quinta-feira,28 março 2024
ContraditórioA política na rua: um museu de grandes novidades

A política na rua: um museu de grandes novidades

Francisco Weffort já disse, muito embora de maneira dura, mas verdadeira, que “o Brasil constitui, pelo menos até aqui, o caso infeliz de um país que não fez, nunca, nem uma revolução verdadeira nem uma democracia verdadeira” (1986, p. 23). De fato, um país um que teve sua independência proclamada pelo filho mimado de seu próprio rei colonizador para mais tarde ter sua república inaugurada pela força militar (totalmente oposta ao poder popular), conheceu muito pouco em termos de revolução ou democracia. Os anos seguintes à proclamação da República foram “tão abertos ao povo” que se apelidou o período histórico de República da Espada. Seguiu-se logo após a era Vargas, quase monárquica pelo seu governante, para, finalmente, suspirar o povo brasileiro com regimes presidenciais democráticos – sem imaginar que aqueles dias seriam a calmaria antes da tempestade que faria o país cair nas trevas da ditadura.

Durante este tempo se construiu o mito de que a democracia seria a resposta dos males sociais e econômicos do país. E embora a democracia tenha realmente vindo em 1988, com uma Constituição fabulosa na magnitude dos direitos ali arrolados, o que se viu com desespero foi o despertar de um sonho e o desvendar de uma mentira baseada na “crença de que a democracia política resolveria com rapidez os problemas da pobreza e da desigualdade” (CARVALHO, 2002, 219).

Houve frustração com os governantes posteriores à democratização. A partir do terceiro ano do governo Sarney, o desencanto começou a crescer, pois ficara claro que a democratização não resolveria automaticamente os problemas do dia-a-dia que mais afligiam o grosso da população. As velhas práticas políticas, incluindo a corrupção, estavam todas de volta. Os políticos, os partidos, o Legislativo voltaram a transmitir a imagem de incapazes, quando não de corruptos e voltados unicamente para seus próprios interesses. (CARVALHO, 2002, 203)

Verdade que a democracia de hoje foi obtida com árduas lutas dos movimentos populares das décadas de 70 e 80, mas ainda que a construção democrática tenha tido a participação popular, sua concretização de fato, e todo seu desenvolvimento, não teve a mesma colaboração ativa dos cidadãos, os quais se contentaram com a mera vitória inicial de uma troca de regime político, do militar para o republicano. Como um anfitrião que se preocupa demais em preparar seu evento, o povo esqueceu-se de fazer parte de sua própria festa, deixando a folia aos seus representantes políticos, razão pela qual o que vemos hoje é uma esbórnia de rapinagens nas instituições públicas – a casa bagunçada que o anfitrião, depois de tanto zelo para preparar a festa, calcula o tempo e o esforço que terá para organizar – sozinho, destaque-se.

E continuamos vivendo e convivendo com as velhas práticas políticas de corrupção e detrimento dos interesses sociais. Essa indiferença popular verificada durante a história política brasileira pós 1988 se sedimentou na premissa de que “se deve deixar os problemas da política para os políticos”, ficando estes, logicamente, muito satisfeitos com tal pensamento, afinal, “é mais fácil dominar súditos dóceis ou indiferentes” (BOBBIO, 1987, p. 31)

Diante das manifestações populares que verificamos nos últimos anos, em que a ocupação do espaço público se tornou símbolo de discussão política pela sociedade, com preenchimento de praças e avenidas, o contexto parece ter finalmente mudado.

Mudou mesmo?

A ocupação da via pública e os gritos de protesto não são novidades. Viu-se contexto semelhante na “noite das garrafadas”, onde lusitanos e brasileiros se atacaram a golpes de garrafas uns aos outros, de um lado, os simpatizantes de D. Pedro I, de outro, os indignados com o governante. Nada tão similar como o que vemos cotidianamente em 2016, onde grupos partidários ideologicamente opostos levam suas ideologias ao confronto verbal e físico. E se fossem esses combatentes os parlamentares de seus respectivos partidos, seria o menor dos males. Infelizmente, os combatentes são da mesma massa que compõem a sociedade – é o povo contra o povo. Talvez por isso que as manifestações populares gozem historicamente de tanto descrédito: não há por aqueles que detêm o poder a menor filigrana de vontade de união ou de escutar uma discussão mais saudável entre interlocutores de ideias adversas. É lamentável admitir como verdadeira, porque realmente o é, que “na cultura brasileira, a discordância beira à afronta. Por quê? Porque nós somos herdeiros de uma cultura autoritária.”[1] (SAMPAIO, 2005).

