quinta-feira,28 março 2024
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Os efeitos da condenação por crime de abuso de autoridade de acordo com a Lei 13.869/19

A prática de abuso de autoridade não é somente um ilícito penal, é também ilícito administrativo e civil. Assim sendo, os efeitos da condenação se espraiam para outras áreas além da criminal.

A obrigação da indenização do dano causado decorre naturalmente do Código Civil e é apenas reforçada pela Lei de Abuso de Autoridade. O artigo 186 do Código Civil já afirma que todo aquele que dolosa ou culposamente viola direito ou causa dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. E o ilícito civil, nestes termos definido, implica na obrigação de indenização, de acordo com o artigo 927, CC.

Essa questão da reparação do dano também é objeto de tratamento no Código de Processo Penal com referência à Ação Civil “ex delicto”, de acordo com o disposto nos artigos 63 a 68, CPP. Ademais, na sentença penal condenatória é obrigação do magistrado fixar valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, nos termos do artigo 387, IV, CPP, de modo que o condicionamento dessa definição a um requerimento do ofendido pelo artigo 4º., I, da Lei 13.869/19, parece ser inoportuna. Na verdade, deveria ter prevalecido a obrigação judicial de estabelecer o valor mínimo indenizatório em caso de condenação, independentemente de requerimento, na forma do artigo 387, IV, CPP. A norma da legislação especial, que prevalecerá, neste aspecto, sobre a geral, prejudica o interesse do ofendido a essa delimitação preliminar já na seara criminal e justamente em crimes nos quais o indivíduo se vê oprimido pelo Poder Estatal que, na realidade, tem responsabilidade objetiva sob o aspecto indenizatório (artigo 37, § 6º., CF c/c artigo 43, CC). Note-se que esse valor estabelecido na sentença condenatória é o “mínimo”, podendo perfeitamente ser complementado na via cível adequada. Enfim, deve-se mencionar que a obrigação de reparação do dano é efeito genérico da condenação, conforme já consta do artigo 91, I, CP.
Possivelmente o legislador cedeu, equivocadamente, a polêmicas em torno no artigo 387, IV, CPP, porque alguns entendem que o estabelecimento desse valor mínimo dependeria de pedido expresso do querelante ou do Ministério Público, o que não nos parece correto, até mesmo pela clara dicção legal. Neste sentido a lição coerente de Marcão:

Inovação trazida pela Lei 11.719/2008, determina o inciso IV que, no caso de condenação, o julgador deverá fixar valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido.

Cuida-se da denominada parcela mínima dos danos causados.

A regra é saudável e fonte de discussões, basicamente porque há quem entenda que o juiz só poderá fixar o valor se houver pedido expresso na denúncia, e também há quem sustente que o Ministério Público não dispõe de atribuições para tal tipo de postulação, visto que a busca reparatória de natureza civil só pode ser deflagrada em juízo por advogado ou Defensor Público.

Quanto à primeira objeção, quer nos parecer que a regra tratada é bastante clara ao determinar que o juiz, independentemente de qualquer provocação (ex officio), deverá fixar a parcela mínima da reparação sempre que cabível. O comando da regra é claro: o juiz fixará, portanto, com ou sem pedido expresso a esse respeito. (…). Nem se argumente que a defesa será surpreendida com tal fixação, visto que a condenação imposta no juízo criminal implica em reconhecimento jurídico do dever de indenizar, por expressa disposição de lei.

No mais, também não concordamos com as objeções ao pedido de fixação formulado pelo Ministério Público, pois, quando assim procede, nada mais faz do que postular o cumprimento da regra legal, impositiva para o julgador, e assim procede até desnecessariamente, em vista do que anotamos linhas atrás.

Não se trata de promover ação reparatória conjuntamente com ação penal, tal como ocorre nas legislações em que admitida a cumulação de instâncias (penal e civil). A particularidade tratada está longe disso, até porque, no sistema jurídico vigente, a fixação judicial em sede de condenação criminal não resolve definitivamente o dever reparatório.

