sexta-feira,29 março 2024
ArtigosVetos presidenciais da Lei Anticrime derrubados pelo Congresso: 3 aspectos pontuais

Vetos presidenciais da Lei Anticrime derrubados pelo Congresso: 3 aspectos pontuais

1 – INTRODUÇÃO

O chamado “Pacote Antricrime”, que se materializou na Lei 13.964/19, foi objeto de vários vetos presidenciais quando de sua promulgação. Entretanto, o Congresso Nacional, após aproximadamente 16 (dezesseis) meses, deliberou pela derrubada desses vetos.

Nesta trabalho abordaremos três aspectos pontuais que importam para a Legislação Penal e Processual Penal Especial, quais sejam, a criação de um novo crime de homicídio qualificado e, portanto, hediondo; a regulação da captação ambiental em período noturno e em local considerado “casa” e, por fim, a questão das gravações ambientais e sua validade como prova.

Ao final serão repassados esses temas de forma sumária e apresentada uma avaliação conclusiva.

2 – NOVO HOMICÍDIO QUALIFICADO HEDIONDO

Importa ressaltar que, num primeiro momento, com o advento da Lei 13.964/19 a redação do artigo 1º, inciso I, da Lei 8.072/90, restou praticamente intacta, mantendo os mesmos equívocos já existentes e apenas acrescentando uma nova impropriedade.

A impropriedade então acrescida foi muito simples. A Lei 13.964/19, em seu artigo 2º, criava um inciso VIII, nas qualificadoras do crime de homicídio. Porém, tal acréscimo foi objeto de veto e, portanto, neste ponto, não houve alteração do texto do Código Penal. A qualificadora seria, se houvesse sido aprovada, a de cometer o homicídio com emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido.

Acontece que no artigo 5º, da Lei 13.964/19, que tratou de tecer as modificações na Lei dos Crimes Hediondos, acabou sendo mantida, entre parêntesis, a menção de um suposto artigo 121, § 2º, VIII, CP, como crime hediondo, o que constituiu na época uma espécie de fantasma jurídico, já que não encontrava correspondência no Código Penal.

Em outras palavras, o presidente vetou a criação de uma nova forma qualificada de homicídio e, como o legislador – na Lei dos Crimes Hediondos – enumera os crimes que ele define como tal e tenta esclarecer a que crime se refere, fazendo expressa referência ao artigo no qual ele está definido; com o veto presidencial apenas à criação da qualificadora e não ao inciso que pronuncia os homicídios hediondos, houve a referência a uma figura de homicídio que sequer nasceu, num primeiro momento, no mundo jurídico.

Entrementes, embora somente depois de aproximadamente 16 meses, o Congresso Nacional derrubou os vetos presidenciais ao Pacote Anticrime. Dessa forma, foi criado, a partir de então (29.04.2021) um novo homicídio qualificado, qual seja, sempre que cometido pelo agente com o empego de arma de fogo de uso restrito ou proibido (Nova redação do artigo 121, § 2º., VIII, CP). Obviamente, portanto, surge um novo crime hediondo, qual seja, essa espécie de homicídio qualificado ora previsto. Também por obviedade, tal qualificadora não pode ter força retroativa, eis que se trata de “novatio legis in pejus”. Agora temos mais um problema gerador de insegurança jurídica no Brasil (como se já não fossem suficientes): a demora ilegal e injustificável, porque violadora dos prazos do devido Processo Legislativo, para deliberação do Congresso sobre eventuais derrubadas de veto presidenciais (inteligência dos artigos 57, § 2º., IV c/c artigo 66, §§ 4º. e 6º., CF).

