quinta-feira,28 março 2024
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Quais as premissas adequadas para os Tribunais de Contas responsabilizarem a autoridade máxima com base na culpa in vigilando?

Quem convive na prática com as fiscalizações dos Tribunais de Contas da União e dos entes subnacionais sabe quanto é comum que qualquer agente público, pelo simples fato de ser a autoridade máxima, o dirigente maior, o gestor supremo ou a pessoa em posição de liderança em órgãos e entidades da Administração Pública direta ou indireta, figure com frequência como interessado num processo de contas (v.g. tomada de contas e auditoria especial) sempre que for verificada a prática de atos irregulares, ilegítimos, ilegais e/ou antieconômicos por parte dos seus subalternos na cadeia hierarquizada de comando.

Portanto, para as equipes do corpo técnico dos Tribunais de Contas, suas fiscalizações partem da presunção de que todos ou quase todos os achados de auditoria encontrados num órgão ou entidade, têm por primazia o gestor máximo como responsável universal, de modo que haveria sempre culpa in vigilando em caso de violação de normas jurídicas ou princípios da Administração Pública por parte dos que se encontram sob o espectro do poder hierárquico daquele que ocupa a posição mais alta dentro da organização.

Entretanto, em que pese tal realidade, há de se pugnar que quando da apuração da responsabilização dos agentes públicos, se atente para uma utilização racional e não simplesmente indistinta da fixação do nexo causal pelo critério da culpa in vigilando, vez que, conforme bem destaca a doutrina[1], a simples responsabilização da autoridade superior como garantidor universal dos atos dos seus subordinados cria uma presunção de responsabilidade solidária objetiva que ignora a segregação de funções.

Forte nesta premissa é lícito afirmar que, para uma adequada responsabilização do agente público não ser acometida pelo vício do uso indistinto da culpa in vigilando, se faz necessário analisar, dentro da competência legal de cada agente público se, num ambiente de funções segregadas, sua conduta comissiva ou omissiva foi de fato influente para contribuir de forma efetiva para a prática do ato ilícito.

Na esteira da doutrina[2], perceba-se que os Tribunais de Contas (v.g. TCU e TCs do Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rondônia) afastam a possibilidade de responsabilização da autoridade máxima, do dirigente maior, do superior hierárquico ou de qualquer outro agente público que ocupe posição de liderança em órgãos ou entidades na Administração Pública simplesmente pelo fato de ostentar tal condição:

“Não é razoável exigir que a autoridade maior de órgão acompanhe os detalhes de cada processo de fiscalização de obra contratada, mormente quando entre as atribuições do cargo não se inclui o aprofundamento do exame de execução dos empreendimentos.” (TCU, Acórdão 2795/2011 – Plenário, Relator: Raimundo Carreiro)

“(…) a um Ordenador de Despesas, dirigente máximo de um Órgão (…) não é viável a abrangência de uma conduta de forma onipotente, eis que não caberia a este a tudo se encarregar, pois, estaria no cargo que ocupava envolvido com as atribuições de direção e chefia, realizando tarefas de índole administrativa que não conectam com as de natureza técnica de licitação sob análise. Destarte, destaco que a formação da vontade da Administração depende da atuação de vários agentes, integrantes de um ou diferentes órgãos estatais. Essa atuação é feita por meio do processo administrativo, que é um conjunto de atos jurídicos, inclusive atos particulares, necessários à manifestação da vontade estatal. Tais atos, via de regra, não são praticados por um único agente, mas por vários agentes que atuam numa cadeia, numa relação de interdependência. Portanto, uma decisão administrativa não depende, majoritariamente, da vontade única e exclusiva de um agente público. Pelo contrário, as inúmeras decisões da Administração Pública, ainda que tenham o ato final expedido por um único agente, dependem do trabalho conjunto de inúmeros agentes que atuam por meio de um processo administrativo. (…) Nessa esteira, a Administração Pública realiza sua função executiva por meio de atos jurídicos que recebem a denominação especial de atos administrativos, onde o ato principal é o que encerra a manifestação de vontade final da Administração e o ato intermediário ou preparatório é o que concorre para a formação de um ato principal e final. (…) Por isso, a professora Sirlene Arêdes, na obra Responsabilização do Agente Público, defende ‘que não se pode exigir do superior o extremo controle de todos os atos praticados por todos os agentes subordinados, até porque, se ele puder controlar detalhadamente, o que implica analisar detidamente todos os elementos dos atos expedidos pelos subalternos, então, não há necessidade de um número expressivo de agentes. O superior tem atribuições próprias e responde por elas. Da mesma forma, o inferior responde pelos atos praticados ou omitidos dentro de sua esfera de competência. O superior somente pode ser responsabilizado por atos que se inserem na competência do subalterno, quando ficar provado que o superior contribuiu para a prática do ato ilícito’.” (TCE/ES, Acórdão T.C. nº 17/2016, Processo TC nº 1728/2003, Órgão Julgador: Plenário)

