quinta-feira,28 março 2024
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Uma primeira análise sobre as restrições à livre iniciativa em razão da COVID-19

Desde o reconhecimento da pandemia da Covid-19 como evento de força maior, passaram os entes federativos – União, Estados e Municípios – a editar os mais variados atos normativos com vistas ao enfrentamento do novo coronavírus. Inicialmente, foi editada a Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência da saúde pública. Por força da redação dada pela Medida Provisória 926, de 20 de março de 2020, ficou disciplinado que as autoridades públicas poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras medidas, a restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de entrada e saída do País e locomoção interestadual e intermunicipal. Estipula-se, ainda, que as medidas previstas deverão resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, os quais serão previstos em Decreto a ser expedido pelo Presidente da República. Concomitantemente aos atos normativos federais, passaram também os Estados e os Municípios a editar atos normativos adotando medidas para o combate do coronavírus, tais como isolamento social, fechamento de comércio, definição de serviços essenciais e outras restrições. As atividades tidas como não essenciais foram compelidas a paralisação, por imposição muitas das vezes em razão de Decretos estaduais ou municipais.

De um dia para outro as pessoas naturais e jurídicas se depararam com uma enxurrada de atos normativos contendo normas restritivas a direitos fundamentais e a princípios constitucionais. Chegou o momento para a definição do grau de atuação de cada um dos entes estatais, especialmente para que sejam observados os parâmetros constitucionais de proteção à saúde, como também de proteção à livre iniciativa e o seu consectário da liberdade econômica.

A Constituição Federal, em seu art. 24, inc. XII, dispõe que a União e os Estados detêm competência legislativa concorrente para editar medidas em defesa da saúde, dentro do espectro do que se denomina de federalismo cooperativo, cabendo à União editar normas gerais, e aos Estados a edição de normas específicas complementares. Aos Municípios, por sua vez, a Constituição Federal, em seu art. 30, estabelece que compete legislar sobre assuntos de interesse local. Se é certo, de um lado, que, nas hipóteses de competência legislativa concorrente da União e dos Estados, a União não dispõe de poderes ilimitados que lhe permitam transpor o âmbito das normas gerais, para, assim, invadir, de modo inconstitucional, a esfera de competência normativa dos Estados, não é menos exato, de outro, que o Estado, em existindo normas gerais veiculadas em lei federal, não pode ultrapassar os limites da competência meramente suplementar, pois, se tal ocorrer, a lei estadual incidirá, diretamente, no vício da inconstitucionalidade.

A edição de lei estadual que contrarie, frontalmente, critérios mínimos legitimamente veiculados, em sede de normas gerais, pela lei federal ofende, de modo direto, o texto constitucional (conferir STF, ADI 2.903, rel. Min. Celso de Mello). A Constituição Federal contemplou a técnica da competência legislativa concorrente entre a União e os Estados, cabendo à União estabelecer normas gerais e aos Estados especificá-las, sendo inconstitucional lei estadual que amplia definição estabelecida por lei federal, em matéria de competência concorrente (conferir ADI 1.245, rel. Min. Eros Grau).

Instado a se pronunciar em ação direta de inconstitucionalidade (ADI 6341), o Plenário do STF confirmou o entendimento de que as medidas adotadas pelo Governo Federal na Medida Provisória 926/2020 para o enfrentamento do novo coronavírus não afastam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, e que a União pode legislar sobre a definição das atividades essenciais, mas que o exercício desta competência deve resguardar a autonomia dos Estados e dos Municípios. Em suma, foi reafirmado o entendimento de que não há na Medida Provisória 926/2020 transgressão à norma constitucional, eis que não se afastou a competência de os Estados e os Municípios virem a exercer a competência concorrente para legislar sobre saúde pública.

Diante deste cenário, a Governadora do nosso Estado (RN) e de outros vêm editando Decretos, determinando a suspensão de várias atividades que têm nítida influência local (bares, shopping center, restaurantes, igreja, museu, biblioteca, teatro, bancos etc), chegando ao extremo, por exemplo, de estabelecer que está suspenso o funcionamento de toda e qualquer atividade exercida por pessoa jurídica de direito privado, observadas as exceções previstas no próprio decreto.

As indagações que se fazem são as seguintes: detém o Estado competência para regular o funcionamento de atividades de abrangência nitidamente local? E se tiver, a restrição pode ser imposta em Decreto? A nosso ver, a partir do critério de preponderância da abrangência, é que se define a competência legislativa, tal como vem decidindo o STF. A propósito, o STF já decidiu que é da competência do Município:

1 – fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial (súmula vinculante 38);
2 – legislar sobre a definição de tempo máximo de espera de clientes em filas de instituições bancárias (tema 272);
3 – legislar sobre matéria de segurança em estabelecimentos bancários (ARE 784.981-AgRg);
4 – legislar sobre a paisagem urbana, com vistas a evitar a poluição visual e bem cuidar do meio ambiente e do patrimônio da cidade (AI 799.690-AgRg);
5 – legislar para regular o horário do comércio local (AI 622.405-AgRg);
6 – legislar sobre edificações ou construções realizadas em seu território, assim como sobre assuntos relacionados à exigência de equipamentos de segurança (AI 491.420-AgRg).

Por conseguinte, é nítida a inconstitucionalidade das regras previstas em decreto estadual que, sob pretexto do exercício de poder de polícia, disciplina o funcionamento de estabelecimentos comerciais e assuntos análogos, em especial a que indiscriminadamente proíbe o exercício da atividade econômica (conferir ADI 3.731-MC e ADI 3.691). A propósito, o fato de a matéria ser intrinsecamente de interferência local também não confere um cheque em branco ao Município, eis que as restrições eventualmente previstas devem ser examinadas à luz dos princípios constitucionais, tendo por exemplo o STF decidido ser inconstitucional lei municipal que impeça a instalação de estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada área, a teor do princípio que assegura a livre iniciativa e livre concorrência (súmula vinculante 49).

De outro lado, as restrições a direitos fundamentais veiculados à livre iniciativa e a liberdade econômica se submetem à reserva da lei formal. Vale dizer, as restrições a direitos fundamentais devem constar em lei, não sendo válido decreto trazer inovação à ordem jurídica, eis que o princípio constitucional da reserva de lei formal traduz limitação ao exercício das atividades administrativas do Estado, de sorte que a reserva da lei constitui postulado revestido de função excludente, de caráter negativo, pois veda, nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções normativas, a título primário, de órgãos estatais não legislativos, tal como é o caso quando Governador Estadual expede um decreto, assim como projeta-se em uma dimensão positiva, eis que a sua incidência reforça o princípio que impõe à administração a necessária submissão aos comandos estatais emanados exclusivamente pelo legislador. Portanto, a superveniência de um evento de força maior, tal como a covid-19, não constitui motivo para que sejam afastadas as regras constitucionais que consagram os direitos fundamentais das pessoas naturais e jurídicas.

 

Mestre e Doutor pela PUC-SP. Professor da graduação e do Mestrado na UFRN. Advogado.

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