3 – CAPTAÇÃO AMBIENTAL NOTURNA E EM “CASAS”

O § 2º., do artigo 8º. – A da Lei 9.296/96, alterada pela Lei 13.964/19 havia também sido objeto de veto presidencial, o qual foi derrubado pelo Congresso Nacional.
Assim sendo, ganha a seguinte redação o citado § 2º.:
§ 2º A instalação do dispositivo de captação ambiental poderá ser realizada, quando necessária, por meio de operação policial disfarçada ou no período noturno, exceto na casa, nos termos do inciso XI do caput do art. 5º da Constituição Federal. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

Com isso a problemática em torno da “exploração de local” para fins de instalação de equipamentos de captação merece uma nova reflexão diante da “ressureição” do regramento imposto pelo artigo 8º-A, §2º, da Lei em estudo, objeto de veto presidencial na ocasião da publicação da Lei 13.964/19. Nos termos do dispositivo, a instalação de instrumentos de captação ambiental poderá ser realizada, quando necessária, por meio de operação policial disfarçada ou no período noturno, exceto na casa, observando-se o inciso XI do caput do art. 5º da Constituição da República.

É notável que tal previsão gera uma enorme insegurança jurídica na adoção desta técnica especial de investigação e, se mal interpretada, pode até resultar na imprestabilidade da captação ambiental como um meio de obtenção de prova. Vejamos, pois, as razões do veto:

A propositura legislativa gera insegurança jurídica, haja vista que, ao mesmo tempo em que admite a instalação de dispositivo de captação ambiental, esvazia o dispositivo ao retirar do seu alcance a ‘casa’, nos termos do inciso XI do art. 5º da Lei Maior. Segundo a doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o conceito de ‘casa’ deve ser entendido como qualquer compartimento habitado, até mesmo um aposento que não seja aberto ao público, utilizado para moradia, profissão ou atividades, nos termos do art. 150, §4º, do Código Penal (v.g. HC 82.788, Relator Min. Celso de Mello, 2ª Turma, j. 12/04/2005).

Uma vez exposta a problemática criada com a “derrubada” do veto presidencial, passamos à análise do texto legal. Primeiramente, nos parece evidente que o legislador buscou regulamentar a forma de instalação dos equipamentos de captação: a-) por meio de operação policial disfarçada; b-) durante o período noturno.

Por meio de uma análise perfunctória do dispositivo, fica claro que nas duas hipóteses o que se busca é a instalação dos equipamentos de captação sem que o alvo da medida tenha conhecimento. Nesse contexto, a ação policial disfarçada se destaca como um método eficaz, podendo os agentes se passar por funcionários de empresas de telefonia, de internet ou se televisão por assinatura. Outro caminho por nós vislumbrado seria o cumprimento de um mandado de busca domiciliar no local objeto da medida, ocasião em que os policiais poderiam chamar a atenção do investigado para um cômodo enquanto outros agentes instalam os equipamentos de captação. Nesse caso o “disfarce” não envolveria a identidade dos policiais, mas, sim, da pretensão investigativa. As buscas não passariam de um verdadeiro teatro para distrair o investigado e viabilizar a instalação dos dispositivos pertinentes. Ou seja, o “disfarce” pode ser material ou moral.

Outra opção indicada pelo legislador para a implementação da captação ambiental é a instalação dos equipamentos durante o “período noturno”, o que gerou mais polêmica por conta de uma possível proibição da adoção desta técnica na casa dos alvos da investigação. Com efeito, vislumbram-se pelo menos duas correntes sobre o tema:

1ª) Impossibilidade de instalação do equipamento de captação na casa: para eventuais adeptos desta corrente, ao excetuar a casa, o legislador criou uma inviolabilidade domiciliar para esta técnica de investigação, assegurando, consequentemente, a intimidade e vida privada dos moradores;
2ª) Os equipamentos de captação só podem ser instalados na casa durante o dia: esse entendimento nos parece mais adequado e consentâneo com uma interpretação literal, gramatical e teleológica do dispositivo. Isso porque ao excepcionar a casa o legislador o fez logo depois de se referir ao “período noturno”, delimitando, destarte, o alcance da norma a esta forma de instalação. Demais disso, o texto legal menciona o artigo 5º, inciso XI, da Constituição da República, que prevê a inviolabilidade domiciliar como um dos aspectos de proteção da intimidade e vida privada. Entretanto, o próprio legislador constituinte excepciona esta regra nas hipóteses de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, ainda, durante o dia, por determinação judicial.

