quinta-feira,28 março 2024
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Reflexos do Covid-19 à trabalhadora em regime de teletrabalho

Coordenação: Ricardo Calcini.

O presente artigo não tem a pretensão de reivindicar direitos às mulheres neste período de pandemia do vírus COVID-19. E mais, essa leitura não visa desmerecer muitos homens de boa vontade que também acumulam funções em tempos de calamidade pública. Ao contrário, a intenção é a valorização dessas mulheres em comento. A finalidade é clarear algumas informações a muitas heroínas trabalhadoras, para que elas compreendam o motivo do aumento de seu cansaço mental e físico em face do teletrabalho decorrente do COVID-19. A leitura é um convite aos homens para que se sensibilizem com certos estigmas das mulheres e percebam o quanto são privilegiados por tê-las em seus lares.

A ideia desse artigo adveio depois de muitas conversas, não com apenas uma, mas várias mulheres inspiradoras na área jurídica, todas casadas e com filhos, que confessaram suas exaustões em regime de teletrabalho.

Estudos comprovam que as mulheres, em comparação aos homens, passam, pelo menos, o dobro do tempo em trabalhos domésticos não remunerados como a tarefa de cuidadora ou em tarefas domésticas. Segundo dados da Agência Brasil, as mulheres brasileiras exercem, em média, 7,5 horas a mais de trabalho que os homens, em razão da dupla jornada.

O COVID- 19 aproximou essa realidade àquelas mulheres que não exerciam, com tanta intensidade, essa dupla jornada. E aumentou a jornada daquelas que já exerciam a dupla jornada.

Isto porque, a maioria das mulheres que tinham uma empregada doméstica ou faxineira, reduziu, suspendeu ou dispensou esses serviços, os quais passaram a ser executados pela mulher trabalhadora em regime de teletrabalho. Isto, claro, aumenta sua jornada.

Da mesma maneira ocorre com aquelas que têm filho(a) criança e acompanham suas tarefas e educação com mais intensidade do que o normal, por meio do ensino à distância das escolas (aquelas que fornecem serviços remotos), ou se esforçam para garantir que seus filhos mantenham aprendizado (quando não há acesso à educação remota). Isso sem contar uma série de hipóteses que ocorrem na realidade de cada mulher, em sua classe social e peculiaridades no lar.

Somado a tudo isso, há o teletrabalho que já foi discorrido no artigo “O Direito a desconexão do trabalho na Era Tecnológica” (de 30/01/2020), que provoca uma repercussão importante na vida da trabalhadora, o efeito panóptico:

[…] a falsa liberdade ao trabalhador, pela hipótese de junção da ausência do controle de jornada com a exigência do cumprimento de metas, caracterizando o que Michael Focault denominou de Panóptico – expressão também concebida pelo filósofo Jeremy Bentham, no século XVIII, para o modelo arquitetônico de prisão cuja estrutura permite vigilância e monitoramento de um prisioneiro. A ideia do panoptismo de que a pessoa é submetida “a um estado de vigilância constante, alijando o resguardo da saúde física e mental em vista do alcance de meta imposta, gera extremo desgaste mental.”.

A soma dos cuidados da casa, da educação dos filhos (e esposo, caso o tenha) e ao efeito panóptico provocado pelo regime de teletrabalho, fora todas as preocupações atinentes ao vírus COVID-19 – como o possível desemprego, medo de ser contaminada com o vírus quando precisa sair por algum motivo básico e urgente – todos, simultaneamente, geram um desgaste físico e emocional muito grande.

Ressalta-se que, aparentemente, a situação da mulher em regime de teletrabalho apresenta um quadro mais agravante se comparado aquela que, por realizar atividade essencial, trabalha fora de casa. Explica-se: a teletrabalhadora não se desconecta da dupla (ou tripla) jornada, pois, quando não está exercendo seu ofício do teletrabalho, está sendo requisitada pelos seus e cumprindo qualquer outra atividade no lar. Para tais mulheres só há intervalo para a hora interjornada (de um dia para o outro).

