sexta-feira,29 março 2024
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O STF e as restrições à concessão de medida liminar em Mandado de segurança

O mandado de segurança é uma ação constitucional que pode ser ajuizada por pessoa física ou jurídica, cujo fundamento é a proteção de direito líquido e certo contra ato ilegal ou em abuso de direito praticado, ou na iminência de ser praticado, por autoridade pública ou por quem esteja a exercer função pública por delegação.

Por ter assento na Constituição Federal (art. 5º, LXIX), o mandado de segurança é reputado pela doutrina como uma garantia constitucional dotada de atributos do rito célere e da elevada eficácia das decisões nele proferidas, especialmente a concessão de medida liminar. Apesar de antiga, sempre atual é a lição doutrinária de que a medida liminar não é uma liberalidade da Justiça; é medida acauteladora do direito do impetrante, que não pode ser negada quando ocorrem seus pressupostos, como também não deve ser concedida quando ausentes os requisitos para a sua concessão (Hely Lopes Meirelles. Mandado de Segurança. 21ª ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 72).

No regime anterior da Lei do mandado de segurança (Lei 1.533/1951), foram editadas normas (Leis 2.770/1956, 4.348/1964, e 5.021/1966), que restringiam as hipóteses de concessão de medida liminar, dentre as quais destacam-se: (i) proibição de concessão de medida liminar para efeito de reclassificação, equiparação de servidores públicos ou de concessão de aumento ou extensão de vantagens financeiras; (ii) as decisões que impliquem impacto financeiro em matéria de servidor público somente seriam executadas após o trânsito em julgado; (iii) a apelação e a remessa oficial eram dotadas de efeito suspensivo; (iv) o pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias asseguradas, em sentença concessiva de mandado de segurança a servidor público, somente será efetuado relativamente às prestações que se vencerem a contar do ajuizamento da petição inicial; (v) não se concederia liminar para efeito de pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias; (vi) não seria cabível medida liminar que esgotasse, no todo ou em parte, o objeto da ação; (vii) não seria cabível medida liminar que concedesse a compensação de créditos tributários ou previdenciário; (viii) exigência de caução para a medida liminar seja cumprida; (ix) competia ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do recurso, suspender a execução de medida liminar nas ações contra o poder público ou seus agentes, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, (x) não cabia medida liminar para liberação alfandegária de bens vindos do exterior.

Em apertada síntese, as restrições à concessão de tutela de urgência eram amparadas na premissa de que as medidas liminares referentes ao pagamento de vantagens pecuniárias não poderiam ser deferidas, diante da falta de previsão orçamentária, podendo, em hipótese de generalização, causar sérios danos às finanças públicas com repercussões graves sobre os quadros econômico e social, assim como para assegurar o modelo constitucional do precatório, quando se trate de decisão que venha a compelir a fazenda pública a efetuar pagamento.

De um modo geral, o Supremo Tribunal Federal sempre considerou constitucionais as mencionadas restrições, com a ressalva de que o caso concreto poderia justificar a concessão liminar da providência de urgência, quando houvesse risco de perecimento do direito material. Trata-se de orientação jurisprudencial que, ao mesmo tempo, preservou os valores constitucionais do acesso à justiça, do devido processo lega, da higidez do sistema orçamentário, do regime do precatório e da sistemática da responsabilidade fiscal.

Por ocasião do julgamento da ADIN 223 perante o Pleno do STF, os Ministros Sepúlveda Pertence e Moreira Alves anotaram, respectivamente, que “(…) já se anotaram os precedentes brasileiros de vedação legal à concessão de liminar, sem resistência quanto à sua constitucionalidade”, e que “o proibir-se, em certos casos, por interesse público, a antecipação provisória da satisfação do direito material lesado ou ameaçado não exclui, evidentemente, da apreciação do poder judiciário, a lesão ou ameaça ao direito, pois ela se obtém normalmente na satisfação definitiva que é proporcionada pela ação principal, que, esta sim, não pode ser vedada para privar-se o lesado ou ameaçado de socorrer-se do poder judiciário”.

Ao final, o acórdão proferido na ADIN 223 consolidou o entendimento sobre a necessidade de controle da razoabilidade de leis restritivas ao poder cautelar do juiz, admitindo, todavia, condições e limitações legais a tal poder, e observando o risco a direitos à organização das finanças públicas e ao devido processo legal. Confira-se trecho da ementa:

“Sentido da inovadora alusão constitucional à plenitude da garantia da jurisdição contra a ameaça a direito: ênfase à função preventiva da jurisdição, na qual se insere a função cautelar e, quando necessário, o poder de cautela liminar. Implicações da plenitude da jurisdição cautelar, enquanto instrumento de proteção ao processo e de salvaguarda da plenitude das funções do Poder Judiciário. Admissibilidade, não obstante, de condições e limitações legais ao poder cautelar do Juiz. A tutela cautelar e o risco do constrangimento precipitado a direitos da parte contrária, com violação da garantia do devido processo legal. Consequente necessidade de controle da razoabilidade das leis restritivas ao poder cautelar. Antecedentes legislativos de vedação de liminares de determinado conteúdo. Critério de razoabilidade das restrições, a partir do caráter essencialmente provisório de todo provimento cautelar, liminar ou não. Generalidade, diversidade e imprecisão de limites do âmbito de vedação de liminar da MP 173, que, se lhe podem vir, a final, a comprometer a validade, dificultam demarcar, em tese, no juízo de delibação sobre o pedido de sua suspensão cautelar, até onde são razoáveis as proibições nela impostas, 39 enquanto contenção ao abuso do poder cautelar, e onde se inicia, inversamente, o abuso das limitações e a consequente afronta à plenitude da jurisdição ao Poder Judiciário” (RTJ 132/571-572).

Por ocasião do julgamento da ADC 4, seguindo a mesma orientação jurisprudencial o STF declarou a constitucionalidade da Lei 9.494/1997, a qual, em suma, estendia à tutela antecipada as restrições já existentes ao mandado de segurança. Confira-se trecho da ementa do referido acórdão:

“(…) IMPORTÂNCIA DO CONTROLE JURISDICIONAL DA RAZOABILIDADE DAS LEIS RESTRITIVAS DO PODER CAUTELAR DEFERIDO AOS JUÍZES E TRIBUNAIS – INOCORRÊNCIA DE QUALQUER OFENSA, POR PARTE DA LEI Nº 9.494/97 (ART. 1º), AOS POSTULADOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE – LEGITIMIDADE DAS RESTRIÇÕES ESTABELECIDAS EM REFERIDA NORMA LEGAL E JUSTIFICADAS POR RAZÕES DE INTERESSE PÚBLICO – AUSÊNCIA DE VULNERAÇÃO À PLENITUDE DA JURISDIÇÃO E À CLÁUSULA DE PROTEÇÃO JUDICIAL EFETIVA – GARANTIA DE PLENO ACESSO À JURISDIÇÃO DO ESTADO NÃO COMPROMETIDA PELA CLÁUSULA RESTRITIVA INSCRITA NO PRECEITO LEGAL DISCIPLINADOR DA TUTELA ANTECIPATÓRIA EM PROCESSOS CONTRA A FAZENDA PÚBLICA” (Pleno, ADC 4, rel. Min. Celso de Mello, j. 24.08.2001).

Na doutrina, houve manifestações em ambos os sentidos: ora admitindo-se que a legislação infraconstitucional poderia restringir a concessão de medida liminar, quando houvesse interesse público ligado ao Orçamento Público, dentre outros, destacam-se as lições de Celso Ribeiro Bastos (Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 197), Manoel Gonçalves Ferreira Filho (Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 245) e José da Afonso Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 410); ora, por sua vez, sustentando-se a inconstitucionalidade de tais restrições, destacando-se a lição clássica do professor Francisco Barros Dias, segundo a qual “Essa inconstitucionalidade compreende os textos de leis anteriores à vigência da atual constituição e os que vieram a ser editados após sua promulgação. Os primeiros, por serem incompatíveis com a nova ordem constitucional e, por isso, ser impossível aplicar o princípio da recepção; e os demais, por terem vindo ao mundo jurídico natimortos” (“Inconstitucionalidade das normas impeditivas de liminares”, Revista de Processo 59, p. 125-134).

As restrições anteriormente descritas foram incorporadas explícita ou implicitamente na Lei 12.016/2009, legislação de regência do mandado de segurança, o que motivou a propositura de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 4296) pelo Conselho Federal da OAB, em que foram impugnados os arts. 1º, 7º, III e §2º, 22, §2º, 23 e 25.

Em julgamento realizado em 09.06.2021, o Pleno do STF reviu a orientação jurisprudencial tradicional sobre a matéria, oportunidade em que declarou a inconstitucionalidade das normas constantes da Lei 12.016/2009 que restringiam a concessão de medida liminar, precisamente em relação ao art. 7º, §2º, assegurando-se, pois, a possibilidade de concessão de medida liminar que tenha por objeto a compensação de créditos tributários, a entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior, a reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza.

Declarou-se a inconstitucionalidade do art. 22, que prevê que a sentença no mandado de segurança coletivo fará coisa julgada limitadamente aos membros do grupo ou da categoria, oportunidade em que se prestigiou a tese fixada no Tema 1119, segundo a qual “é desnecessária a autorização expressa dos associados, a relação nominal destes, bem como de filiação prévia, para a cobrança de valores pretéritos de título judicial decorrente de mandado de segurança coletivo impetrado por entidade associativa de caráter civil”.