Parece não restar dúvida de que o legislador quis fugir dessa polêmica e estabelecer claramente a necessidade de pedido por parte do ofendido. A nosso ver não foi o melhor caminho. Deveria ter sido expresso no sentido de que a fixação desse valor é um efeito automático da condenação e obrigação do magistrado, independentemente de requerimento de quem quer que seja. Não obstante, “legem habemus” e há que prevalecer a norma especial da Lei 13.869/19 sobre a norma geral do Código de Processo Penal. Infelizmente, portanto, a fixação pelo Juiz de valor mínimo indenizatório por crime de abuso de autoridade na sentença condenatória depende de provocação do ofendido. Resta saber se o ofendido pode formular esse requerimento de maneira informal, por exemplo, desde a fase de investigação ou mesmo em juízo, ou se precisa de um advogado para tanto. Embora a lei não estabeleça formalidades, parece que se trata de postulação em juízo, para a qual será necessário o concurso de profissional habilitado. Mesmo porque, a posterior execução ou mesmo postulação de complemento da indenização no Juízo Cível, não prescindirá do profissional advogado.

Cabe salientar as sugestões de Gabriela Marques e Ivan Marques, no sentido de que ou o Ministério Público deva proceder ao pedido, já que as ações penais são sempre públicas no abuso de autoridade, ou que seja obrigatória a oitiva formal da vítima a respeito em todos os processos.

Respeitosamente, discordamos dessas sugestões. Primeiro porque a lei menciona o requerimento da vítima, não havendo espaço para atuação do Ministério Público. Ora, se no sistema adotado pelo Código de Processo Penal já há discussão acerca da legitimidade ou não do Ministério Público para requerer nesses casos, o que dizer de uma legislação que é literal ao afirmar que cabe à vítima fazer esse pedido? A oitiva formal da vítima é uma sugestão que resolveria a formulação do requerimento na forma da lei, mas, como já visto, somente serviria para que o magistrado pudesse estabelecer na sentença condenatória criminal o mínimo indenizatório, sem repercussão prática na esfera da efetiva indenização que sempre dependerá de advogado.

Porém, é preciso deixar bem clara uma distinção. O efeito de tornar certa a obrigação de indenizar o dano é automático, até por força do disposto no artigo 4º., Parágrafo Único, da Lei 13.869/19, que somente afirma serem não automáticos os efeitos dos demais incisos (II e III). Além disso, há que ter em mente as regras gerais do Código Civil, Código Penal, Código de Processo Penal e até da Constituição Federal já expostas. Esse efeito não depende sequer de menção pelo magistrado na sentença. O que fica condicionado na Lei de Abuso de Autoridade a um prévio requerimento provocativo do ofendido a fim de retirar o Juiz da sua inércia, é a fixação de um valor mínimo indenizatório já na sentença criminal. Somente isso. A obrigação de reparar o dano é efeito automático da condenação criminal, não somente considerando o claramente disposto na Lei de Abuso de Autoridade, mas também em uma análise conglobante do ordenamento jurídico brasileiro.

O segundo efeito da condenação por crime de abuso de autoridade é a inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública, pelo período de 1 (um) a 5 (cinco) anos.
Conforme disposto no Parágrafo Único do artigo 4º., esse efeito não é automático e somente será aplicado àqueles criminosos reincidentes específicos em crime de abuso de autoridade. Assim sendo, o infrator primário, ainda que somente tecnicamente primário, não sofrerá esse efeito, assim como mesmo o reincidente, desde que sua condenação anterior, geradora da reincidência, seja por outro crime não previsto na Lei de Abuso de Autoridade. Ademais, ainda que seja reincidente específico em abuso de autoridade, será necessário que o Juiz aplique esse efeito expressamente em sua sentença. Não só expressamente, mas também “motivadamente”, ou seja, de maneira fundamentada, nos termos do artigo 93, IX, CF. O magistrado deverá constar esse efeito de acordo com a adequação, necessidade e proporcionalidade na aplicação da pena e seus efeitos, em típica atividade individualizadora (artigo 5º., XLVI, CF). No silêncio do magistrado, entendendo o Ministério Público cabível a determinação desse efeito, deverá manejar embargos de declaração e, se o caso, posterior apelação. Em não havendo essa atitude por parte do Parquet, a sentença transitará em julgado sem o referido efeito e não haverá mais possibilidade de que seja pleiteado contra o réu. A nosso ver esse efeito deveria ter sido previsto como automático pela legislação.

