sexta-feira,29 março 2024
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Tema 1010 do STJ: Área urbana consolidada – a lei de ocupação do solo e o código florestal

Na vigência do Código Florestal anterior (Lei 4771/65), havia uma discussão jurídica se as regras nele previstas aplicavam-se ou não às áreas urbanas, eis que, a par de uma interpretação voltada aos fins, as normas jurídicas se dirigiam essencialmente às áreas rurais.

Em 1989, a Lei 7.803, ao dar nova redação ao art. 2, parágrafo único, do antigo Código Florestal, estabelecia que, nas áreas urbanas, deveriam ser observadas as normas contidas no Plano Diretor e na Lei de Solo Urbano, respeitados os princípios e os limites previstos no Código Florestal.

A propósito, a Constituição Federal, em seu arts. 30, VIII, e 182, preceitua que o uso e a ocupação do solo e do espaço urbano no âmbito dos Municípios atraem a disciplina do Plano Diretor e da lei urbana local. Na esteira de tais dispositivos constitucionais, tratando-se de assunto de interesse local, vem sendo reafirmada a orientação de que cabe à lei local o disciplinamento do uso e da ocupação do solo urbano (STF, RE 607940, RE 632006).

Registre-se que, mesmo antes da inserção da figura do condomínio de lotes no Código Civil, que se operou pela Lei 13.465/2017, o STF já reconhecera a competência do Município de, mediante lei local, estabelecer forma diferenciada de uso e de ocupação de espaço urbano voltado a loteamentos fechados (RE 607940).

A Constituição Federal, em seu art. 225, parágrafo primeiro, inc. III, permite a alteração e até mesmo a supressão de espaços territoriais especialmente protegidos, desde que por meio de lei formal, ainda que a referida proteção tenha sido conferida por ato infralegal. De fato, a defesa do meio ambiente é um dos princípios constitucionais da ordem econômica, mas não é o único. Assim, o mero risco potencial de danos ambientais, em regra, não serve, por si só, para impedir completamente o desempenho de atividades econômicas (STF, RE 519778).

Mas, logo surgiram casos difíceis em que se tornava inviável ou impossível o cumprimento de normas jurídicas ambientais em áreas urbanas já consolidadas, sob pena de implicar retrocesso social, como por exemplo pretensão de demolições de situações fáticas já consolidadas.

Neste contexto, passou o direito ambiental a dispensar tratamento às áreas urbanas tidas como consolidadas. A Resolução 303/2002, em seu art. 2, inc. XIII, considera área urbana consolidada: aquela que atende aos seguintes critérios: a) definição legal pelo poder público; b) existência de, no mínimo, quatro dos seguintes equipamentos de infra-estrutura urbana: 1. malha viária com canalização de águas pluviais, 2. rede de abastecimento de água; 3. rede de esgoto; 4. distribuição de energia elétrica e iluminação pública; 5. recolhimento de resíduos sólidos urbanos; 6. tratamento de resíduos sólidos urbanos; e c) densidade demográfi ca superior a cinco mil habitantes por km2. Por sua vez, a Lei 11.977/2009, em seu art. 47, inc. II, considera área urbana consolidada a parcela da área urbana com densidade demográfica superior a 50 (cinquenta) habitantes por hectare e malha viária implantada e que tenha, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana implantados: a) drenagem de águas pluviais urbanas; b) esgotamento sanitário; c) abastecimento de água potável; d) distribuição de energia elétrica; ou e) limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos.

Em se tratando de área urbana, em princípio, devem ser levadas em consideração tanto o Plano Diretor e as Leis de Uso de Solo, como também a Lei ambiental. Mas, quando se tratar de área urbana já consolidada, mesmo assim há de ser aplicada a norma jurídica ambiental, cujo cumprimento possa implicar retrocesso social?

No AREsp 1299618, o STJ decidiu que não se aplicavam as restrições ambientais de área de preservação permanente em área urbana consolidada. Já se decidiu também que, havendo previsão de uso e de ocupação por lei local, descaberia aplicar pura e simplesmente regramento previsto no Código Florestal (STJ, AgRg no REsp 13672170). No mesmo sentido, se a lei local permite o uso e a ocupação do solo urbano, tendo havido o prévio licenciamento, não há como conceder medida judicial para paralisar o exercício do direito de construir fundado em alegado descumprimento à norma do Código Florestal (STJ, EDcl nos EDcl no AgRg na MC 8577).

Uma controvérsia complexa que foi recentemente decidida pelo STJ foi a de se saber a delimitação da extensão da faixa não edificável a partir das margens de cursos d´água naturais. Isso porque, sobre a mesma matéria, há duas normas gerais em matéria de direito urbanístico e de direito ambiental. O Código Florestal, em seu art. 4º, inc. I, estabelece que a extensão não edificável nas áreas de preservação permanente de qualquer curso d´água, perene ou intermitente, deve respeitar a largura que varia de 30 a 500 metros. Por sua vez, a Lei de Loteamentos, em seu art. 4º, inc. III, estabelece o distanciamento de 15 metros.

Afastando-se da noção de área urbana consolidada e da regra constitucional de que o uso e a ocupação do solo urbano devem ser disciplinados pelo Plano Diretor, o STJ decidiu que, na vigência do novo Código Florestal (Lei n. 12.651/2012), a extensão não edificável nas Áreas de Preservação Permanente de qualquer curso d’água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo seu art. 4º, caput, inciso I (de 30 a 500 metros de recuo), a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade, e não o previsto na Lei de Loteamento (REsp 1.770.760/SC,  julgado em 28/04/2021, Tema 1010).

A rigor, o referido precedente colide, frontal e diretamente, com a regra prevista no art. 225, parágrafo primeiro, inc. III, da Constituição Federal, na medida em que são permitidas a alteração e até mesmo a supressão de espaços territoriais especialmente protegidos, desde que por meio de lei formal, tal como já decidido pelo STF no RE 519778.

Além disso, o mencionado precedente não efetuou a ponderação a par da noção de área urbana consolidada a atrair flexibilização na aplicação de regras jurídicas de natureza ambiental, quando existam outros valores constitucionais em jogo, tais como moradia e exercício de atividade econômica. Isso porque, tratando-se de área urbana consolidada, a eventual determinação judicial de demolição pode não se revestir de sucesso prático, eis que, além da proteção ao meio ambiente, há outros valores constitucionais em jogo que podem apontar para a permissão de utilização de áreas urbanas já antropizadas, de sorte que a desconsideração da situação consolidada representa postura não condizente com os postulados constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade.

Portanto, está-se diante de um precedente jurisprudencial que se limitou a aplicar a regra jurídica prevista no Código Florestal, sem levar em consideração os outros valores constitucionais, tais como a possibilidade de a lei local vir a flexibilizar a proteção de espaços territoriais especialmente protegidos, e a competência legislativa dos municípios de prever a disciplina do uso e da ocupação do solo urbano.

Mestre e Doutor pela PUC-SP. Professor da graduação e do Mestrado na UFRN. Advogado.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Tem que fazer a defesa. O MP vai dizer isso porque cabe a ele defender o Meio Ambiente. Nada impede que se faça uma perícia adequada ou que o Município interprete de forma diferente (a seu favor).

  2. O Mpu tem podres para definir se determinada area e consolidada?
    Tenho uma pequena edificaçao de frente para principal Av do bairro Santa Monica em Florianópolis. Av madre benvenúta. Segundo aquele ministério está situado em zona não consolidada. Como provar ao contrário.
    Agradeço o excelente trabalho apresentado, razão pela qual me encorajei a expor questão pessoal. Obrigado

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