabalho, se não houver critérios definidos quanto aos limites diários, os quais ficam atrelados à permanente necessidade do serviço. Resultaria, enfim, em descumprimento de direito fundamental e no comprometimento do princípio da máxima efetividade da Carta Maior.
Finalmente, a proteção não se limita ao direito interno. Mencione-se, na mesma linha, diversos diplomas normativos internacionais, que, ou o reconhecem de modo expresso, ou asseguram o direito à limitação do número de horas de trabalho, ora destacados: artigos 4º do Complemento da Declaração dos Direitos do Homem (elaborado pela Liga dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1936); XXIV da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; 7º do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966; e 7º, “g” e “h” do Protocolo de San Salvador (Protocolo Adicional à Convenção Interamericana Sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), os dois últimos ratificados pelo Brasil.

Nesse contexto, tem-se que a nova realidade do “mundo do trabalho” permite questionar até em que medida os institutos tradicionais previstos na CLT ainda são capazes de tutelar de forma eficiente a relação de emprego e de oferecer respostas satisfatórias aos novos fenômenos sócio-tecnológicos, a fim de garantir aos empregados a efetiva execução de seus projetos de vida, o real exercício de sua liberdade, a manutenção de sua saúde, e, por consequência, a prevenção do chamado dano existencial. (TST. AIRR-2058-43.2012.5.02.0464 Relator: Cláudio Brandão. 7ª Turma. Data do julgamento: 18/10/2017)

Ainda, vale ressaltar o brilhantismo exarado pela Ministra Dora Maria da Costa:

O direito ao lazer é direito humano. Como também o é, o puro e simples direito à preguiça (a que aludiu Paul Lafargue), seja o ócio criativo ou não. O que não se concebe e cabe coibir é a ampliação do tempo de alienação em prol do empregador, no mais das vezes sem qualquer remuneração, confiscando o tempo livre do trabalhador e mantendo-o agrilhoado ao trabalho após o término do expediente, cumprindo ou aguardando ordens. (TST. AIRR – 891-06.2010.5.02.0029. Relatora: Dora Maria da Costa. 8ª Turma. Data do julgamento: 16/12/2015)

O direito à desconexão é o direito de não trabalhar; é “uma forma do homem (enquanto gênero humano) encontrar-se a si mesmo, para que consiga ser pai, mãe, filho, amigo; para que leia livros, assista filmes etc.; para que tenha tempo para rir, chorar, se emocionar…” (Souto Maior, 2003, apud Gauriau, 2020, p.5).

Para que este direito seja atingido é imperioso que tanto a empresa quanto o empregado se conscientizem que o trabalho não é infinito e que deve ser tratado, também, como prioridade a vida pessoal, atingindo, assim, o equilíbrio.

Referências:
CARNEIRO JUNIOR, J. A. .; CARDOSO, M. L. M. . “Sinto que estou sempre a falhar”: o dano existencial decorrente da hiperconexão do teletrabalhador docente. Educação e Pesquisa, [S. l.], v. 49, n. contínuo, p. e267098, 2023. DOI: 10.1590/S1678-4634202349267098. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ep/article/view/214432 Acesso em: 13 dez. 2023.
GAURIAU, Rosane. Direito à desconexão e teletrabalho: contribuição do direito do trabalho francês: estudo comparado franco-brasileiro. Revista eletrônica [do] Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, v. 10, n. 93, p. 37-50, out. 2020. Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/180194 Acesso em 13 dez. 2023.

Colunista Júlia Tiburcio

Advogada, consultora em Compliance, pós-graduada em Direito Material e Processual do Trabalho pela PUC-SP e em Direito Processual Civil pela Universidade Mackenzie. Mestre em Compliance pela Ambra University.

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