As tentativas de revolução nas terras brasileiras obedecem a um caminho sistemático: um governante perde o controle da economia e, em meio a uma crise que assola o mercado, surgem notícias de corrupção (já latentes, mas só ventiladas agora de forma muito oportuna). Açula-se o ódio social e a popularidade do governo cai. A população sai às ruas, fragmentada e se digladia. Enquanto isso, um plano já previamente montado de substituição dos dirigentes políticos é posto em prática. Muda-se um regime ali, um governante aqui e lançam-se as mesmas sementes de que um representante inédito (mas velho nos bastidores) é o novo messias da nação. Por fim, para que a população volte à sua casa bovinamente, atribui-se a transformação política ao povo. Crentes de que ajudaram em algo se digladiando nas ruas, os bois voltam ao curral para um novo abate consistente no mesmo arrocho tributário, restrição de direitos sociais, etc. E assim como já cantava Cazuza: Eu vejo o futuro repetir o passado. Eu vejo um museu de grandes novidades.

Toda a nossa política, assim monárquica como republicana, mostrou-se geralmente ou duvidosa da capacidade do povo, ou suspeitosa do caráter de suas manifestações, de tal maneira que, entre nós, o povo foi sempre mais um símbolo constitucional do que fonte de autoridade em cujo contato dirigentes, representantes e líderes partidários fossem retemperar o animo e o desejo de servir (FAORO, Raymundo. Os donos do poder: Formação do patronato político brasileiro. 4. ed. São Paulo: Globo, 2008, p. 371)

Nesse ciclo repetitivo histórico, reivindicações e ocupações de espaços públicos, ora movidas por grupos políticos, ora por veículos midiáticos (estes com intenções tão patentemente políticas que, no mais das vezes, nada se diferenciam daqueles) deve levar à reflexão se na manifestação popular, aquele poder soberano registrado no artigo inaugural de nossa Constituição realmente se manifesta. Aliás, teve o povo algum dia esse poder? Se manifestações populares são açuladas por interesses políticos alheios, não estaria ocorrendo uma inversão de papeis onde os representados nada mais seriam do que representantes? E se assim o for, representantes de quem?

A resposta de quem está com o poder pode conduzir a uma organização dos papeis entre políticos e povo ainda não vista em nosso país. Para tanto, reconhecer-se como ator dessa transformação é o primeiro passo. Mas um ator diferente: com papel definido por si mesmo, livre de vinculações ideológicas seja de quem for. Um ator para um papel que deve durar mais do que uma encenação no palco das ruas, de modo que o mesmo discurso de honestidade, busca de direitos, respeito pela democracia e tolerância seja algo para se levar posteriormente, cotidianamente e, acima de tudo espontaneamente, não porque hoje saiu na televisão dada notícia ou porque você tem um evento criado pela rede social para comparecer. Do contrário, o que teremos serão tantos outros dias e noites de garradas, espetáculos sanguinolentos de euforia popular os quais nada ajudam a atingir o governo objeto de descontentamento ou alterar o quadro político.

Apesar de tudo, o momento de expansão popular deve ser visto como de esperança. Nem tudo é repetição de uma tragédia, tampouco se deve frenar as manifestações populares atuais. Os erros do passado precisam se constituir num aprendizado ao futuro, não ao entrave. É preferível acreditar que novas consciências estão brotando para um futuro melhor e uma revolução nunca antes registrada. É sempre mais difícil perceber essa mudança, principalmente porque o colapso das instituições públicas é propagado com um ruído sempre maior, quase sempre com o intuito de trazer um pânico social.

A mudança de mentalidade popular de um “povo que vai para as ruas” em tempos de conflito, nos últimos anos, vem gradualmente sendo substituída por um “povo que fica nas ruas”, consciente de que o conflito e a busca de uma sociedade melhor é uma constância.

Portanto, não sejamos pessimistas. Também como cantava Cazuza, nem tudo está perdido: Mas se você achar que eu tô derrotado, saiba que ainda estão rolando os dados porque o tempo, o tempo não para.

Não posso terminar sem trazer a fala de Jean-Yves Leloup, muito aplicável hoje:

Há algo desmoronando, e há também algo que está nascendo. Nós escutamos o barulho do carvalho que cai, mas não escutamos o barulho da floresta que brota. Ouvimos o ruído das torres desmoronando, mas não escutamos a consciência que desperta. No mundo de hoje há muitas coisas que desmoronam, e em  geral falamos das coisas que fazem ruído, mas não falamos das sementes de consciência e de luz que estão germinando”.

Estejamos atentos também para perceber e fazer nascer novos horizontes de consciência política dentro de nós.

 

 

REFERÊNCIAS:

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: Uma defesa das regras do jogo. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder: Formação do patronato político brasileiro. 4. ed. São Paulo: Globo, 2008,

SAMPAIO, Plínio de Arruda. Participação popular. In: TEIXEIRA, A. C. C (Org.). Os sentidos da democracia e da participação. São Paulo: Instituto, Pólis, 2005.

WEFFORT, Francisco C.. Por que democracia? 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 23

 

Notas: 

[1] Por exemplo, creio que todos aqui já testemunharam o clima de estupor que se segue à objeção de alguém da platéia a uma afirmação do orador. Um escândalo! O atingido toma ares de ofendido; a platéia olha reprovativamente para o objetante; a turma do “deixa disso” entra imediatamente em ação. Toda uma complexa operação se desenvolve automaticamente para impedir o debate, o confronto de argumento contra argumento.

 

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