quinta-feira,18 abril 2024
ColunaDireito InternacionalProteção da propriedade na pendência de ação possessória

Proteção da propriedade na pendência de ação possessória

A decisão proferida em 15.06.2021 pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1909196/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, no sentido de considerar inadmissível a propositura de ação dominial na pendência de ação possessória, entre as mesmas partes, reacendeu a discussão da separação dos juízos possessório e dominial.

Desde o Código Civil anterior de 1916, reconheceu-se a autonomia da proteção da Posse frente ao direito de Propriedade. Com efeito, a Posse é entendida como exercício de fato de um dos poderes inerentes à propriedade (uso, gozo e disposição), e tem a sua proteção jurídica embasada na ideia de paz social e da proibição da justiça privada fundada pelas próprias mãos, notadamente para proteger as situações fáticas já estabilizadas pelo tempo em que não existam violência, clandestinidade e precariedade. Comprovada a posse e sua origem, estando despida dos vícios da violência, da clandestinidade e da precariedade, a proteção possessória independe da alegação e da comprovação da propriedade, e pode ser, inclusive, obtida pelo possuidor direto contra o proprietário ou possuidor indireto, eis que, no confronto da posse exercida por aquele que realiza atos de uso e gozo, com a do proprietário que nunca teve a posse ou a abandonou, tendo mera posse civil indireta, deve prevalecer a proteção da posse (cf., por todos, José Carlos Moreira Alves. Posse – Estudo Dogmático. Rio de Janeiro: Forense, vol. I, p. 50 e ss).

Tanto a legislação anterior como o Código Civil de 2002, em seu art. 1.210, preceituam que o possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado. Por sua vez, o proprietário tem a seu dispor o exercício dos atributos de usar, gozar, dispor e reaver a coisa daquele que a injusta a possua ou a detenha, o que inclui também a proteção judicial tanto da posse como da propriedade, a teor do art. 1.228 do Código Civil de 2002. O titular do direito de propriedade tem à sua disposição tanto as ações possessórias como as ações dominiais, em que, em ambas, se pleiteia a obtenção/proteção da posse, variando-se a causa de pedir. Isto é, a ordem jurídica consagra a proteção judicial tanto da Posse como da Propriedade, a par dos juízos possessório, em que a posse é protegida pelo exercício da posse justa, e dominial/petitório, em que a posse é protegida em razão do direito de propriedade.

Na vigência do Código Civil de 1916, nada obstante a separação dos juízos possessório e dominial defendida e aceita na doutrina, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 487, segundo a qual “será deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio se com base neste for disputada”. No mesmo sentido, o STJ assentou a orientação de que a proteção possessória independe da arguição de propriedade, salvo se ambos os litigantes disputem a posse com base na alegação da propriedade ou quando há dúvidas quanto à posse (REsp 81688, rel. Min. Menezes Direito, e REsp 200353, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira).

Apesar de ter havido controvérsias na vigência da legislação anterior, o Código Civil de 2002, em seu art. 1.210, parágrafo único, impôs a separação absoluta dos juízos possessório e dominial, de sorte que, em se tratando de demanda possessória, não se discute o domínio, mas tão somente a posse exercida sobre a coisa (AREsp 1477295, rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, e REsp 1.389.622, rel. Min. Luis Felipe Salomão).

Entretanto, a separação dos juízos possessório e dominial motivou também a orientação de que é melhor interpretar como norma tendente a separar, inclusive no tempo, a ação possessória da petitória, haja vista que tanto o revogado CPC/1973, em seu art. 923, como o CPC/2015, em seu art. 557, estabelecem que, na pendência da ação possessória é vedado, tanto ao autor quanto ao réu, propor ação de reconhecimento de domínio.

Para preservar a garantia constitucional do acesso ao poder judiciário, o STF, na década de 1970, pronunciara-se que a restrição prevista no art. 923 do CPC/1973 – na pendência de demanda possessória, é defeso às partes a propositura de ação que vise ao reconhecimento de domínio – somente se aplicava, quando a posse fosse disputada a título de domínio (RE 89.179-0, rel. Min. Cordeiro Guerra). Igual tese foi adotada na conclusão LXXIII do 1º Simpósio de Curitiba: “o art. 923, 1ª parte, só se refere a ações possessórias em que a posse seja disputada a título de domínio”.

Apesar da orientação adotada pelo STF, o STJ tem fixado a orientação diametralmente oposta, fundada na lição de Nelson Nery Jr., de que, enquanto pendente a ação possessória, nem autor nem réu podem utilizar-se da ação dominial, havendo uma condição suspensiva do direito de ação voltado à proteção da propriedade (REsp 1204820, rel. Min. Luis Felipe Salomão, e AREsp 318.166, rel. Min. Raul Araújo).

A propósito, apesar de o Código Civil em vigor ter adotado a separação absoluta dos juízos possessório e dominial, segundo o qual não se pode suscitar a exceptio proprietatis como matéria relevante em ação possessória, a Constituição Federal não alberga a vedação pura e simples de ingresso de ação perante o Poder Judiciário para a proteção do direito constitucional de propriedade, à luz do princípio do acesso à justiça.

Não se pode presumir o abuso de direito a toda e qualquer postulação de proteção possessória com base na propriedade (ajuizamento de ação dominial), mesmo que na pendência de ação possessória. Em outros termos, por força da cláusula constitucional que assegura o acesso à justiça, admite-se, mesmo na pendência de ação possessória, a propositura de ação dominial, exigindo do juízo a apuração do exercício regular e adequado tanto do direito de propriedade como do direito de possuir.

Por conseguinte, a cláusula constitucional do acesso à justiça permite a propositura de ação dominial na pendência de ação possessória entre as mesmas, impondo-se ao juízo a aplicação do princípio da proporcionalidade, a fim de avaliar, no âmbito das ações possessória e dominial, se as partes cumprem as funções sociais e econômicas que a lei civil impõe à posse e à propriedade.

As funções econômica e social servem como fundamentos centrais para que o juízo possa proferir, simultaneamente nas demandas, uma decisão compatível com os valores constitucionais. Não se pode, apriorística e previamente, optar cegamente pela proteção pura da posse em detrimento do direito de propriedade. Foi o que acabou decidindo acertadamente o STF em conflito que envolvia a discussão das temáticas da propriedade e da posse (ACO 1602, rel. Min. Gilmar Mendes, e ACO 685, rel. Min. Ellen Gracie). Portanto, na esteira da prevalência da garantia constitucional do acesso à justiça, o Código Civil de 2002, em seu art. 1210, e o CPC/2015, em seu art. 557, impedem a apreciação do domínio em juízo possessório, mas não podem, sob pena de manifesta inconstitucionalidade, impedir a propositura de ação dominial entre as mesmas partes na pendência de ação possessória.

Mestre e Doutor pela PUC-SP. Professor da graduação e do Mestrado na UFRN. Advogado.

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