quinta-feira,28 março 2024
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Reflexões sobre o natal das crianças, dostoiévski e o futuro do trabalho

Coordenação: Abel Lopes.

O ano de 2020 está chegando ao fim. Sopesando o correr do ano, este foi de muitas agruras, cansaços físico e mental, perda de entes queridos, amigos, distanciamento físico, lives, abraços tolhidos, desemprego. Por outro lado, foi um período de ressignificar a vida, valorizar gestos simples como respirar, estar mais presente no convívio familiar e uma oportunidade ímpar de exercitar a empatia e a esperança.

Escrever artigo jurídico para o dia 24 de dezembro de um ano tão complexo exige solidariedade com o leitor que está esgotado de atualizações legislativas e jurisprudenciais, as quais aconteceram de forma frenética durante os quase 365 dias.

Então, como hoje é véspera de Natal, momento em que se celebra o nascimento do Jesus Menino, o assunto inquietante desta data são as crianças. Afinal, a pureza, as indagações e todo o contexto do ser criança traz mais luz para dias nebulosos.

Além disso, neste ano celebrou-se 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, norma essa que inclui e traz dignidade às crianças, em especial as humildes, modificando as antigas desigualdades insculpidas na legislação anterior (Código de Menores), que criou o estigma da palavra ‘menores’ como pessoas delinquentes, pelo simples fato de viverem marginalizadas da sociedade ou serem da‘subclasse’, como denominada por Bauman.

E o que isso tem relação com o Direito do Trabalho?

Partindo da premissa que as crianças serão as futuras trabalhadoras do Brasil, na fase adulta (pelo menos é assim que deve ser), transcrevemos o trecho dos anseios de um dos maiores juristas da área trabalhista, Evaristo de Moraes Filho, para os trabalhadores:

“Fazer do trabalhador um cidadão que vota e que se elege, que paga impostos e recebe benefícios, que discute e opina, que se torna afinal de contas célula viva da nação – e não um simples número produtivo, eis uns dos fins mais dramáticos do Direito do Trabalho, que lhe permite dar um largo passo na solução da inquietante questão social, obscurecida, às vezes, mas sempre atuante e nunca ausente dos dias que vivemos”.

As palavras do saudoso ícone do Direito do Trabalho provocam a indagação: nossas crianças serão esses trabalhadores que poderão estar inseridos como ‘célula viva da nação’, exercendo trabalho decente, ou um ‘simples número produtivo’ arraigado de trabalho precário?

Por isso, a garantia de uma educação de qualidade pode mudar um futuro.

A criança vítima do trabalho infantil tem a autoestima afetada, dentre muitos outros traumas psicológico que prejudicam a formação da pessoa em desenvolvimento. Quem muito bem discorre sobre o comportamento da criança, manifestando medo e não se sentir digna de ser bem tratada, é o escritor e filósofo russo, Dostoiévski, com a personagem Helena, na obra Humilhados e Ofendidos.

Pela narrativa, a menina, pobre, sofreu tratamento severo e maus tratos no período em que foi submetida ao trabalho infantil. O autor, que costumava retratar em suas obras as suas próprias experiências cotidianas, descreve os sentimentos da garota que não se sentia digna de sequer ter um vestido comum e limpo.

Outra ‘Helena’, de nove anos de idade, tem uma vida semelhante àquela descrita por Dostoiévski, pois ‘era obrigada a limpar a casa, cozinhar e cuidar dos irmãos mais novos, sem direito à comida ou cama para dormir. Frequentemente tinha os pés e mãos amarrados para que dormisse em pé. Em certa ocasião, a mãe cortou sua língua e depois a costurou com linha e agulha, forçando a criança a limpar o próprio sangue. A menina ainda foi proibida de frequentar a escola para que ninguém visse as marcas da tortura’. Mas essa é uma personagem real e brasileira (história relatada em: A real face do trabalho infantil no Brasil).

