quinta-feira,28 março 2024
ArtigosSTF inicia o sepultamento da garantia da coisa julgada

STF inicia o sepultamento da garantia da coisa julgada

Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia aposentado, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia e Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal.

Em mais uma ingrata surpresa, o Supremo Tribunal Federal agora forma maioria para permitir reversão de decisões judiciais definitivas em matéria tributária.
Em resumo o STF afirma que mesmo quando uma pessoa física ou jurídica obtiver uma decisão favorável em questão tributária, a qual venha a transitar em julgado, inclusive sem mais possibilidade de ação rescisória, será possível sua reforma desde que o STF venha a alterar sua jurisprudência ou julgar diversamente o caso em repercussão geral, podendo o Fisco retomar a cobrança normalmente.
Expondo um exemplo: A empresa “X” obtém, de acordo com a legislação e até mesmo a jurisprudência corrente do STF, ganho de causa para o não pagamento de um determinado tributo ou o pagamento em alíquota mais baixa do que a que o Fisco pretendia. Tal decisão judicial transita em julgado e passa o tempo de 2 anos em que se poderia, em tese, manejar Ação Rescisória. Note-se que mesmo a Ação Rescisória, é apenas uma ação e pode ser impetrada e julgada improcedente. Mas, agora o STF afirma que com uma mudança jurisprudencial da Corte sobre o tema daquele processo findo, o Fisco poderá retomar a cobrança dos tributos automaticamente, sem necessidade de revisão judicial. A decisão do STF com repercussão geral passa a equivaler a uma nova lei tributária que legitima a retomada da cobrança por aplicação administrativa do decisório da Corte Suprema.
A chamada “coisa julgada material”, que, segundo as regras processuais e constitucionais, é (seria) intocável, já que o mesmo caso não poderia voltar a ser discutido em outras ações, recebe agora um duro golpe, na verdade, ao menos no âmbito tributário, um golpe mortal. O julgamento, inclusive de outro caso similar pelo STF sobre o mesmo tema, dando sua posição inicial a respeito ou mesmo alterando seu próprio posicionamento antecedente, poderá fazer com que o julgamento transitado em julgado não tenha mais validade alguma.
Os ministros chegaram ao cúmulo de discutir se a reforma de posição ou a decisão inicial do STF sobre o tema teria efeitos retroativos sobre tributos não pagos com base na decisão judicial definitiva que até então regia a questão. Note-se que uma decisão no sentido da retroatividade significaria levar o país à bancarrota de uma hora para a outra, já que empresas teriam que pagar tributos atrasados, muitas vezes por anos e anos, os quais não eram até então tidos como devidos. Sabe-se lá por que espécie de milagre, os Ministros formaram consenso de que não poderia haver retroatividade, até porque admitem que a nova posição equivaleria a uma nova legislação tributária, a qual tem de obedecer aos critérios da legalidade, anterioridade e anualidade. Ainda assim, noticia-se que o Ministro Gilmar Mendes, embora admitindo a irretroatividade, propõe que a cobrança possa ser imediata, sem necessidade de cumprimento do limite da anualidade.
Ademais, havia nos votos uma “modulação de efeitos” para que esse sistema fosse aplicado somente para casos que venham a iniciar discussão em repercussão geral no STF a partir desse julgamento. Entretanto, os Ministros teriam suprimido de seus votos a “modulação de efeitos”, de modo que temas que foram decididos no STF acerca de tributos com repercussão geral, mesmo antes dessa decisão em comento, podem exercer efeitos a partir da data da decisão da Corte. Há casos que poderão então retroagir a 2007 quando tributos considerados inconstitucionais até então, passaram a ser considerados como constitucionais.
Note-se que os próprios Ministros, sem qualquer espécie de constrangimento, admitem que essa espécie de sistema consista na criação pretoriana de legislação tributária, o que joga por terra a Separação dos Poderes e, pior que isso, atribui a um desses poderes a capacidade de autolegitimação por decisões próprias e não em decorrência da lei e da Constituição. Um tributo somente pode ser criado por lei, jamais por um Tribunal, seja ele de que graduação for. Mas é, na prática, o que está acontecendo.
A coisa julgada, garantida por leis processuais e pela Constituição Federal, é simplesmente desprezada, gerando com isso uma absurda insegurança jurídica, capaz de afastar do Brasil investidores estrangeiros e desestimular investimentos internos, empreendedorismo de qualquer espécie. Uma empresa não poderá mais fazer planejamentos razoavelmente seguros acerca de seus custos tributários, ainda que conte com uma decisão judicial transitada em julgado em seu favor.
Na verdade a expressão “coisa julgada” passa a ser algo totalmente indeterminado. Apenas um signo, enquanto seu significado e, pior, o próprio referente no mundo real, se esvanecem. “Coisa Julgada” passa a ser apenas um signo, algo meramente simbólico em um discurso de agentes arbitrários.
Trata-se de mais uma manifestação nefasta e, em última análise, irresponsável, da chamada “Juristocracia”, ou seja:
uma forma de degradação da democracia constitucional em que a autonomia e a separação de Poderes é golpeada por um ativismo judicial que atinge a esfera dos demais poderes sem respaldo constitucional. Além da usurpação em relação aos demais poderes, é traço distintivo da juristocracia a crescente invasão do Poder Judiciário em face da esfera de liberdade do cidadão. Há uma espécie de colonização do mundo da vida. Ou seja, há uma substituição do agir livre do cidadão pela atuação do Estado, por meio de decisões judiciais.