Com efeito, em havendo decisão judicial, é possível a instalação dos equipamentos de escuta na casa, mas somente durante o dia, sendo vedada a “exploração de local” no período noturno. Em nosso sentir, com base na previsão constante no artigo 22, §1º, inciso III, da nova Lei de Abuso de Autoridade, a diligência poderia se desenvolver a partir das 5 hrs até às 21 hrs.

Nesse ponto, vale destacar que este regramento não inviabiliza a operacionalidade da captação ambiental como meio de obtenção de prova, pois o período noturno é, em regra, o momento em que os moradores estão na casa, o que, logicamente, dificultaria a ação policial, ainda que de forma disfarçada. Assim, o ideal é que a “exploração de local” ocorra mesmo “durante o dia”, ocasião em que o alvo da medida pode estar trabalhando ou até viajando, como é comum nos finais de semana e feriados.

Advertimos, contudo, que em nosso entendimento o conceito de “casa” constante no artigo 8º-A, §2º, da Lei 9.296/96, não deve ser retirado do artigo 150, §4º, do CP. Isto, pois, o conceito trazido pela norma em questão é extremamente amplo, abrangendo não apenas qualquer compartimento habitado (casas, apartamentos, “barracas” etc.) e aposento ocupado de habitação coletiva (hotéis, pousadas etc.), mas também qualquer compartimento não aberto ao público onde se exerça profissão ou atividade (consultório médico, escritórios etc.). Daí por que refutamos este conceito, sob pena de ocorrer a “perda de uma chance probatória” em alguns casos, como na hipótese de servidores públicos corruptos que concorrem para diversos crimes no interior de repartições e gabinetes.

Nesse cenário, a palavra “casa” deve ser interpretada restritivamente, de modo a conferir uma maior eficácia à captação ambiental, observando-se a previsão do artigo 70, do Código Civil, que estabelece que o domicílio é o local em que a pessoa natural fixa a sua residência com ânimo definitivo. Nestes termos, seria possível a instalação de equipamentos de captação ambiental em escritórios, repartições públicas, consultórios etc., em qualquer horário, inclusive no “período noturno”.

4 – GRAVAÇÕES AMBIENTAIS E LICITUDE PROBATÓRIA

Foi ainda objeto de veto presidencial o § 4º., do artigo 8º. – A, da Lei 9.296/96, nos moldes da Lei 13.964/19, sendo também tal veto derrubado pelo Congresso Nacional, restando a seguinte redação ao citado § 4º.:

§ 4º A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

Em suma, o §4º, do artigo 8º-A, prevê que a captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação. Aqui nós identificamos mais uma polêmica que teria sido resolvida com a manutenção do veto presidencial nos seguintes termos:

A propositura legislativa, ao limitar o uso da prova obtida mediante a captação ambiental apenas pela defesa, contraria o interesse público uma vez que uma prova não deve ser considerada lícita ou ilícita unicamente em razão da parte que beneficiará, sob pena de ofensa ao princípio da lealdade, da boa-fé objetiva e da cooperação entre os sujeitos processuais, além de se representar um retrocesso legislativo no combate ao crime. Ademais, o dispositivo vai de encontro à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que admite utilização como prova de infração criminal a captação ambiental feita por um dos interlocutores, sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público, quando demonstrada a integridade da gravação (v.g. Inq-QO 2.116, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão: Min. Ayres Britto, publicado em 29/02/2012, Tribunal Pleno).

Tendo em vista que o veto foi “derrubado” pelos nossos parlamentares, uma vez mais, cabe à doutrina e à jurisprudência conferir uma correta interpretação ao dispositivo, inclusive por meio do reconhecimento da sua inconstitucionalidade.

