sexta-feira,19 abril 2024
ColunaTrabalhista in focoO racismo recreativo e repercussões na justiça do trabalho

O racismo recreativo e repercussões na justiça do trabalho

Coordenação: Ana Claudia Martins Pantaleão

A prática do racismo é uma conduta violadora da dignidade humana, porém, infelizmente ainda é prática cotidiana no Brasil. Esse tema provoca inquietações, indignações e polêmicas, principalmente quando ocorre pela forma humorada, como ocorre no racismo recreativo.
Isto porque, culturalmente, tais práticas foram banalizadas ao longo do tempo, tornando-se algo imperceptível por quem pratica e traumatizante para quem é vítima. A banalização é consequência de longo período de escravidão, “bem como o extenso período que se seguiu em direção a trabalho livre, com a manutenção de políticas salariais restritivas e da superexploração, deixando marcas profundas em diversos aspectos da sociedade brasileira: raciais, culturais e políticas, de difícil superação, sem enfrentamento das desigualdades e da mudança de ótica quanto ao tema da valorização do trabalho humano” (ARRUDA, 2020).
Como o mundo do trabalho é dinâmico, as novas condutas empresariais devem estender olhares para as formas de racismo desde a contratação de trabalhadores até o contrato de trabalho firmado.
No processo seletivo de trabalhadores, por exemplo, há um estudo realizado por Luana Romani, em dissertação de mestrado, que constata o racismo estrutural nas seleções de trabalhadores realizadas pelo uso da inteligência artificial. Conforme a mestre, as máquinas são programadas por interação humana e reproduz comandos discriminatórios, excluindo trabalhadores pretos (ROMANI, 2022).
Além do momento da seleção de emprego, as empresas precisam ficar atentas durante o contrato de trabalho, porque o racismo pode ocorrer por diversas formas, uma delas, pelo chamado racismo recreativo.
É importante, ainda, que as empresas observem os movimentos de conscientização e as normas sobre discriminação, pois, aos poucos, essas questões estão desconstruindo essa prática e chegando nas pautas da Justiça, inclusive na esfera Trabalhista.
O propósito deste texto não é violar lugar de fala, mas apenas analisar a temática do racismo recreativo pela ótica do Direito do Trabalho com suas consequências jurídicas.
A finalidade é chegar o mais próximo da análise jurídica como a “Coruja de minerva”. Esta é citada por Hannah Arendt para explicar os ensinamentos de Friedrich Hegel. Arendt aduz que a Coruja de Minerva voa só no cair da tarde, quando uma forma de vida envelheceu. Segundo Hegel, a filosofia e o estudo é justamente elucidar o que não é claro ao senso comum, é alertar acerca da vida. O crepúsculo, que representa o ponto de equilíbrio entre o dia e a noite, é o linear do dia para a coruja, momento em que, enquanto todos encerram as obras e recolhem-se nos lares, tal ave alça seu voo a trabalho. Portanto, ela não se destaca pela beleza, mas pela capacidade de ver um lugar obscuro o que as demais aves não conseguem ver (HEGEL, citado por Hannah Arendt na obra Entre o passado e o futuro).
Nesse sentido, o tema “Racismo recreativo”, já foi uma inquietação e objeto de estudo por essa autora juntamente com o colega de mestrado, Paulo Fernandes (BEGA; FERNANDES, 2020). E, mais uma vez, reforça-se essa inquietação ao observar que o tema está sendo ventilado nas varas e tribunais trabalhistas.
O racismo recreativo é uma maneira de manifestação do racismo estrutural. Por isso, é importante compreender o conceito de racismo estrutural. Segundo Bersani: “corresponde a um sistema de opressão cuja ação transcende a mera formatação das instituições, eis que perpassa desde a apreensão estética até todo e qualquer espaço nos âmbitos público e privado, haja vista ser estruturante das relações sociais e, portanto, estar na configuração da sociedade, sendo por ela naturalizado” (BERSANI, 2020).
Já a expressão racismo recreativo é conceituada por Adílson Moreira: “Consiste em um projeto de dominação que procura promover a reprodução de relações assimétricas de poder entre grupos raciais por meio de uma política cultural baseada na utilização do humor como expressão e encobrimento de hostilidade racial” (MOREIRA, 2019).
Para MOREIRA, as manifestações explícitas do racismo, em geral, são reprovadas tanto no campo da moral, quanto no campo do direito. Diferentemente disso, o racismo recreativo atua de forma a reforçar estereótipos e estigmas, de maneira consciente ou inconsciente, de modo a depreciar as minorias raciais.
