quinta-feira,28 março 2024
ColunaTrabalhista in focoTrabalho Intermitente: Contrato de servidão voluntária?

Trabalho Intermitente: Contrato de servidão voluntária?

Coordenador: Ricardo Calcini.

 

Há um ano, em maio de 2017, quando convidado a se manifestar na sessão temática[1] sobre a reforma trabalhista, o ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Maurício Godinho Delgado criticou o PLC 38/2017, que se converteu na famigerada Lei da Reforma Trabalhista (13.467 de 2017), manifestando-se no sentido de que o Senado poderia e deveria corrigir os excessos e as desproporcionalidades contidas no texto aprovado pela Câmara dos Deputados. Atribuiu o termo contrato de servidão voluntária à contratualidade na modalidade intermitente.

As insurgências jurídicas/doutrinarias não foram capazes de criar obstáculos a fim de impedir ou modificar o que o projetado para atender os anseios do capital já celebrava: a inserção de uma nova modalidade de trabalhador, que de fato se consolidou posteriormente em 11 de novembro de 2017, através do art. 452-A inserido na CLT, na legislação vigente mantido na íntegra, após o encerramento da vigência da MP 808.

Seria de fato a inserção da modalidade de trabalho intermitente modernização das relações de trabalho sem precarizar os direitos laborais tão duramente conquistados? Tal modalidade fomenta a empregabilidade e combate o desemprego? São certamente perguntas instigantes, que retumbam na mente “dos trabalhistas” sem cessar.

Que país é esse, que ostenta como lema em sua bandeira Ordem e Progresso, mas promove “cortes na carne” do trabalhador hipossuficiente, como na composição de Renato Russo: “Sujeira pra todo lado. Ninguém respeita a Constituição. Mas todos acreditam no futuro da nação”.

E ainda, com a arte através da música, utilizando-se de experiências sensoriais, cita-se aquele intitulado pai da reforma: Marlos Augusto Melek, que, em uma de suas brilhantes defesas pró reforma, arguiu que sempre cria uma trilha sonora para cada desafio que aparece na sua vida, e o desafio de ajudar a escrever nova Lei trabalhista o teria inspirado para o trecho de uma música, que fez questão de evidenciar[2]:

A esperança dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha pode se machucar
Ah, a esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
tem que continuar.

A oratória do referido magistrado é envolvente, contudo, o mesmo otimismo, crença e esperança que expõe em todos os seus discursos favoráveis a deletéria reforma, não são capazes de convencer de que o show para o qual se abrem as cortinas do luto, e que vai continuar, será o show de horrores, já que artista de fato terá que ser o trabalhador, que, por exemplo:
a) poderá ter emprego e não ter salario;
b) poderá ter estabilidade legal e não ter qualquer remuneração;
c) poderá, no caso de trabalhadora mulher, deixar de ser convocada por sua condição de gestar;
d) não terá qualquer garantia mínima de convocação mensal e estará à disposição do empregador;
e) não computará para fins previdenciários muitos dos meses em que tenha prestado labor, ou que não tenha sido convocado, face a total impossibilidade de contribuir com a previdência quando é um “falso” empregado, um trabalhador sem renda… Inexistindo desde modo como segurado e beneficiário da previdência social.

Retrocedemos à coisificação do Ser, e a realidade que se apresenta é de ofensa ao histórico Princípio da Proteção, que possui raízes constitucionais albergadas na dignidade da pessoa humana (Art. 1º III), nos valores sociais do trabalho (Art. 1º, IV), no direito social ao trabalho (Art. 6º, caput), na melhoria progressiva da condição social do trabalhador (Art. 7º, caput).

Ora, sempre que estamos diante de direitos fundamentais, de direitos sociais, a ideia é de progressividade, e não de retrocesso. O princípio da vedação do retrocesso encontra amparo Constitucional, no art 7º e art. 5º §2º, bem como apresenta-se também no art 19, item 8 da Constituição da OIT.

Dallegrave Neto, em fervorosa crítica ao texto da reforma, o chama de pacote de maldade, e potencializando sua verbera, pronuncia que Executivo e Legislativo hoje servem ao grande capital[3].
A quem interessa e beneficia o trabalho intermitente? Ao trabalhador, na ideia de que seria a formalização do bico? E, ainda, com o firme propósito de garantir mais empregos e renda, o interesse do Capital seria mesmo o de garantir um patamar mínimo civilizatório ao trabalhador?

Não querendo cultivar descrédito, descrença às tais “bondades” defendidas pelo pai da Reforma e seus discípulos, mas se o interesse fosse preservar empregos e garantir remuneração digna ao trabalhador, a modalidade de trabalho intermitente trazida de legislação estrangeira, na qual diz se inspirar, garantiria patamares mínimos de prestação labor, e consequentes salários, bem como estabeleceria outros critérios, como explicitar a aplicação de tal contrato para determinadas profissões como garçons e músicos. Não deixaria tão evidente a motivação tão somente econômica, elegendo a derrogada de direitos laborais como a tabua da salvação para a crise financeira.

