quinta-feira,28 março 2024
ColunaCivilista de PlantãoO regime jurídico dos contratos coligados

O regime jurídico dos contratos coligados

O modelo capitalista, voltado ao incremento das atividades econômicas e ao incentivo à sociedade de consumo, com a busca dos atributos da rapidez, da segurança e do crédito, propiciou o surgimento da celebração contratos interligados ou em rede vocacionados a uma unidade econômica comum.

Por exemplo, tornou-se comum a participação de agente financeiro para permitir o acesso ao crédito, gerando o adiantamento do valor necessário para a compra de bens, denominada de compra financiada de bens de consumo. Neste caso, o contrato de empréstimo é celebrado para a aquisição de um bem, de sorte que a unidade econômica comum dos contratos é a aquisição do bem em que o financiamento viabiliza a respectiva compra.

A rede de contratos ou a coligação contratual não constitui um único negócio jurídico com diversos instrumentos, mas uma pluralidade de negócios jurídicos vocacionados a uma finalidade econômica comum, e tem os atributos do propósito comum, da unidade da operação econômica e da pluralidade de relações contratuais interligadas sob uma perspectiva econômico-funcional, consoante manifestações na doutrina e na jurisprudência.

Os contratos individualmente considerados são autônomos, mas se ligam por uma relação de interdependência econômica em que um deles é o motivo do outro, de sorte que não há um contrato sem existir o outro, existindo uma unidade de interesse econômico (cf. Francisco Paulo de Crescenzo Marino. Contratos coligados no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 215-222), e neles há uma justaposição de modalidades diversas de contratos, de maneira que cada um destes mantém sua autonomia, preservando suas características próprias, haja vista que o objetivo da junção de tais contratos é possibilitar uma atividade econômica específica (REsp 1475477, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze). No âmbito da teoria geral dos contratos, entre os contratos coligados, tais como por exemplo compra e venda de bem de consumo e financiamento, não existe caráter de acessoriedade de que trata o art. 184 do Código, o que denota a autonomia entre os contratos coligados (AgInt no REsp 1.351.672, rel. Min. Raul de Araújo).

Por isso que já se decidiu que a rescisão do contrato de compra e venda, em razão de defeito no automóvel usado, não afeta o contrato de financiamento, de sorte que o banco não é devedor solidário perante o adquirente, salvo na hipótese em que a instituição financeira seja vinculada diretamente à revenda de veículo (“banco da montadora”). Sendo assim, não pode o banco financiador, que não é da própria montadora do veículo, responder por eventuais vícios ou defeitos no bem alienado (AgInt nos EDcl no REsp 1.292.147, rel. Min. Maria Isabel Gallotti).

Já se reconheceu a coligação contratual nas seguintes hipóteses: (i) compra e venda de bem com financiamento (REsp 1.406.245, rel. Min. Luis Felipe Salomão;  (ii) cisão de empresa, acordo de acionistas e contrato de locação (AgRg no REsp 1206723, rel. Min. Jorge Mussi); (iii) permuta de imóvel rural com arrendamento de gado (REsp 419362, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar; (iv) agência/distribuição com financiamento (REsp 985.531/SP, Min. Vasco Della Giustina); (v) compra e venda de imóveis vizinhos, em que um deles seria utilizado como área de estacionamento do outro (REsp 337040, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar); (vi) contrato de trabalho e de cessão de imagem (AgRg CC 69689, rel. Min. Luis Felipe Salomão); (vii)  agência/distribuição de combustíveis com locação de equipamentos (REsp 1475477, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze); (viii) abertura de crédito com contratos de swap (REsp 1.639.035, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino).

Por oportuno no cenário de interdependência econômica da coligação entre contratos, há negócios jurídicos que têm a mesma importância, e, de outro lado, há contratos que têm uma relação de dependência econômica frente ao outro.