“não se pode exigir que autoridade máxima de um Órgão seja responsabilizado (sic) por todos os atos administrativos praticados pelos seus subordinados e antecessores, ou mesmo pelos demais agentes públicos envolvidos nas ações, até em homenagem ao princípio da segregação de funções, sobretudo, quando existe atuação e responsabilidade de outros agentes” (TCE/RS, Processo: 000238-0200/17-8, Relator(a): Algir Lorenzon, segunda câmara, Julgado em 12/02/2019, Publicado em 18/03/2019, Boletim 386/2019)

“1. Todo aquele que utiliza, arrecada, guarda, gerencia ou administra dinheiros, bens e valores públicos possui o dever de prestar contas e sujeita-se à jurisdição do Tribunal, podendo figurar como parte nos processos de fiscalização para responder pelos atos que praticou, no limite de sua competência.2. A atribuição de responsabilidade, com a consequente aplicação de penalidade e/ou imputação da obrigação de ressarcir o patrimônio público de prejuízos eventualmente causados, depende da demonstração da irregularidade da conduta, do nexo de causalidade e da ocorrência de dolo ou erro grosseiro.3. Atenta contra os princípios constitucionais da legalidade, eficiência e celeridade que regem a Administração Pública a exigência de que a autoridade superior verifique a regularidade do certame, sob o pressuposto de que todos os atos que precederam sua manifestação foram praticados de forma incorreta, ilícita ou fraudulenta, de modo a obrigá-la a refazer ou confirmar todas as informações.4. Apesar de figurar como autoridade máxima, o Prefeito não deve responder por atos irregulares que não derivem de sua conduta, em virtude do princípio da segregação de funções.5. O credenciamento de um único fornecedor não é desejável. Porém, a adesão às condições apresentadas pela Administração depende do interesse dos particulares, que podem ou não se dispor a prestar o serviço demandado.” (TCE/MG, Recurso Ordinário nº 1084493. Rel. Cons. Durval Angelo, Sessão do dia 27/10/2021)

“como regra, não cabe a condenação de agentes públicos, seja à sanção de multa, seja em débito, pelo simples fato de ter nomeado agentes públicos (culpa in elegendo) ou deixar de monitorar as atividades deles (culpa in vigilando), pois isso ensejaria uma responsabilização objetiva, não admitida em casos como este” (TCE/RO, Acórdão nº 00290/20 – Pleno, Processo nº 03403/16)

No mesmo sentido, e deixando bem claro que a autoridade máxima (que no caso concreto era um prefeito) só pode ser responsabilizada por culpa in vigilando quando, de forma inequívoca, restar comprovado de que ela tinha ciência da prática de irregularidades por parte da cadeia de comando hierarquicamente inferior e nada fez, assim decidiu o pleno do TCE/PE no parecer prévio proferido nos autos do Processo TC nº 15100067-0:

“Não há responsabilização decorrente de um dever genérico de supervisão. Nos casos de delegação da ordenação de despesas, entendo que se faz necessária a presença de elemento que revele, inequivocamente, a ciência da autoridade delegante de conduta desviante da autoridade delegada. Vale dizer, só poderá ser responsabilizado (…) caso reste demonstrado que, tendo conhecimento de conduta comissiva ou omissiva do gestor, não tomou as devidas providências, dentre as quais, acaso mantida a delegação, de supervisioná-lo mais de perto, acercando-se de cuidados redobrados para que não mais viesse o gestor delegado a cometer falha de igual jaez.” (Parecer prévio das contas do Prefeito de Araripina do exercício financeiro de 2014, Processo TCE-PE n° 15100067-0, Relator: Conselheiro Substituto Ruy Ricardo Harten, Órgão Julgador: Pleno)

Para arrematar, pelo que se observa, resta incabível a responsabilização da autoridade máxima com base, unicamente, em um dever genérico de vigilância, de supervisão. De modo que, para que se configure culpa in vigilando não basta que o agente público deixe de monitorar as atividades dos seus subalternos na cadeia de responsabilidades, faz-se necessário, para fins de responsabilização subjetiva, que o agente público que ocupe posição de liderança tenha efetiva ciência de falhas, irregularidades e ilegalidades por parte da estrutura hierarquizada e se quede omisso.


