quinta-feira,28 março 2024
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Transexual pode ser vítima de feminicídio?

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1. Breve introdução. 2. Aparatos legislativos de proteção à mulher em situação de violência. 3. Escorço sobre o feminicídio. 4. Transexual pode ser vítima de feminicídio? 5. Conclusão.

1. Breve introdução

O presente texto visa analisar o feminicídio e o enfrentamento da temática que envolve a (im)possibilidade de pessoa transexual figurar como vítima. Porém, antes, tem por escopo demonstrar, de forma não exauriente, a evolução dos diversos mecanismos legais que surgiram para erradicar a violência de gênero, amparar as mulheres vítimas dessa prática abjeta e implicar consequências cautelares e definitivas aos agressores que se valem da pseudo superioridade que julgam possuir, as quais, nosso ordenamento jurídico cuidou de equilibrá-la, seja por meio da proteção estatal, seja mediante ações afirmativas destinadas a compensar desigualdades entre o homem e a mulher.

2. Aparatos legislativos de proteção à mulher em situação de violência.

A violência contra a mulher é uma realidade que atinge a população feminina de forma alarmante. Segundo os dados da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, obtidos por meio de análise da Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência – “Ligue 180”, nos dez primeiros meses de 2015, foram registradas 63.090 informações de violência praticada contra as mulheres, levando o Brasil a obter uma média equivalente a um relato de agressão a cada sete minutos. [1]

Visando coibir essa antiga e covarde prática que assola grande parte da população feminina mundial, a Convenção Interamericana Para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como a “Convenção de Belém do Pará”, aprovada perante o Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo nº 107/1995, e incorporada ao ordenamento jurídico pátrio pelo Decreto nº 1973/1996, define o que é violência contra a mulher e quais são suas modalidades, atribuindo aos Estados deveres e mecanismos de proteção. Ademais, referido documento internacional ressalta que “a violência contra a mulher constitui violação dos direitos humanos e liberdades fundamentais”, constituindo, inclusive, “ofensa contra a dignidade humana”.

De igual modo, a Lei nº 11.340/2006, amplamente conhecida como Lei Maria da Penha, foi estatuída não só com o fito de inibir os crimes de gênero como também e, principalmente, para dispor à mulher vítima de violência doméstica e familiar, a competente proteção pelo Estado, tanto por meio de ações integradas entre seus diversos órgãos, quanto por meio das medidas protetivas de urgência que afastem as ameaças de injusto intentadas pelo agressor.

Não obstante referidas norma integrarem o rol das medidas de combate à violência contra a mulher, nosso legislador ordinário estatuiu o feminicídio, consistente em qualificar o homicídio praticado por qualquer pessoa contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, tornando-se, por consequência, crime hediondo, conforme dispõe a Lei 13.104/2015, a qual veremos a seguir.

3. Escorço sobre o feminicídio

Como já aludido, o feminicídio surgiu com a edição da Lei nº 13.104/2015, a qual inseriu no parágrafo 2º, do artigo 121, do Código Penal, a sexta qualificadora do crime de homicídio.

Cuidou o legislador de explicar no parágrafo 2º-A, do artigo 121, do mesmo diploma legal, o que seria a expressão “razões de condição de sexo feminino”, aduzindo tratar-se de feminicídio quando o crime envolver: a) violência doméstica e familiar e b) menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Registre-se que a definição de violência doméstica e familiar ficou a cargo do artigo 5º, da Lei 11.340/2016 (Lei Maria da Penha), entendendo-se como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause a morte da mulher, seja no âmbito da unidade doméstica, da família ou de qualquer relação íntima de afeto.

Por sua vez, o menosprezo ou a discriminação à condição de mulher, situação a qual impende análise caso a caso, trata-se de um conjunto de adjetivos depreciativos que visam subjugar a mulher ao estado de “coisa”, tratando-a como ser inferior, fazendo com que sua morte torne-se a forma de humilhá-la, diminuí-la, desprestigiá-la, segrega-la, etc.

Ressalte-se que a nomenclatura feminicídio significa, portanto, matar mulher pela motivação especial de ser a vítima pessoa do sexo feminino. Como exemplo de feminicídio por violência doméstica, tem-se o agente que mata sua esposa em razão dela se negar a trocar a saia curta antes de sair de casa. Já o exemplo de feminicídio por menosprezo ou discriminação, tem-se o agente que mata a sua chefe por não aceitar ser subordinado a uma mulher. De se notar que nesses casos, o homem age impelido pela crença íntima da submissão do gênero feminino ao masculino.