Primeiramente, deve-se observar que o legislador foi infeliz ao trazer uma previsão que envolve o conceito de “gravação clandestina” em um dispositivo que regulamenta outro meio de obtenção de prova, qual seja, a “captação ambiental”. Não por acaso, o artigo 10-A, da Lei 9.296/96, que criminaliza a “captação ambiental ilegal”, estabelece no seu §1º que “não há crime se a captação é realizada por um dos interlocutores”, referindo-se, a toda evidência, à “gravação ambiental”.

Nesse ponto, vale recordar que na “gravação ambiental” (clandestina), a comunicação objeto da captação se desenvolve diretamente entre presentes em um ambiente específico, público ou privado, sem o intermédio de qualquer meio de comunicação e é registrada diretamente por um dos interlocutores, sem o conhecimento do outro.

Sobre a legalidade da fonte de prova obtida através da gravação clandestina (telefônica ou ambiental), a doutrina de forma pacífica se posiciona pela sua licitude nas hipóteses em que ela serve para comprovar a inocência de uma pessoa investigada/acusada ou quando o responsável pela gravação está sendo vítima de um crime.

Fora dessas situações, há divergência sobre a licitude do procedimento, alegando-se, em linhas gerais, que a gravação sub-reptícia fere o direito à intimidade . Demais disso, o conteúdo da comunicação sofreria a influência daquele que a registra, sendo perfeitamente possível ludibriar o seu interlocutor, instigando-o a dizer algo de seu interesse, o que, de certa forma, ofenderia o princípio da isonomia e até da boa-fé. Nesse contexto, a gravação clandestina poderia funcionar como uma espécie de flagrante provocado, onde o agente provocador (responsável pela gravação) acaba induzindo seu interlocutor a expor crimes cometidos ou pretensões criminosas.

Em nossa visão, o grande problema das gravações clandestinas, sob o ponto de vista estritamente jurídico, reside no fato de que o procedimento não está regulamentado por lei, o que, de certa forma, gera uma insegurança jurídica e pode dar ensejo a abusos que naturalmente desembocam na violação do direito constitucional à intimidade.
Não é outra a observação feita por GRINOVER :

(…) o legislador perdeu uma boa oportunidade de regulamentar o assunto, que normalmente vem tratado, no direito estrangeiro, juntamente com a disciplina das interceptações. O Projeto Miro Teixeira cuidava expressamente dessas hipóteses, considerando lícita a produção da prova obtida mediante gravação clandestina, desde que utilizada para proteção de direito ameaçado ou violado de quem gravou a conversa.

Com efeito, parece-nos que a licitude ou não da prova obtida através desse expediente deve ser analisada casuisticamente, de acordo com o caso concreto. É claro que essa conclusão vai de encontro com o princípio da segurança jurídica, mas não enxergamos outra solução até que se regulamente a matéria. Nesse sentido, o STJ considerou ilícita a gravação clandestina realizada pela companheira do acusado, com o objetivo de incriminá-lo pelo homicídio da vítima, pessoa com quem ela mantinha uma relação amorosa. Nos termos da ementa da decisão: “tal prova (gravação clandestina) foi colhida com indevida violação de privacidade (art.5º, X, da CF) e não como meio de defesa ou em razão de investida criminosa, razão pela qual deve ser reputada ilícita”.

Sem embargo dos posicionamentos contrários a utilização da gravação clandestina (ambiental ou telefônica) como meio de obtenção de prova, reiteramos que o tema deve ser discutido de acordo com o caso concreto, à luz do princípio da proporcionalidade. Deve-se, portanto, perquirir se o sacrifício ao direito à intimidade da pessoa gravada de forma sub-reptícia se justifica diante da finalidade da gravação. Em outras palavras, é imprescindível que os bens jurídicos em confronto sejam sopesados, dando-se preferência aquele de maior relevância.

