sexta-feira,29 março 2024
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O uso errado da Teoria do Domínio do Fato no Direito Penal Brasileiro

A teoria do domínio do fato afirma que é autor – e não mero partícipe – a pessoa que, mesmo não tendo praticado diretamente a infração penal, decidiu e ordenou sua prática a subordinado seu, o qual foi o agente que diretamente a praticou em obediência ao primeiro. O mentor da infração não é mero partícipe, pois seu ato não se restringe a induzir ou instigar o agente infrator, pois havia relação de hierarquia e subordinação entre ambos, não de mera influência resistível.

A teoria do domínio do fato foi criada por Hans Welzel em 1939 e desenvolvida pelo jurista Claus Roxin, em sua obra Täterschaft und Tatherrschaft de 1963, fazendo com que ganhasse a projeção na Europa e na América Latina.

Como desdobramento dessa teoria, entende-se que uma pessoa que tenha autoridade direta e imediata sobre um agente ou grupo de agentes que pratica ilicitude, em situação ou contexto de que tenha conhecimento ou necessariamente devesse tê-lo, essa autoridade pode ser responsabilizada pela infração do mesmo modo que os autores imediatos. Tal entendimento se choca com o princípio da presunção da inocência, segundo o qual, todos são inocentes, até que se prove sua culpabilidade. Isto porque, segundo a teoria do domínio do fato, para que a autoria seja comprovada, basta a dedução lógica e a responsabilização objetiva, supervalorizando-se os indícios.
Para que seja aplicada a teoria do domínio do fato, é necessário que o ocupante do topo de uma organização emita a ordem de execução da infração e comande os agentes diretos e o fato.

Na Argentina, a teoria foi utilizada para julgar a Junta Militar da Argentina, considerando os comandantes da junta culpados pelos desaparecimentos de várias pessoas durante a Ditadura Militar Argentina. Também foi utilizada pela Suprema Corte do Peru ao culpar Alberto Fujimori pelos crimes ocorridos durante seu governo, provando que ele controlou sequestros e homicídios. Foi também utilizada em um tribunal equivalente ao Superior Tribunal de Justiça na Alemanha, para julgar crimes cometidos na Alemanha Oriental.

Foi utilizada pela primeira vez no Brasil, no julgamento do Escândalo do Mensalão, para condenar José Dirceu, alegando-se que ele deveria ter conhecimento dos fatos criminosos devido ao alto cargo que ocupava no momento do escândalo, além de os crimes terem sido aparentemente perpetrados por subordinados diretos seus. A utilização da teoria do domínio do fato para responsabilizar, incriminar e condenar José Dirceu, indo de encontro ao princípio da presunção da inocência, gerou muita polêmica e debates entre juristas brasileiros, com destaque para os votos contrários dos ministros do STF Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. Efetivamente, conforme declarou o próprio jurista Claus Roxin, a decisão de praticar o crime “precisa ser provada, não basta que haja indícios de que ela possa ter ocorrido”.

Segundo Roxin, para que a pessoa que ocupa o topo de uma organização tenha a corresponsabilidade pelos atos de seus subordinados, “o mero ter que saber não basta. Essa construção [“dever de saber”] é do direito anglo-saxão e não a considero correta. No caso Fujimori, por exemplo, foi importante ter provas de que ele controlou os sequestros e homicídios realizados”.

De acordo com a teoria do domínio do fato, “autor, é aquele que tem o controle subjetivo do fato, e atua no exercício desse controle; é quem tem o poder de decisão sobre a realização do fato. Por outras palavras, autor é quem possui o domínio final da ação, e por isso pode decidir sobre a consumação do fato típico, ainda que não tome parte na sua execução material.”

Ao contrário do que se pensa, a teoria do domínio do fato não é algo novo, não é uma nova “onda” do direito penal. Ela existe há muitos anos e, no âmbito do direito penal alemão, tem sido amplamente debatida e aperfeiçoada, sobretudo após meados dos anos 60 e 70 do século passado. Porém, no seio do direito brasileiro, a discussão acerca da teoria do domínio do fato somente emergiu após os debates travados durante os julgamentos da Ação Penal nº 470 (popularmente chamada de “mensalão”).