Gabriela Marques e Ivan Marques afirmam que aquele beneficiado pelos efeitos da chamada “prescrição da reincidência”, nos termos do artigo 64, I CP, seria “tecnicamente primário”, mas mesmo após a passagem do período depurador da reincidência ostentaria “ad infinitum” “maus antecedentes”, o que resultaria na possibilidade de sofrer os efeitos da condenação previstos nos incisos I e II do artigo 4º., conforme dispõe seu Parágrafo Único.

Esse entendimento, “data venia” não se sustenta. Primeiro porque a lei requer a “reincidência” específica e nada diz sobre “maus antecedentes”, que são institutos absolutamente diversos. A própria legalidade impede que tais efeitos estejam autorizados pelos simples “maus antecedentes”, na medida em que a lei se refere tão somente à “reincidência”. Além disso, há outro equívoco. É hoje predominante, inclusive no STF, o entendimento de que as condenações que passam pelo período depurador da “prescrição da reincidência” não geram nem reincidência e nem mesmo “maus antecedentes”. Trata-se de aplicação e desenvolvimento do chamado “direito ao esquecimento”. No HC 162.305, STF, o Ministro Gilmar Mendes invocou várias outras decisões daquela corte suprema (v.g. HC 126.315, 2ª. Turma, STF e RHC 118.977, 1ª. Turma, STF) para afastar os maus antecedentes em casos como este. Afirmou o Ministro:

A possibilidade de sopesarem-se negativamente antecedentes criminais, sem qualquer limitação temporal, ad aeternum, em verdade, mostra-se pena de caráter perpétuo revestida de legalidade, (…), ressaltando que a Constituição Federal veda expressamente, na alínea “b” do inciso XLVII do artigo 5º, as penas de caráter perpétuo. Tal dispositivo suscita questão acerca da proporcionalidade da pena e de seus efeitos para além da reprimenda corporal propriamente dita.

Greco e Cunha chamam a atenção para o fato de que pode parecer que a inabilitação somente seria possível quando o agente público, anteriormente perder o cargo. No entanto, concluem, a nosso ver com acerto, que ela também pode ocorrer isoladamente em casos nos quais, por exemplo, antes da condenação, o agente pede exoneração, é demitido administrativamente ou renuncia.

Neste tema e em específico no que diz com o exercício de mandatos eletivos, há que ter em vista também a Lei Complementar 64/90, com nova redação dada pela Lei Complementar 135/2010 (conhecida como “Lei da Ficha Limpa”).

Segundo o artigo 1º., inciso I, alínea “e”, número 5, do sobredito diploma legal, o condenado por abuso de autoridade, com perda de cargo ou inabilitação para função pública, ficará inelegível a partir do trânsito em julgado ou da condenação por órgão colegiado, pelo prazo de oito anos após o cumprimento da pena. Esse efeito especial da condenação não depende de menção na sentença, pois decorre das regras de inelegibilidade. Entretanto, tal regramento mais rígido somente tem validade para mandatos eletivos. Nos demais casos a interdição depende do disposto no artigo 4º., I, da Lei 13.869/19 e o efeito não é automático, como já visto.

O terceiro efeito da condenação por abuso de autoridade é a perda do cargo, mandato ou função pública. Esse efeito também não é automático, de acordo com o regramento do artigo 4º., Parágrafo Único, da Lei de Abuso de Autoridade, valendo os comentários já expendidos.