Demais disso, não podemos olvidar que a gravação de uma conversa não se confunde com a sua divulgação. É a divulgação que viola o direito à intimidade e não a gravação, afinal, as informações compartilhadas com a pessoa responsável pelo registro da comunicação ocorrem de maneira espontânea, sem qualquer tipo de coação ou engodo. Sendo assim, havendo justa causa (juízo de proporcionalidade), tais informações podem perfeitamente ser utilizadas como prova. Ora, se uma pessoa pode prestar testemunho sobre uma conversação da qual ela fez parte, por que uma gravação do mesmo diálogo seria considerada ilícita?

Nesse diapasão é o escólio de AVOLIO:

O que a lei penal veda, tornando ilícita a prova decorrente, é a divulgação da conversa sigilosa, sem justa causa. A “justa causa” é exatamente a chave para se perquirir a licitude da gravação clandestina. E, dentro das excludentes possíveis, é de se afastar – frise-se – o direito à prova. Os interesses remanescentes devem ser suficientemente relevantes para ensejar o sacrifício da privacy. Assim, por exemplo, a vida, a integridade física, a liberdade, o próprio direito à intimidade e, sobretudo, o direito de defesa, que se insere entre as garantias fundamentais. Ocorrendo, pois, conflito de valores dessa ordem, a gravação clandestina é de se reputar lícita, tanto no processo criminal como no civil, independentemente do fato de a exceção à regra da inviolabilidade das comunicações haver sido regulamentada.

No mesmo sentido é a mais recente jurisprudência do STF, adotada no caso envolvendo a prisão cautelar do Senador Delcídio do Amaral:

Embora o art. 5º, LVI, da Constituição desautorize o Estado a utilizar-se de provas obtidas por meio ilícitos, considerados aqueles que resultem de violação às normas de direito penal, a gravação de conversa feita por um dos interlocutores sem o conhecimento dos demais é considerada lícita, para efeitos da aludida vedação constitucional, quando não esteja presente causa legal de sigilo ou de reserva da conversação (…). A Turma asseverou que a conduta por parte do filho do candidato à delação premiada no sentido de gravar reuniões com o senador e demais participantes não revelaria violação à normativa constitucional. Portanto, não macularia os elementos de provas colhidos (…).

No intuito de reforçar a licitude da prova obtida através da gravação clandestina, podemos, ainda, nos socorrer de uma analogia com o artigo 233, parágrafo único, do Código de Processo Penal, que permite a utilização da comunicação epistolar sem o consentimento do interlocutor nos casos de interesse do destinatário: “As cartas poderão ser exibidas em juízo pelo respectivo destinatário, para a defesa de seu direito, ainda que não haja consentimento do signatário”.

Advirta-se, todavia, que a gravação clandestina de conversa mantida entre policiais e pessoa investigada (interrogatório sub-reptício) é considerada ilícita por ferir o princípio constitucional e convencional da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere). É mister destacar, porém, que a referida garantia não se estende a terceiras pessoas eventualmente citadas na gravação.

Frente ao exposto, podemos concluir o seguinte: a-) gravação telefônica não se confunde com interceptação telefônica e, portanto, não se submete ao rito da Lei 9.296/96 e, consequentemente, não depende de autorização judicial; b-) a gravação clandestina (telefônica ou ambiental) é considerada prova lícita, especialmente quando se predestina a fazer prova em inquérito ou em processo a favor do responsável pela gravação ; c-) a gravação clandestina será ilícita quando houver causa legal de sigilo ou de reserva de conversação (dever de guardar segredo); d-) a análise da licitude da prova obtida através de gravação clandestina deve ser feita de acordo com o caso concreto à luz do princípio da proporcionalidade.