Não é possível usar a teoria do domínio do fato para fundamentar a condenação de um acusado supondo sua participação apenas no fato de sua posição hierárquica. A pessoa que ocupa a posição no topo de uma organização tem também que ter comandado esse fato, emitido uma ordem. Isso seria um mau uso. A teoria do domínio fato não permite a condenação de mandantes de crime por mera presunção, por estarem numa posição de comando em uma organização.

Nem uma teoria puramente objetiva nem outra puramente subjetiva são adequadas para fundamentar a essência da autoria e fazer, ao mesmo tempo, a delimitação correta entre autoria e participação. A teoria do domínio do fato, partindo do conceito restritivo de autor, tem a pretensão de sintetizar os aspectos objetivos e subjetivos, impondo-se como uma teoria objetivo-subjetiva. Embora o domínio do fato suponha um controle final, “aspecto subjetivo”, não requer somente a finalidade, mas também uma posição objetiva que determine o efetivo domínio do fato. Autor, segundo essa teoria, é quem tem o poder de decisão sobre a realização do fato. Mas é indispensável que resulte demonstrado que quem detém posição de comando determinou a prática da ação, sendo irrelevante, portanto, a simples “posição hierárquica superior”, sob pena de caracterizar autêntica responsabilidade objetiva.             Autor, enfim, é não só o que executa a ação típica, como também aquele que se utiliza de outrem, como instrumento, para a execução da infração penal (autoria mediata). Como ensinava Welzel, “a conformação do fato mediante a vontade de realização que dirige de forma planificada é o que transforma o autor em senhor do fato”. Porém, como afirma Jescheck, não só a vontade de realização resulta decisiva para a autoria, mas também a importância material da parte que cada interveniente assume no fato.

Não fosse assim estar-se-ia negando o direito penal da culpabilidade, e adotando a responsabilidade penal objetiva, aliás, proscrita do moderno direito penal no marco de um Estado Democrático de Direito, como é o caso brasileiro. Em outros termos, para que se configure o domínio do fato é necessário que o autor tenha absoluto controle sobre o executor do fato, e não apenas ostentar uma posição de superioridade ou de representatividade institucional, como se chegou a interpretar na jurisprudência brasileira. Ou, nas palavras do próprio Roxin, verbis: “Quem ocupa posição de comando tem que ter, de fato, emitido a ordem. E isso deve ser provado”.

Segundo Roxin, é insuficiente que haja indícios de sua ocorrência, aliás, como é próprio do Direito Penal do fato, que exige um juízo de certeza consubstanciado em prova incontestável. Nesse sentido, convém destacar lição elementar: a soma de indícios não os converte em prova provada, ou como se gosta de afirmar, acima de qualquer dúvida razoável. A eventual dúvida sobre a culpabilidade de alguém, por menor que seja, é fundamento idôneo para determinar sua absolvição.

A teoria do domínio do fato foi a forma encontrada pela academia para tratar o mandante que não faz parte da execução de uma forma diferente da exposta pelo Direito Penal clássico. “Mas isso não quer dizer que se exclui a necessidade de prova. A teoria diz de forma bem clara que é preciso encontrar alguma prova concreta de que houve o mando, como uma assinatura, uma troca de e-mails, uma conversa telefônica grampeada etc. Hoje em dia os meios de prova estão muito diversificados.”

Para o Direito Penal, a responsabilidade pelo delito praticado é subjetiva, sendo essencial a demonstração de dolo ou culpa por parte do agente, o que se faz por meio de provas que o vinculem, num nexo de causalidade, ao crime.   Já na responsabilidade objetiva, observada particularmente no Direito Civil, há a responsabilização mesmo sem a necessidade de se comprovar culpa ou dolo. Por mera prática de determinados atos, considerados em lei, assume-se o risco pelo resultado. Em existindo o dano, há a responsabilização direta do agente.

Nos casos em que prevalece a responsabilidade objetiva, somente a quebra do nexo de causalidade entre o ato do agente e o resultado, exime este de culpa, afastando a necessidade de indenização.