Note-se que cotejando a Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/19) com a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 64/90, com redação nova dada pela Lei Complementar 135/2010), não sendo, segundo o primeiro diploma, a inabilitação ou perda do cargo automáticos, nem sempre a condenação por abuso de autoridade gerará a inelegibilidade prevista na Lei da Ficha Limpa. Isso porque este segundo diploma exige para a inelegibilidade que o indivíduo tenha sido condenado por abuso de autoridade “com perda de cargo ou inabilitação para função pública”. A Lei da Ficha Limpa somente torna inelegível aquele condenado “nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública” (excerto do artigo 1º., inciso I, alínea “e”, número 5, da legislação em destaque). Como a Lei 13.869/19 estabelece que esses dois efeitos não são automáticos nem obrigatórios, conforme artigo 4º., Parágrafo Único, podem ocorrer casos em que alguém seja condenado por abuso de autoridade e não sofra os efeitos de perda do cargo, mandato ou função, bem como não fique inabilitado. Não ocorrendo ao menos um dos dois efeitos, não será possível o reconhecimento da inelegibilidade. Afirma-se que não haverá inelegibilidade “não ocorrendo ao menos um” dos dois efeitos, porque a Lei da Ficha Limpa prevê a sanção em caso de condenação por abuso de autoridade com um ou outro desses dois efeitos, não exigindo ambos. Isso, a nosso ver, é uma falha terrível de ambas as legislações. Não é admissível que um infrator da lei penal, que comete uma espécie de crime contra a administração pública, malversando os poderes que lhe foram conferidos, seja considerado elegível, somente porque não sofreu a perda do cargo ou uma inabilitação previstas na Lei de Abuso de Autoridade. Eis mais uma razão para que esses efeitos fossem automáticos e não condicionados à reincidência e ainda à sua determinação expressa na sentença condenatória.

No que diz respeito à perda do cargo ou função pública, ainda que não decorra da sentença condenatória, certamente advirá do respectivo Processo Administrativo Disciplinar. Isso tendo em conta que os diversos diplomas que regem os funcionários públicos estabelecem a pena de “demissão” ou até “demissão a bem do serviço público” para os casos de condenação por “crimes contra a administração pública”. São exemplos o artigo 132, I, do Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União (Lei 8.112/90), o artigo 75, II e XII, da Lei Orgânica da Polícia Civil do Estado de São Paulo (Lei Complementar Estadual 207/79, neste caso a demissão é “a bem do serviço público” e há menção, no inciso XII, a ato de improbidade administrativa), entre outros. Nesses caos de perda do cargo ou função por via administrativa e não como efeito de sentença condenatória, não será possível a inelegibilidade de acordo com a Lei da Ficha Limpa, pois que esta se refere à condenação criminal com esses efeitos e não à sanção administrativa. É claro que a instância administrativa é independente da penal, mas possivelmente um condenado na seara penal sofrerá as devidas consequências administrativas.

Quanto ao mandato eletivo, também ainda restará a questão de decoro do agente político, que poderá, justamente na esfera política sofrer sanções devidas, inclusive com a destituição da função (vide artigo 55, II, CF; artigo 2º. c/c 9º, VII, da Lei 1079/50 etc.). Essas legislações também preveem inabilitações por prazos determinados, as quais são especiais em relação à Lei da Ficha Limpa.

Reitera-se que, portando, os efeitos de perda do cargo, mandato ou função e inabilitação deveriam ser obrigatórios e automáticos, a fim de dar cumprimento mais rigoroso à vedação de acesso a cargos populares eletivos por indivíduos que versam em abuso de poder.


REFERÊNCIAS
APÓS 5 anos do fim da pena, condenado não tem mais maus antecedentes. Disponível em https://www.conjur.com.br/2018-out-23/condenado-volta-bons-antecedentes-anos-fim-pena, acesso em 20.12.2019.

GRECO, Rogério, CUNHA, Rogério Sanches. Abuso de Autoridade. Salvador: Juspodivm, 2020.

MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.

MARQUES, Gabriela, MARQUES, Ivan, A Nova Lei de Abuso de Autoridade. São Paulo: RT, 2019.

TEIXEIRA, Ana Valéria de Oliveira (org.) et al. Direito ao Esquecimento. Brasília: Secretaria de Documentação Coordenadoria de Biblioteca – STF, 2017.

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

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