Na lição de Ruy Rosado de Aguiar, “também aqui é possível que os figurantes fujam do figurino comum e enlacem diversas convenções singulares (ou simples) num vínculo de dependência, acessoriedade, subordinação ou causalidade, reunindo-as ou coligando-as de modo tal que as vicissitudes de um possam influir sobre o outro. Nos contratos coligados, a resolução de um atua sobre o outro, resolvendo-o. Para isso, é preciso verificar, em primeiro lugar, se um contrato está para o outro assim como o principal está para o acessório; nesse caso, o incumprimento da obrigação do contrato principal leva à sua resolução e, também, à do acessório. Se o descumprimento é deste, a resolução concomitante do principal somente ocorrerá se impossibilitada a sua prestação, ou tornada extremamente onerosa – a exigir sacrifício anormal e desproporcionado ao devedor -, ou se eliminado o interesse do credor. Se os contratos coligados tiverem a mesma importância, a resolução de um atingirá o outro, se demonstrado que um não teria sido firmado sem o outro (sinalagma genético), ou que a impossibilidade de um determina a do outro, ou que o incumprimento de um afeta o interesse que o credor poderia ter no cumprimento do outro (sinalagma funcional). Pode acontecer que a prestação onerosa assumida em um contrato seja correspondente à vantagem garantida em outro, de tal sorte que a falta de um poderá abalar o equilíbrio que o conjunto dos contratos garantia” (Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: AIDE Editora, 2004, p. 89-90). No mesmo sentido: MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo. Contratos coligados no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 99.

No REsp 1.127.403, o Min. Marco Buzzi assentou que “Evidencia-se um fenômeno de complexidade contratual, em incessante diálogo de interação, em que as normas dos contratos típicos não são capazes de fornecer respostas precisas, motivo pelo qual a interpretação contratual constitui premissa necessária para o reconhecimento da existência e para a determinação da intensidade da coligação contratual, que, ressalte-se, somente é possível ante as peculiaridades do caso concreto”.

Embora sejam autônomos e com características e regimes jurídicos próprios, revela-se inadmissível o exame estanque e individualizado de apenas um negócio jurídico no âmbito dos contratos coligados, quando todos estão unidos pela mesma finalidade econômica. Na doutrina e na jurisprudência, há a manifestação de que, embora autônomos cada um dos negócios jurídicos, os contratos coligados geram a mudança de paradigma na interpretação voltada à adoção de exegese que privilegie a visão em conjunto ou global com vistas à implementação da interdependência econômica entre os negócios jurídicos envolvidos.

Assim, à luz das lições doutrinária e da jurisprudência, verifica-se que a interpretação dos contratos coligados, embora haja a autonomia de cada um dos negócios jurídicos, conduz a uma exegese em conjunto das cláusulas contratuais, eis que muitas das cláusulas previstas em negócio jurídico somente poderão ter a sua exegese realizada a partir de elementos das demais cláusulas previstas em todos os contratos envolvidos na coligação.

Aos contratos coligados, dadas as suas especificidades teórica e prática e em função dos escopos jurídico-econômico, devem ser aplicadas as seguintes regras de exegese: (i) a invalidade da obrigação principal não apenas contamina o contrato acessório, mas se estende também aos contratos coligados, em que o vício na compra e venda atinge o financiamento (REsp 337040, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar); (ii) se os contratos coligados tiverem a mesma importância, a resolução de um atingirá o outro (REsp 1141985, rel. Min. Luis Felipe Salomão); (iii) a relação de interdependência entre os contratos permite a arguição da exceção de contrato não cumprido (REsp 985531, rel. Min. Vasco Della Giustina); (iv) nada obstante a interdependência econômica, fica mantida a autonomia do contrato para efeito de definição de regime jurídico aplicável (REsp 1475477, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze); (v) a cláusula de foro de eleição de um dos contratos se estende aos demais contratos coligados (AgInt no CC 174389, rel. Min. Antonio Carlos Ferreira); (vi) a ineficácia superveniente de um dos contratos não tem o condão de unificar os efeitos da responsabililização civil, eis que, mesmo interdependentes entre si, os contratos constituem negócios jurídicos com características próprias a ensejar interpretação e análise singular (REsp 1127403, rel. Min. Marco Buzzi); (vii) se a instituição financeira for vinculada à concessionária do veículo, haverá responsabilidade solidária do vendedor e do banco, por vícios ou defeitos do bem alienado (AgInt no REsp 1519556, rel. Min. Mauro Aurélio Bellizze); (viii) se houver a unidade de causa econômica, é irrelevante que um dos contratos seja subscrito por uma pessoa que não foi parte no outro contrato (REsp 1669229, rel. Min. Nancy Andrighi); (ix) a competência de juízo especializado para um dos contratos atrai a competência dos outros contratos coligados (CC 34504, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar).

Portanto, apesar de não perderem a sua individualidade e autonomia, os contratos coligados atraem a aplicação de novos parâmetros de exegese que levem em conta a eficácia em conjunto dos negócios jurídicos vocacionados à finalidade econômica comum, à luz dos postulados da boa-fé objetiva e da função social dos contratos.

 

Mestre e Doutor pela PUC-SP. Professor da graduação e do Mestrado na UFRN. Advogado.

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