Diferente, entretanto, do femicídio, o qual, por sua vez, trata-se de matar mulher com ausência da condição específica do gênero feminino. Como exemplo, cita-se o indivíduo que mata a mulher para receber o seguro de vida. Nesse episódio, o agente mata com a precípua intenção monetária, independentemente do sexo da vítima.

Como não bastasse o fato da novel lei qualificar o homicídio, erigindo o feminicídio ao rol dos crimes hediondos, conforme artigo 1º da Lei nº 8.072/1990 (Crimes Hediondos), o legislador ordinário ainda submeteu o feminicida a causas peculiares de aumento de pena, consoante dispõe o parágrafo 7º, do artigo 121, do Código Penal, mencionando que a reprimenda para o crime em tela poderá ser aumentada de um terço até a metade se for cometido: a) durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto; b) contra pessoa menor de 14 anos, maior de 60 anos ou com deficiência e; c) na presença de descendente ou de ascendente da vítima.

Apenas a título de ilustração, interessante esclarecer que as circunstâncias que fazem aumentar a sanção do feminicida deve ser por ele conhecida. Se ignoradas, portanto, as tais peculiaridades, excluir-se-á o aumento de pena ante a configuração do erro de tipo em relação a este gravame.

4. Transexual pode ser vítima de feminicídio?

Como visto, tratou a Lei 13.104/2015 de qualificar e agravar a pena do homicida que atenta contra a vida de mulher por motivos de condição de sexo feminino, seja em razão de violência doméstica e familiar, seja por menosprezo ou discriminação à sua condição de gênero.

Sob esse viés, por óbvio, exclui-se ao homem a possibilidade de figurar como vítima desse crime.

Porém, necessário o questionamento em relação ao transexual. É possível a pessoa transexual figurar como vítima do crime de feminicídio?

Para chegar numa resposta plausível, deve-se compreender o significado do transexualismo. Para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, “o transexual não pode ser confundido com o homossexual, bissexual, intersexual (também conhecido como hermafrodita) ou mesmo com o travesti. O transexual é aquele que sofre uma dicotomia físico-psíquica, possuindo um sexo físico, distinto de sua conformação sexual psicológica. Nesse quadro, a cirurgia de mudança de sexo pode se apresentar como um modo necessário para a conformação do seu estado físico e psíquico”. [2]

Genival Veloso de França, aduz ser o transexualismo uma “inversão psicossocial, uma aversão e uma negação ao sexo de origem, o que leva esses indivíduos [transexuais] a protestarem e insistirem numa forma de cura por meio da cirurgia de reversão genital, assumindo, assim, a identidade do seu desejado gênero”. [3]

Diante de tais conceitos, ousa-se extrair que o transexual, não confundível com o homossexual ou travesti, possui em sua psique uma confusão de identidade de gênero, rejeitando sua característica físico-sexual para prover-se perante a sociedade como se enxerga psicologicamente, ou seja, com os atributos do sexo oposto ao de seu nascimento. A adaptação do transexual é advinda com a cirurgia de mudança de sexo, conformando-se, por corolário, sua característica física com a psicológica.

Como ao Direito nada se constrói sobre único pilar, duas correntes dividirão bons argumentos sobre a possibilidade, ou não, do transexual figurar como vítima do crime de feminicídio.

A primeira posição, de cunho conservadora, menciona, categoricamente, que o transexual não é mulher, apesar de transmudar fisicamente seu órgão genital, razão pela qual, não poderia estar abarcado pela proteção especial da Lei nº 13.104/2015.

De acordo com Victor Eduardo Rios Gonçalves, “somente mulheres podem ser sujeito passivo de feminicídio.” [4]

Sob o mesmo prisma, para Francisco Dirceu Barros, “identifica-se a mulher em sua concepção genética ou cromossômica. Neste caso, como a neocolpovulvoplastia [cirurgia de transgenitalização] altera a estética, mas não a concepção genética, não será possível a aplicação da qualificadora do feminicídio”. [5]

A segunda corrente, com tendência mais moderna, defende que se o transexual tiver feito a cirurgia de mudança de sexo de forma definitiva e a retificação de seu registro civil, deve ter o tratamento dispensado de acordo com a sua nova característica física, vez que a psicológica já o colocava nessa posição.

Verifica-se que tal posicionamento combina dois critérios: a) o bio-psicológico, consistente na realização da mudança do sexo de origem para correlação ao sexo psicológico e, b) o jurídico, traduzindo-se como a alteração do gênero nos assentamentos civis.