Fixadas essas premissas, resta evidenciado que a inovação legislativa promovida pelo “Pacote Anticrime” vai de encontro com a doutrina e jurisprudência, limitando a utilização da “gravação clandestina” apenas nos casos em que o registro da comunicação é utilizado em benefício da defesa. Nesse sentido, são valiosas as lições de ALBECHE, se não, vejamos:

Para além dessas aparentes incongruências, a previsão apresenta inconstitucionalidade latente. A uma, porque, se pretende limitar a utilização da gravação ambiental à defesa, constitui-se em ofensa ao princípio da paridade de armas. As provas licitamente colhidas e produzidas podem ser utilizadas por ambas as partes, enquanto as ilícitas, apenas pela defesa como último recurso a demonstrar sua inocência ou eventual injustiça da decisão.
Contudo, quando coligidas de maneira idônea, as provas podem ser utilizadas tanto pela acusação quanto pela defesa. Se pensarmos esta configuração no âmbito da fase judicial, limitar o resultado da obtenção da prova à utilização exclusiva como matéria de defesa ofende o princípio da comunhão das provas, segundo o qual as partes produzem as provas que entendem pertinentes, mas, uma vez juntadas ao processo, a todos pertencem. Dessa forma, a ofensa ao princípio da comunhão das provas e a aparente proibição de utilização pela acusação ofende o princípio do devido processo legal.

De fato, ao limitar a utilização desse meio de prova em benefício da defesa, a regra viola uma premissa básica da persecução penal: a paridade de armas. Fere, ademais, o interesse público no correto esclarecimento da notitia criminis. Ora, a legalidade de uma prova não pode ser avaliada sob o prisma daquele que dela se beneficia. Uma vez obtida legalmente, a prova deve servir à Justiça, seja em prejuízo do réu ou em seu benefício.
Situação completamente distinta é aquela em que a prova é obtida ilegalmente, hipótese em que a maioria da doutrina a admite em benefício da defesa com base no princípio da proporcionalidade. Isto, pois, neste caso prevaleceria o interesse público na correta aplicação da Lei Penal, evitando-se uma injustiça.

Com efeito, por violar os princípios da proporcionalidade, da paridade de armas, da comunhão de provas e, sobretudo, o princípio da supremacia do interesse público, só se pode concluir pela inconstitucionalidade do artigo 8º-A, §4º, da Lei 9.296/96!
Outra alternativa seria conferir ao dispositivo legal a interpretação no sentido de que o objetivo do legislador foi apenas reforçar a validade da “gravação ambiental” pela defesa, mas desde assegurada a integridade do registro. Nesse contexto, a inovação legislativa é absolutamente desnecessária, pois qualquer fonte de prova deve ter a sua cadeia de custódia preservada, nos termos do artigo 158-A, acrescentado ao CPP pelo “Pacote Anticrime”.
Do contrário, se admitirmos que a “gravação ambiental” só poderia ser utilizada pela defesa, uma vítima de concussão ou de extorsão mediante sequestro não poderia se valer dessa prova para demonstrar a investida do criminoso, o que, conforme já salientado, vai de encontro ao entendimento consolidado na doutrina e na jurisprudência.

Outra saída para contornar a inconstitucionalidade e até mesmo a falta de bom – senso da legislação é fazer uma interpretação ampla da palavra “defesa”, ou seja, significando não somente a atuação do investigado, acusado ou seus defensores na persecução penal, mas abrangendo qualquer conduta em que um indivíduo aja em “defesa” de seus direitos ou interesses, como é exatamente o exemplo sempre indicado pela doutrina e jurisprudência daquele que é vítima de um crime e efetua uma gravação para comprovação dessa situação, agindo, pode-se dizer, até mesmo, em “legítima defesa” de bens jurídicos postos em jogo. Parece-nos que a interpretação desse infeliz dispositivo não pode jamais fugir desse norte, sob pena de inconstitucionalidade por insuficiência protetiva e até mesmo da caracterização de uma norma produzida sem o mais mínimo bom – senso.

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

Francisco Sannini

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor da Pós-graduação da UNISAL/Lorena. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Autor de livros jurídicos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo. Titular do primeiro Setor de Combate à Corrupção, Organização Criminosa e Lavagem de Dinheiro (SECCOLD) do Estado de São Paulo.

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