Um caso ilustrativo de responsabilidade objetiva do Direito Civil é a conduta do cirurgião plástico que venha a provocar dano estético permanente no paciente. Sua conduta é considerada de resultado e não de fim, existindo, neste caso, prevalência da responsabilidade objetiva. Não há necessidade de se demonstrar culpa ou dolo, sendo essencial somente que se demonstre o nexo causal entre o ato do profissional e o resultado do dano, para ensejar a reparação civil.

Diferentemente, no Direito Penal, há a sempre premente necessidade de se demonstrar, inequivocamente, a culpa ou o dolo na conduta do agente a fim de se imputar as penalidades previstas em lei.

A Teoria do Domínio do Fato surgiu como proposta para completar as interpretações mais restritivas do conceito de autoria, resolvendo situações cujo seguimento fiel, quer da teoria subjetiva, quanto da objetiva, poderiam levar à falha do Estado em punir determinado personagem que participou de ação criminosa.

A condenação, baseada na Teoria do Domínio do Fato somente pode estar ancorada na culpabilidade do agente. E esta culpabilidade, como sempre, deve ser demonstrada por provas sólidas, lícitas e convincentes.

De outro modo, estaria sendo desconsiderados princípios constitucionais fundamentais como a dignidade da pessoa humana, a presunção de inocência. O formalismo processual democrático, enraizado no devido processo legal, ampla defesa e contraditório, também sofreriam sérios riscos de serem banalizados e mesmo banidos, com todas as inefáveis consequências do que isto pode representar para um Estado Democrático de Direito.

Não foi outra a posição do próprio elaborador da Teoria, Claus Roxin, que assim declarou em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, em 2012, em oportunidade em que esteve presente no Rio de Janeiro, quando perguntado se um acusado poderia ser condenado apenas pelo fato de sua posição hierárquica (aludindo aos contornos da responsabilidade objetiva pelo ato): Não, em absoluto. A pessoa que ocupa a posição no topo de uma organização tem também que ter comandado esse fato, emitido uma ordem. Isso seria um mau uso.

E continuou na mesma linha, quando indagado se o dever de conhecer os atos de um subordinado implicaria corresponsabilidade:

A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ter que saber não basta. Essa construção “dever de saber” é direito anglo-saxão e não a considero correta. No caso de Fujimori, por exemplo, foi importante ter provas de que ele controlou os sequestros e homicídios realizados.

Finalmente, as jornalistas perguntaram se a opinião pública pode influenciar o juiz, situando a questão para o julgamento da ação penal 470, pelo Supremo Tribunal Federal. Esta foi a resposta:

Na Alemanha temos o mesmo problema. É interessante saber que aqui também há o clamor por condenações severas, mesmo sem provas suficientes. O problema é que isso não corresponde ao Direito. O juiz não tem que ficar do lado da opinião pública.

Destarte, a Teoria do Domínio do Fato não é disfarce teórico para se banir a exigência de provas para uma condenação.

 

Considerações finais

Por conseguinte, não há como transpor a teoria do domínio do fato ao plano brasileiro, face à sua absoluta incompatibilidade com a ordem jurídica vigente e com a opção do legislador brasileiro por um sistema unitário funcional.

O total desconhecimento tanto da doutrina brasileira, quanto da jurisprudência, acerca do absoluto rechaço por parte de Roxin ao sistema unitário de autor, o qual foi recepcionado pelo Código Penal brasileiro, e, principalmente, que a teoria do penalista alemão foi criada tendo em vista o sistema diferenciador adotado pelo Código Penal alemão, tanto a doutrina quanto a jurisprudência brasileiras há muito cometem graves equívocos e incongruências, no que diz respeito ao tratamento e aplicação da teoria do domínio do fato.

 


Referências

ALFLEN, Pablo Rodrigo. Teoria do domínio do fato. São Paulo: Saraiva, 2014.

FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito Penal: parte geral. Tomo I. Coimbra e São Paulo: Coimbra Editora e Editora Revista dos Tribunais, 2007.

LEITE, Alaor. Domínio do fato, domínio da organização e responsabilidade penal por fato de terceiros: os conceitos de autor e partícipe na AP 470 do Supremo Tribunal Federal. in: GRECO, Luís; et alli. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo:Marcial Pons, 2014, p. 139.

ROXIN. Claus. Autoría y dominio del hecho em derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2000.

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