O Pleno do STF declarou, por sua vez, a constitucionalidade dos dispositivos legais que (i) faculta ao juiz exigir caução do impetrante para a execução da medida liminar, (ii) declara que não cabe mandado de segurança contra os atos de gestão comercial praticados pelos administradores de empresas públicas, de sociedade de economia mista e de concessionárias de serviço público, (iii) fixa o prazo decadencial de 120 (cento e vinte) dias para a impetração do mandado de segurança, e (iv) não são cabíveis mandado de segurança de sucumbência na via mandamental (súmula 512/STF).

A regulação da concessão de medida liminar, incluindo as restrições assentadas em razões constitucionais ligadas à higidez e eficácia do Orçamento Público e da Responsabilidade Fiscal, afigura-se abstratamente compatível com a Constituição Federal, eis que há outros valores constitucionais de igual ou maior densidade que interagem com o acesso ao Poder Judiciário, especialmente a higidez do Orçamento aprovado pelo Congresso Nacional, a responsabilidade fiscal e o regime do precatório requisitório para pagamento de dívidas da fazenda pública.

De outro lado, a proteção jurisdicional imediata, indispensável a situações jurídicas expostas a lesão atual ou potencial, não pode ser inviabilizada por ato normativo de caráter infraconstitucional que, restringindo gravemente o exercício liminar da tutela jurisdicional cautelar pelo Estado, enseja a aniquilação do próprio direito material, sob pena de esvaziar a própria utilidade e a eficácia da prestação jurisdicional, enfim, o acesso à ordem jurídica justa.

A orientação jurisprudencial tradicional e clássica do STF, à luz dos paradigmáticos votos dos Ministros Sepúlveda Pertente na ADIN 223 (RTJ 132, p. 587) e de Menezes Direito na ADC 4, foi de considerar compatíveis com a ordem constitucional as normas regulatórias das medidas liminares em mandado de segurança e na tutela antecipada, quando não envolvessem prejuízos ou riscos à proteção judicial efetiva, sem prejuízo de que o caso concreto, se envolvesse risco de perecimento do próprio direito material discutido em juízo, pudesse o juiz indicar a concessão da tutela de urgência.

Nada obstante o novo entendimento do STF, importa assinalar que o art. 15 da Lei 12.016/2009 não foi alvo de impugnação na ADI 4296, pelo que, em sede de juízo abstrato, ainda permanece válido o regramento segundo o qual “Quando, a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada ou do Ministério Público e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, o presidente do tribunal ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso suspender, em decisão fundamentada, a execução da liminar e da sentença, dessa decisão caberá agravo, sem efeito suspensivo, no prazo de 5 (cinco) dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte à sua interposição”. A propósito, o mencionado pedido de suspensão de execução de liminar e/ou de sentença em mandado de segurança, a par do mencionado preceito, consiste em incidente processual que ora permite análise de uma contracautela (SS 1393-SP-AgRg, rel. Min. Luiz Fux, e SS 846/DF-AgRg, rel. Min. Sepulveda Pertence), ora não cabe análise com profundidade e extensão da matéria de mérito, sendo um instrumento que viabiliza um juízo político e não jurídico propriamente dito (SS 1918/AgRg, rel. Min. Maurício Correa), de sorte que não tem natureza recursal ou meio de impugnação à decisão concessiva da liminar e/ou da sentença (Rcl 315, rel. Min. Néri da Silveira).

A rigor, os mesmos motivos que conduziram à decretação de inconstitucionalidade do art. 7º, §2º, – assegurando-se, pois, a possibilidade de concessão de medida liminar que tenha por objeto a compensação de créditos tributários, a entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior, a reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza – implicam, ou devem implicar, a decretação da inconstitucionalidade da regra prevista no ar. 15, na medida em que seria um verdadeiro paradoxo – para não dizer uma exegese totalmente incompatível com a noção de garantia constitucional – com a garantia do acesso substancial ao Poder Judiciário a possibilidade de, em sede de incidente processual, poder o presidente do tribunal suspender a execução de medida liminar, sem adentrar no reexame dos critérios jurídicos para a sua concessão. Concedida a providência liminar, à luz dos requisitos legais autorizativos, somente se permite a sua suspensão e/ou revogação, quando, num juízo de reexame, se constate que não mais existem os requisitos legais autorizativos.

Por conseguinte, no julgamento proferido pelo STF na ADI 4296, foi assentada, a par de uma técnica da proporcionalidade de valores constitucionais em tensão, a orientação de que a proteção jurisdicional imediata, indispensável a situações jurídicas expostas a lesão atual ou potencial, não pode ser inviabilizada por ato normativo de caráter infraconstitucional, nem mesmo quando há outros valores constitucionais em jogo, tais como regularidade do Orçamento e da Responsabilidade Fiscal. Pelos mesmos fundamentos, o juízo político de lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas não serve de fundamento para que não se conceda a medida liminar em mandado de segurança ou para que venha a justificar a suspensão da sua execução.

Mestre e Doutor pela PUC-SP. Professor da graduação e do Mestrado na UFRN. Advogado.

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