quinta-feira,28 março 2024
ColunaDiálogos ConstitucionaisBolsonaro, Igreja e Acessibilidade: Inconstitucional Decreto 10.014

Bolsonaro, Igreja e Acessibilidade: Inconstitucional Decreto 10.014

A Igreja Católica Apostólica Romana foi a igreja oficial do Brasil até 1891 quando foi expedido o Decreto 119-A do Governo Provisório o qual separou a igreja do Estado, senão vejamos: “Art. 1º É prohibido á autoridade federal, assim como á dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou actos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e crear differenças entre os habitantes do paiz, ou nos serviços sustentados á custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas”.

Passado um século, a Constituição Federal erigiu duas grandes vertentes: A primeira de que o Estado é Laico e a segunda de que vigora o princípio da legalidade, segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei.

Não vou mencionar a dignidade da pessoa humana no sentido de que a pessoa não pode ser coisificada ou instrumentalizada, devendo-se assegurar ao máximo a sua autonomia, porque acredito que tal assunto já tido como premissa básica para o desenvolvimento de qualquer tema de índole constitucional.

Vamos nos ater ao que é específico ao tema de hoje. A acessibilidade das pessoas com deficiência.

O Brasil publicou a Lei n. 10.048 de 2000, que cuida da obrigação de estabelecimentos públicos e privados propiciarem ampla acessibilidade às pessoas obesas, idosas, lactantes, gestantes e com deficiência.

Mas essa lei é antiga. No ano de 2009 o Brasil assinou o Protocolo Facultativo da Convenção de Nova York que cuida dos direitos da pessoa com deficiência, inclusive, abolindo a designação anterior de pessoa portadora de deficiência.

Entre os princípios gerais da Convenção estão: A plena e efetiva participação e inclusão na sociedade e a igualdade de oportunidades. Mais incisivo, ainda, é a obrigação que os Estados que a ratificaram assumiram: adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção.

Na direção de avanço, além de ratificar a Convenção, o Brasil também promulgou o denominado Estatuto da Pessoa com Deficiência, a Lei n. 13.146 de 2015. Então, além da obrigação já prevista na Convenção, o Estado Brasileiro também assumiu compromisso legal de: “Art. 3º Para fins de aplicação desta Lei, consideram-se: I – acessibilidade: possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida”.

Assim, as pessoas com deficiência têm o direito fundamental de serem incluídos, e incluir não é apenas conferir estrutura de acessibilidade. É preciso pensar em como tornar o meio ambiente das pessoas com deficiência favorável ao exercício de todas suas faculdades.

É preciso que as pessoas com deficiência sejam estimuladas a comungar o convívio social, que possam exercer seus direitos com a máxima amplitude, cabendo ao Estado, detentor do monopólio da lei, determinar as medidas necessárias.

Porém, nesta semana começamos a dar passos para trás.

No dia 6 de setembro de 2019 o Presidente Jair Bolsonaro fez publicar o Decreto n. 10.014, inconstitucional em absoluto, primeiro porque extrapola a previsão legal, logo, se trata de decreto autônomo que se predispõe a mitigar direito social das pessoas deficiência, e, materialmente incompatível com a Constituição porque implica retrocesso quanto ao direito fundamental à inclusão social, ferindo cláusula pétrea.

O decreto livra as igrejas de se adaptarem às pessoas com deficiência,  obesos, idosos, gestantes e lactantes, afirmando que não precisam adaptar suas estruturas, senão vejamos: “O disposto no caput não se aplica às áreas destinadas ao altar e ao batistério das edificações de uso coletivo utilizadas como templos de qualquer culto”.

Excluir as igrejas da adaptação é ato de ingerência da Presidência nos atos civis religiosos que, como se sabe, deveriam ser regulamentados por lei, já que não se tratam de atos interna corporis do sacramento religioso.

A Convenção e o Estatuto obrigam que toda a sociedade civil e as repartições públicas ou de uso coletivo se adaptem para receber pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida, de modo que desobrigar a igreja (sentido genérico como qualquer templo e qualquer profissão de fé) implica  em mitigar o direito destas pessoas exercerem o  culto religioso.

Por que a pessoa portadora de deficiência não pode se achegar ao altar? É reservado para determinado tipo de pessoa? Qual o fator de discriminação utilizado? Qual o problema de no altar haver rampa de acesso? Qual o problema de o batistério estar na altura do solo onde o cadeirante – por exemplo – possa batizar o filho?

É preciso enxergar que o direito ao culto religioso inclui o direito de não professar e o direito de professar fé.  Se a pessoa pretende professar sua fé não pode ter sua acessibilidade como impedimento.

Em resumo o decreto revela grave retrocesso social, implica no movimento retrógrado de separar em vez de incluir pessoas. Curiosamente, lojas de departamento, exemplificando, são obrigadas a se adaptarem para venderem produtos; na igreja onde se busca algo gratuito, que é a fé, a pessoa é impedida.

 

 

 

 

 

Cristiano Quinaia

Mestre em Direito - Sistema Constitucional de Garantia de Direitos (Centro Universitário de Bauru). Especialista LLM em Direito Civil e Processual Civil. Advogado.

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