Do Direito Comparado:

Como propagado, a inspiração de tal modalidade de trabalho adveio de outros países. Vejamos como ocorre essa modalidade três países destacados:

    • Na Alemanha: Arbeit Auf Abruf (trabalho a pedido) inserido através da Lei de Promoção ao Emprego, de 1985. Estipula-se jornada mínima e salario, e a chamada deve ocorrer com 4 dias de antecedência. Observe-se que não existe a possibilidade de não trabalhar em um mês, e consequentemente não receber, diferentemente na regra pátria.

 

    • Na Itália: Lei Biagi do ano de 2003, complementada pela Jobs act:
      Neste país a prestação do trabalho intermitente não é para todos os trabalhadores, sendo permitido para menores de 25 anos e maiores de 55 anos. Pela delimitação da faixa etária, percebe-se que a ideia é, portanto, de primeiro emprego ou de trabalho inclusivo, e não um propósito de regra geral. Outros destaques: Deve haver estipulação em ACT ou CCT, e, na falta de norma coletiva tem que haver regulamentação pelo Ministério do Trabalho. Há ainda várias restrições, como não poder utilizar intermitentes para substituir grevistas, não pode ser utilizado se a empresa não estiver em dia com as normas de Medicina e Segurança do Trabalho.

 

    • Em Portugal: Através de um acordo Tripartido para um novo sistema de regulação das Relações Laborais de 2008 –Código do Trabalho de 2009. Nominados de: trabalho alternado e trabalho a chamada.
      Alternado: para empresas que prestam serviços em descontinuidade ou de intensidade variável, podendo as partes acordar pela prestação de serviços intercaladas. Chamada: Deve ocorrer em pelo menos 20 dias antes. No alternado com exclusividade, no por chamada, sem exclusividade. Há previsão de ganho mínimo. Há compensação retributiva de pelo menos 20% em período de inatividade.

O cotejo supra é simplório, mas permite a compreensão de que a “cópia” não guardou relação com o original, e que a modalidade de trabalho intermitente sem qualquer garantia de labor ou salário mínimo, com a permissão de forma desmedida e sem qualquer restrição para qualquer tipo de atividade e de tempo desestrutura a arquitetura da relação de trabalho no Brasil.
Precariza patamares já consolidados: definição de jornadas, garantia de salario. Não obstante e não menos grave, atenua a fixação do trabalhador na empresa, retira dele o sentimento de pertença que concretiza direitos fundamentais, cria a figura do trabalhador objeto, descartável, não assegurando ainda nenhuma participação dos sindicatos nos acompanhamentos desses contratos, nem proteção ao trabalhador que verte seu labor em troca de sustento.

Por fim, no entorno reflexivo, de no Brasil vir a ser um contrato de servidão voluntaria, convém por em relevo, o soneto da opressão, com o qual o Juiz Renato da Fonseca Janon ilustrou texto crítico, uma sátira quando discorreu sobre “A Destruição da República”, mencionando o país Pindorama, como um reino desencantado que, cansados da opressão, se rebelaram, alcançaram a prosperidade, que pouco durou, e que transformou o povo em eternos bobos da corte, pois, acreditaram que a democracia os fariam sentir parte do processo de evolução do país, porém, tinha algo de podre:

Era uma terra pacata e distante, Sem cerca, sem grade, sem muro, Até que lá chegou um farsante, Que escondia o passado obscuro, Ele falava em ordem e em lei, Ensinando o povo a ter medo, Fizeram então dele o seu rei, Mas o rei tinha um segredo, É que a força do tirano, Não era espada nem cobre, Não era o grito do insano, Era o silêncio do pobre[4].

 


 

Referências:

[1] Senado Federal realiza primeira sessão temática para debater reforma trabalhista. Disponível em: <https://www.anamatra.org.br/imprensa/noticias/25310-senado-federal-realiza-primeira-sessao-tematica-para-debater-reforma-trabalhista> . Acesso em: 14 maio de 2018.
[2] As bondades da Reforma trabalhista – Marlos Melek. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=akXFnYUiqEw>
[3] As maldades da Reforma trabalhista – José Affonso Dallegrave Neto. https://www.youtube.com/watch?v=hhN0BGF9PMY
[4] JANON, Renato da Fonseca. A destruição da República. Justificando. Disponível em:< http://justificando.cartacapital.com.br/2016/08/29/a-destruicao-da-republica/>. Acesso em: 07 de mar de 2018.

COLOMBO FILHO, Cássio. Trabalho intermitente: contrato de servidão voluntária? https://www.youtube.com/watch?v=GnB4jhuSQ_M

Receba artigos e notícias do Megajurídico no seu Telegram e fique por dentro de tudo! Basta acessar o canal: https://t.me/megajuridico.
spot_img

DEIXE UM COMENTÁRIO

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

spot_img

Mais do(a) autor(a)

spot_img

Seja colunista

Faça parte do time seleto de especialistas que escrevem sobre o direito no Megajuridico®.

spot_img

Últimas

- Publicidade -