[1] “A responsabilização por culpa (imperícia, negligência ou imprudência) é sempre assunto controverso, pois, não raras vezes, são aplicadas múltiplas responsabilizações com fundamento na culpa in elegendo (má escolha daqueles que atuaram/dos subordinados) e culpa in vigilando (falta de fiscalização da atuação dos subordinados).Ocorre que, a nosso ver, recorrer-se indistintamente aos institutos da culpa in vigilando e da culpa in eligendo configura verdadeira violação à segregação de funções e aos limites da extensão da responsabilidade ante a especialização e distinção das tarefas a cargo dos agentes públicos, pois o erro do agente público hierarquicamente inferior não é suficiente a demonstrar a prova da culpa daquele na escala superior. Ora, se sempre se recorrer ao instituto da culpa in vigilando para responsabilização dos superiores e do próprio Chefe do Executivo, não seria necessário sequer que existisse a responsabilização específica, uma vez que, na maioria das vezes, seriam eles responsabilizados solidariamente pelo simples fato de serem hierarquicamente superiores a outros integrantes da máquina pública (…) Com as responsabilizações fundadas nestes institutos, estar-se-á diante de verdadeira multiplicidade de sanções por única conduta, que se desdobra e atinge todos os que de algum modo atuaram posteriormente no procedimento. Tais situações culminam em responsabilizações decorrentes da simples existência de hierarquia na Administração Pública (…)” (Machado, Henrique Pandim Barbosa; Morais, Andressa Silvestre. A necessidade de individualização da conduta para fins de responsabilização no âmbito do processo de contas: o caso das fiscalizações de licitações. Fórum Administrativo–FA, Belo Horizonte, ano 19, nº. 216, págs. 42/43, fev. 2019)

[2] “(…) na prática, só poderá ser responsabilizado aquele que tiver relação subjetiva com a conduta, tendo-a praticado, deixado de praticar, ou, de alguma forma, contribuído para tanto e, ainda, na medida de sua influência. A máquina pública é diversificada e complexa, razão pela qual não há como se exigir que um Prefeito, por exemplo, tenha ciência e, logo, responsabilidade, a respeito de cada situação particular que ocorra no município e é justamente por isso que existe a descentralização, a delegação e a especialização de atribuições. Há que se cuidar para não conferir a qualquer agente público, principalmente a autoridade maior, a condição de segurador universal, espécie de superagente, onisciente e por tudo responsável, deixando de verificar no caso concreto quem efetivamente, por exemplo, contratou e pagou certas despesas. Tal contexto serve para melhor evidenciar a necessidade de configuração do nexo de causalidade entre a conduta e o resultado negativo dela decorrente: não há como se responsabilizar um agente sem a existência de um nexo coerente e coeso entre esses fatores, sendo imprescindível a descrição detalhada dos fatos e da conduta. (…) entendemos que a responsabilização deve se basear na previsão legal de obrigações do agente, ou seja, para se aferir a responsabilidade do agente pelo ato omissivo ou comissivo, há que se buscar na lei as atribuições e funções inerentes ao cargo exercido pelo agente e, a partir de então, definir os limites e parâmetros de aferição da conduta, de modo a confirmara competência para tanto.” (Machado, Henrique Pandim Barbosa; Morais, Andressa Silvestre. A necessidade de individualização da conduta para fins de responsabilização no âmbito do processo de contas: o caso das fiscalizações de licitações. Fórum Administrativo–FA, Belo Horizonte, ano 19, nº. 216, pág. 43, fev. 2019)

Aldem Johnston Barbosa Araújo

Advogado em Mello Pimentel Advocacia; Membro da Comissão de Direito à Infraestrutura da OAB/PE; Autor do livro “Processo Administrativo e o Novo CPC – Impactos da Aplicação Supletiva e Subsidiária” publicado pela Editora Juruá; Articulista em sites, revistas jurídicas e periódicos nacionais; Especialista em Direito Público.

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