Alguém pode indagar o porquê de enfatizar a mulher e não muitos homens que despendem esses esforços e exercem a cumplicidade com suas companheiras. A resposta é que essa situação, infelizmente, é a exceção à regra de uma cultura em que se destaca a mulher no papel central de chefe dos afazeres domésticos.

Essa cultura, engendrada na sociedade, é internacionalmente reconhecida, contudo, há uma linha muito tênue e difícil de sua percepção pela sociedade. Isto é claramente demonstrado se analisarmos os casos da Suprema Corte Americana, que oito anos depois do julgamento Brown v. Board of Education, sobre a eliminação a segregação racial nos colégios da Flórida (1953), houve a decisão do case Hoyt v. Florida (1961), em que a Suprema Corte reconheceu constitucional a lei da Florida que dava tratamento discriminatório em face da mulher, excluindo sua participação na composição dos júris: “mulher ainda é considerada o centro da vida familiar […] a menos que ela mesma determine que tal serviço é consistente com suas próprias responsabilidades especiais”.

No Brasil, nosso Código Civil de 1916 (revogado somente em 2002) previa a incapacidade civil plena da mulher para determinados atos da vida civil e, para poder trabalhar, era preciso a autorização do esposo, sendo isso modificado, somente em 1962, com o Estatuto da mulher Casada.

Essas condutas históricas ainda se reverberam em nossa cultura e, inevitavelmente, a mulher trabalhadora empenha-se, em regra, de modo mais intenso no lar, se comparada à figura do homem ou seu companheiro.

Por tudo isso, conclui-se que, dentre muitos reflexos da pandemia pelo COVID-19 em relação à mulher em regime de teletrabalho, temos que o primeiro deles é retardar o cumprimento da meta estabelecida pela agenda 2030 da ONU, cujo objetivo de cincos anos é alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas mulheres e meninas. O segundo reflexo, e extremamente importante, consiste na profunda exaustão física e mental da trabalhadora em regime de teletrabalho. Esse último reflexo é um grande alerta para a necessidade da preservação da saúde da mulher, por meio de buscas obrigatórias de intervalos para cuidados de sua saúde.

Este momento de calamidade pública vem sendo um período difícil e delicado para a saúde de todos, mas esse caso específico requer atenção. Por isso, enquanto essa situação não passar é essencial a busca do equilíbrio da saúde (em todas as suas esferas) e, nos momentos em que a saúde mental degringolar, que cada uma das mulheres, em atitude de sororidade, atenham-se aos ensinamentos de uma mulher e mãe que, em um sonho, foi inspiração a clássica canção de Paul Maccartney: “Let it be!”. Deixe estar, pois tudo isso vai passar!


BIBLIOGRAFIA

AGÊNCIA BRASIL. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-03/mulheres-trabalham-75-horas-mais-que-homens-devido-dupla-jornada>. Acesso em: 26 out. 2018.

BANCO MUNDIAL. Gender at work: a companion to the world development reporto on Jobs. Disponível em: <http://www.worldbank.org/content/dam/Worldbank/Event/Gender/GenderAtWork_web2.pdf>. Acesso em: 29 out. 2018.

BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 4. ed. ver. e ampl. São Paulo: LTr, 2008.

BEGA, Mariana Ferrucci. Direito a Desconexão do trabalho na era tecnológica. Disponível em< https://www.megajuridico.com/o-direito-a-desconexao-do-trabalho-na-era-tecnologica/>. Acesso em 21 abr. 2020.

UCHÔA, Marcelo Ribeiro. Mulher e Mercado de Trabalho no Brasil – Um Estudo sobre Igualdade – Baseado no Modelo Normativo Espanhol. 1.ed. . São Paulo: LTr, 2016.

Advogada, pós-graduada em direito e processo do trabalho com formação para Magistério Superior. Pós-graduanda em Processos Brasileiros pela PUC-MG. Mestranda em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas no UDF.

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