Nessa toada, Rogério Sanches Cunha, simpático a esta contemporânea corrente, diz que “a mulher de que trata a qualificadora é aquela assim reconhecida juridicamente. No caso de transexual que formalmente obtém o direito de ser identificado civilmente como mulher, não há como negar a incidência da lei penal porque, para todos os demais efeitos, esta pessoa será considerada mulher”. [6]

Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Celso Delmanto, afirma que o transexual que mantém o psiquismo voltado para o gênero feminino e que tenha realizado tanto a cirurgia de mudança de órgãos genitais, quanto a alteração em seu registro civil para fazer constar mulher, poderá ser abrangido pela proteção especial do feminicídio. [7]

Rogério Greco, sintetizando a temática, explica que “aquele que for portador de um registro oficial (certidão de nascimento, documento de identidade) onde figure, expressamente, o seu sexo feminino, poderá ser considerado sujeito passivo do feminicídio”. [8]

Vê-se, portanto que a corrente moderna, vem ganhando força com argumentos cada vez mais convincentes e harmônicos ao cenário social atual. Ignorar a galopante evolução das pessoas e das ciências, seria o mesmo que engessar o Direito, impedindo o progresso da hermenêutica jurídica à realidade contemporânea.

Em que pese os renomados juristas defensores da posição ortodoxa, em rechaçar a possibilidade da pessoa transexual ser protegida pela figura do feminicídio, fato é que, sob o prisma teleológico, quis a Lei 13.104/2015 proteger o polo mais fraco da relação afetiva ou social, seja ela biologicamente mulher ou juridicamente mulher, razão pela qual, filiamo-nos a corrente moderna.

5. Conclusão

Ainda que a temática seja relativamente nova, ao operador do direito é de rigor enfrenta-la. O mundo moderno urge por soluções à altura de seu progresso. Ainda que não seja com ele anuente, deve, ao menos, ser compatível com o que se espera de uma ciência evolutiva. O Direito já respondeu e se adaptou com maestria à era ambiental, à era coletiva, à era digital e, hodiernamente deve encarar com ética e responsabilidade o desafio de adequação dos transexuais à sua realidade, a fim de que não remanesça sem identidade social, seja no âmbito do direito privado e, principalmente, diante do direito público, obrigação maior do Estado e objeto do presente texto, o qual teve por objetivo estimular a discussão acerca do feminicídio e a possibilidade da pessoa transexual figurar como vítima desse crime hediondo.

 

Referências bibliográficas

[1] Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República <http://www.spm.gov.br> acessado em 28/07/2016.
[2] Farias, Cristiano Chaves de e Rosenvald, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB, v. 1, Editora Atlas, São Paulo, 2015, p. 183.
[3] França, Genival Veloso. Fundamentos de medicina legal. Editora Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2005, p. 142.
[4] Gonçalves, Victor Eduardo Rios. Direito penal, parte especial, esquematizado. 6ª edição, Editora Saraiva, São Paulo, 2016, p. 199.
[5] Barros, Francisco Dirceu. Feminicídio e neocolpovulvoplastia: As implicações legais do conceito de mulher para os fins penais. In <http://franciscodirceubarros.jusbrasil.com.br/artigos/173139537/feminicidioeneocolpovulvoplastia-as-implicacoes-legais-do-conceito-de-mulher-para-os-fins-penais>. Acessado em 28/07/2016.
[6] Cunha, Rogério Sanches. Manual de direito penal, parte especial, Editora Juspodivm, Salvador, 2016, p. 66.
[7] Delmanto, Celso… [et. al.] Código Penal Comentado, 9ª edição, Editora Saraiva, São Paulo, 2016, p. 971.
[8] Greco, Rogério. Feminicídio – Comentários sobre a Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. In <http://rogeriogreco.jusbrasil.com.br/artigos/173950062/feminicidio-comentarios-sobre-a-lei-n-13104-de-9-de-marco-de-2015>. Acessado em 28/07/2016. Transexual-feminicídio-wanderley-santos

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1 COMENTÁRIO

  1. Uma boa forma de adaptar-se às mudanças sociais, é tratar a transexual de acordo com o pronome feminino. Muito embora o conteúdo do artigo esteja muito bem estruturado, há uma forte contradição entre reconhecer a mulher trans como sujeito passível de sofrer feminicídio, justamente por seu reconhecimento como pertencente ao gênero feminino, e referir-se à elas como ” O transexual” , ” AO transexual”.

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