Observe-se que o cidadão não está obrigado, num Estado de Direito Democrático, a fazer ou não fazer nada a não ser em virtude de lei. Mas com a posição adotada pelo STF, o cidadão discute a lei no judiciário, o judiciário lhe garante o direito de liberdade de não pagar o tributo, afirmando que aquela lei não o obriga. Essa decisão judicial transita em julgado, faz coisa julgada material, mas, mesmo assim, esse mesmo cidadão pode vir a ser coagido a pagar um dado tributo por decisão posterior de um tribunal que, na prática, reedita lei com força retroativa e desfaz a coisa julgada sem a mínima legitimidade legal, constitucional ou política.
A decisão judicial do STF passa a exercer efeitos transcendentes do caso julgado para outros milhares de processos similares Brasil afora. Já não vale mais a assertiva de que a decisão judicial é a “lei do caso concreto” (aqui a palavra “lei” é empregada num sentido metafórico). A decisão judicial do STF passa a contar com característica inerente às leis (em sentido técnico), ou seja, a generalidade. Já não é possível distinguir corretamente sequer categorias (lei x decisão judicial), o que ocasiona um dano não somente jurídico, mas até mesmo intelectual. Pensar o Direito se torna algo ainda mais difícil do que normalmente já o é.
E dada a desfaçatez com que se tem violado a separação de poderes, a legalidade e a constitucionalidade, exatamente no seio do suposto órgão que deveria ser o “guardião da Constituição” e acaba se erigindo em seu “proprietário”, com direitos de uso, gozo e disposição, não é de espantar que mais dia menos dia, venha a Corte Suprema a expandir esse desprezo da coisa julgada material para outras áreas civis, previdenciárias etc. Nem mesmo é possível afirmar com segurança (essa palavra que já não nos é praticamente acessível) que não se possa cogitar de desconsiderar a coisa julgada material até mesmo na seara penal e em prejuízo do réu (o que deveria ser inconcebível, mas já não se sabe). Este seria o absurdo dos absurdos, mas, como se diz, “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”, ou melhor, “a jurisprudência transfigurada em lei e norma constitucional”.
Mas como é possível imaginar que se pode chegar a essas alturas do arbítrio judicial, do desprezo do Direito em prol do exercício de uma pura vontade de poder? Isso é possível porque aqueles que abusam podem fazer o que querem, eles simplesmente podem, eles se autolegitimam e ninguém se opõe de forma efetiva, não há freios para os seus abusos. Vale a lição de Rummel:
Por favor, diga, meu irmão,
Por que os ditadores matam
e fazem guerra?
É pela glória; por coisas,
por crenças, por ódio,
por poder?
Sim, mas há mais,
porque eles podem.

Estamos cientes de que nossa manifestação nada mais é do que uma gota de denúncia e inconformismo num oceano indelével de arbítrio que não se abala em nada. Valemo-nos, entretanto, da lição contida na oração do Cardeal François – Xavier Nguyen Van Thuan:
Se espero o momento oportuno para fazer alguma coisa verdadeiramente grande, quantas vezes na vida se apresentarão semelhantes ocasiões?
Não, agarro as ocasiões que se apresentam a cada dia, para realizar ações ordinárias de modo extraordinário.
Certamente este protesto não chega sequer a ser uma “ação ordinária” realizada de “modo extraordinário”, é apenas uma ação, uma manifestação ordinária ordinariamente realizada, um contributo mínimo de quem quer ao menos ter a paz de consciência de que quando coisas assim aconteciam não permaneceu calado por qualquer motivo ou interesse.

REFERÊNCIAS
ABBOUD, Georges. Submissão e Juristocracia. Revista do Processo. Volume 258. ago., p. 519 – 527, 2016.

BACELO, Joice. Maioria no STF permite reversão de decisões judiciais definitivas. Disponível em https://www.defesanet.com.br/ghstf/noticia/45784/Maioria-no-STF-permite-reversao-de-decisoes-judiciais-definitivas/ , acesso em 28.11.2022.

RUMMEL, Rudolf Joseph. Freedom, Democracy, Peace; Power, Democide and War. Universidade do Havaí. Disponível em http://www.hawaii.edu/powerkills/ , acesso em 13.05.2022.

VAN THUAN, François – Xavier Nguyen. Cinco Pães e Dois Peixes. Trad. João Batista Boaventura Leite. Aparecida: Santuário, 2000.

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

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