A preocupação dessas histórias aumentarem é grande.
A necessidade de isolamento social para se evitar contágio, somado aos fechamentos das escolas, tornaram-se barreiras para a educação a muitas crianças que não conseguem acessar o ensino a distância, correspondendo a um terço (463 milhões) das crianças em todo o mundo, segundo a UNICEF.

O fechamento das portas para a educação e a crise econômica abrem oportunidades para o trabalho infantil. Por isso, a Assembleia Geral da ONU adotou o ano vindouro, de 2021, como Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil, sob a liderança da Organização Internacional do Trabalho.

Conforme Organización de Estados Iberoamericanos para la Educación, la Ciencia y la Cultura (OEI), o aumento do abandono escolar e encerramento dos estabelecimentos de ensino dificultará o incentivo dos jovens a regressarem à escola e lá permanecerem quando houver a reabertura.

No Brasil, será um ano desafiador nesta temática, haja vista que neste mês, o IBGE divulgou que em 2019 havia 1,8 milhão de crianças em situação de trabalho infantil, sendo 66,1% pretos ou pardos.

Os efeitos da pandemia, especialmente no tocante à educação e não acesso a meios tecnológicos, certamente é um propulsor para o aumento do trabalho precoce e diminuição das chances do país cumprir a meta 8.7 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU, que é erradicar o trabalho infantil até 2025.

Outro fator que prejudicará o cumprimento dessa meta é a edição do Decreto n. 10.574, de 14 de dezembro de 2020, alterando a composição do Conselho Nacional do Trabalho, instituindo uma comissão Tripartite Paritária e Permanente, composta por seis representantes do Poder Executivo, seis representantes dos empregadores e seis representantes dos trabalhadores, excluindo o Ministério Público do Trabalho, a Organização Internacional do Trabalho e a Sociedade Civil da Comissão Contra o Trabalho Infantil.

Os prejuízos à meta consubstanciam-se na retirada de instituições vanguardistas no combate ao trabalho infantil e se manter, na comissão, representantes cujos anseios nem sempre correspondem aos objetivos da Agenda 2030 da ONU, normas internacionais e nacionais. É o que se pode analisar do julgamento da ADI 2096 (decisão 13 de outubro de 2020), com a relatoria do Ministro Celso de Mello, em que foi julgada improcedente a ação arguindo a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 20/98, que alterou o artigo 7º, inciso XXXIII, da Constituição Federal, proibindo qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. O que chama a atenção nesta referida ADI, é quem realizou a propositura da ação: a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI).

Mas ainda há esperança em 2021. Será realmente um ano intenso ao combate do trabalho infantil e garantia de um futuro trabalho decente as crianças, quando se tornarem adultas. Há propostas legislativas buscando soluções como doação de tablets para crianças terem acesso à educação, fornecimento de computadores estudantes de escola pública e o mais importante, tem você, leitor. Sim, de algum modo cada um de nós pode fazer algo para o futuro do trabalho do Brasil.

O ECA, em seu art. 260 estabelece que os contribuintes poderão efetuar doações aos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente nacional, distrital, estaduais ou municipais, devidamente comprovadas, sendo essas integralmente deduzidas do imposto de renda, obedecidos os limites previstos no dispositivo, inclusive essa possibilidade está divulgada recentemente no Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região.

Assim, fazer algo pelo futuro das crianças e desenvolvimento do país neste dia, é uma forma de salvar uma vida, como os reis magos fizeram ao avisar que o Rei Erodes mandou exterminar todas as crianças e a vida de Jesus foi poupada, assim, podemos levar muito mais que ouro, incenso e mirra a jovens vida, podemos garantir a dignidade por toda uma vida.
Para essa‘noite feliz’, de um ano avassalador, convida-se a refletir sobre o que fazer pelo futuro das crianças, do trabalho e do Brasil, com a fala de um dos diálogos da obra Humilhados e Ofendidos, de Dostoievski:

“- O amor sozinho de nada vale; o amor se demonstra com atos, e tu pensas deste modo: “Ainda que tenhas de sofrer ao meu lado, hás de viver comigo”. Repara, todavia, que isso não é humano, nem é nobre. Falar do amor em geral, interessar-se pelas questões que afetam a toda a humanidade, e ao mesmo tempo cometer uma ação contra o amor e não o perceber… é inconcebível!”

Feliz Natal e vamos juntos fazer do ano de 2021 o melhor para o futuro das crianças e do Brasil.

 


Referências

A real face do trabalho infantil no Brasil. Disponível em:< https://www.dw.com/pt-br/a-real-face-do-trabalho-infantil-no-brasil/a-49569328#:~:text=Segundo%20dados%20de%202015%2C%202,%2C%20segundo%20a%20Pnad%202015).> Acesso em: 21 dez. 2020.

ANAMAT. ONU propõe a erradicação do trabalho infantil até 2025 em Conferência. Disponível em:< https://www.anamt.org.br/portal/2017/11/27/onu-propoe-a-erradicacao-do-trabalho-infantil-ate-2025/>. Acesso em: 21 dez. 2020.

BAUMAN, Zygmunt. Danos Colaterais: desigualdades sociais numa Era Global. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. p.12.

Decreto n.10.574. Disponível em:< https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.574-de-14-de-dezembro-de-2020-294065238>. Acesso em: 21 dez. 2020.

Brasil de Fato. Governo retira MPT, OIT e sociedade civil de comissão contra trabalho infantil. Disponível em:< https://www.brasildefato.com.br/2020/12/19/governo-retira-mpt-oit-e-sociedade-civil-de-comissao-contra-trabalho-infantil>. Acesso em: 21 dez. 2020.

CAMARA. Proposta prevê doação de tablet a estudante de baixa renda durante a pandemia. Disponível em:< https://www.camara.leg.br/noticias/683652-proposta-preve-doacao-de-tablet-a-estudante-de-baixa-renda-durante-a-pandemia/>. Acesso em 21 dez. 2020.

CAMARA. Proposta garante computador para estudante de escola pública. Disponível em:< https://www.camara.leg.br/noticias/677054-proposta-garante-computador-para-estudante-de-escola-publica/>. Acesso em: 21 dez. 2020.

DOSTOIÉVSKI, Feodor Mikhaióvitch. Humilhados e Ofendidos. p. 251-252.

MORAES FILHO. Direito do Trabalho e Mudança Social. Rio de Janeiro. MTIC, 1958. p. 20.

IBGE. Em 2019 havia 1,8 milhão de crianças em situação de trabalho infantil no pais com queda de 16,8% frente a 2016. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/29737-em-2019-havia-1-8-milhao-de-criancas-em-situacao-de-trabalho-infantil-no-pais-com-queda-de-16-8-frente-a-2016

IPEA. Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU. Disponível em:< https://www.ipea.gov.br/ods/ods8.html>. Acesso em: 21 dez. 2020.
OEI. Disponível em:< https://oei.org.br/arquivos/informe-covid-19d.pdf> Acesso em: 21 dez. 2020.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Disponível em:https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_714085/lang–pt/index.htm. Acesso em: 20 dez. 2020.

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 15 REGIÃO. Disponível em:< https://trt15.jus.br/noticia/2020/jeia-de-bauru-ensina-como-destinar-ir-para-rede-de-protecao-crianca-e-ao-idoso?fbclid=IwAR2UXSXPp9RyWpvTTWZjboiV3_RH2U57n2nK1jMdhajzN_PKcRytC5fePeQ>. Acesso em: 20 dez. 2020.

UNICEF. Covid-19: Pelo menos um terço das crianças em idade escolar não consegue acessar o ensino a distância durante o fechamento das escolas, diz novo relatório do UNICEF. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/covid-19-pelo-menos-um-terco-das-criancas-em-idade-escolar-nao-consegue-acessar-ensino-a-distancia>. Acesso em 20 dez. 2020.

Advogada, pós-graduada em direito e processo do trabalho com formação para Magistério Superior. Pós-graduanda em Processos Brasileiros pela PUC-MG. Mestranda em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas no UDF.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Quão belas sãos as suas reflexões e que, inexoravelmente, nos leva a repensar a condição da crianças e dos adolescentes no mundo do trabalho.

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