O racismo recreativo utiliza do humor, como no caso do uso de apelidos ou do contar piadas para reproduzir práticas discriminatórias, podendo se dar tanto na forma de agressões expressas, quanto na forma de microagressões veladas. Além disso, podem ocorrer nas várias espécies de relações sociais, inclusive nas relações de trabalho.
Para compreender a diferença entre racismo e sua espécie racismo recreativo, colaciona-se um exemplo de racismo do trecho de depoimento em audiência, mencionado em Acórdão do TRT da 2ª Região:
“que a reclamada implantou uma gestão empresarial por estresse e perseguição do supervisor, […] e sofria o autor “bullying” dos demais colegas que o acusavam injustamente de sabotar o cumprimento das metas de vendas e que sofreu injúria racial, sendo chamado pejorativamente de “escurinho” (“sic”), “negro” (“sic”), “macaco” (“sic”), inclusive em um episódio envolvendo um cliente que queria adentrar às dependências do estabelecimento após o horário de funcionamento e foi impedido pelo autor, em cumprimento das normas da empresa, sem qualquer respaldo ou apoio patronal no episódio, bem como sofria tais adjetivações na área de degustação”. (TRT 2º, 11ª Turma. RO 1000341-24.2020.5.02.0714, Rel. Ricardo Verta Luduvice. DJ 31 jan. 2022)
Esse exemplo demonstra claramente as ofensas de cunho racial, que extrapolaram o tom jocoso atingindo uma violência direta e humilhação explícita. Essa situação caracteriza o assédio moral na esfera jurídica trabalhistas. Este, segundo psiquiatra francesa Marie France Hirigoyen, referência no assunto, é definido como: “qualquer conduta abusiva que se manifesta especialmente por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam atingir a personalidade, a dignidade ou integridade física ou psicológica de uma pessoa e pôr em perigo o emprego desta ou degradar o clima de trabalho” (HIRIGOYEN, 2016).
No campo do Direito, tais formas de agressões possuem relevância e categorização, podendo se tratar de injúria racial, no direito penal ou como conduta discriminatória ou de assédio, no direito do trabalho.
No entanto, é importante observar que o racismo recreativo no meio ambiente do trabalho manifesta o argumento de permissibilidade em virtude do tom de “brincadeira”.
Isto porque, muitas discriminações revestidas de brincadeiras foram toleradas ao longo do tempo. Por isso, algumas pessoas não veem como injúria racial ou assédio, como se observa do trecho de testemunha transcrito em acórdão do TRT 15ª Região:
“2 -que o depoente presenciou o momento em que a funcionária R falou com o trabalhador que estava usando um celular; 3- que no momento seguinte o reclamante chamou a atenção de R por ela estar com óculos de segurança pendurado no rosto; 4 que R retrucou: “não estou falando com você, neguinho”, mas o depoente entende que isso foi dito em tom de brincadeira; 5 – que R costuma tratar por neguinho, de forma carinhosa, todos os trabalhadores que tem a pele um pouco escura; […] que o depoente e R voltaram ao trabalho, enquanto o reclamante dirigiu-se ao coordenador E; 8 – que algum tempo depois, E retornou com o reclamante e chamou R, e todos se retiraram do local e o depoente nada mais presenciou; 9 – que depois R comentou com o depoente que pediu desculpas ao reclamante e ambos, inclusive, apertaram-se as mãos.”(colocamos somente a primeira letra dos nomes das pessoas relatadas no depoimento dos autos – Proc. n. 0011762-41.2019.5.15.0022, TRT15, Rel. Dora Rossi Goes Sanches)

No tocante a conduta discriminatória, a prática do racismo recreativo no ambiente de trabalho, afronta a Convenção 111 da OIT, que trata sobre discriminação em matéria de emprego e profissão, ratificada e promulgada pelo Brasil, promulgada em 26 de novembro de 1966 e consolidada com demais Convenções por meio do Decreto n. 10.088 de 2019.
Além da Convenção referida, a recente Convenção 190 da OIT, não ratificada pelo Brasil, trata sobre o assédio moral e traz diversas definições sobre o tema do assédio e da violência no ambiente de trabalho.
Em que pese a Convenção 190 não ser ratificada, o assédio moral, também denominado Mobbing, gera consequências jurídicas no Brasil e é conceituado como: todos aqueles atos e comportamentos provindos do patrão, gerente ou superior hierárquico ou dos colegas, que traduzem uma atitude de contínua e extensiva perseguição que possa acarretar danos relevantes às condições físicas, psíquicas e morais da vítima (GUEDES, 2003).
Como as pessoas brancas ocupam a maioria dos cargos de poder, ainda há quem defenda a ideia de que é uma forma moralmente aceitável partindo do pressuposto que o povo brasileiro é cordial e que não vê maldade em tais práticas, pois são apenas uma brincadeira. (MOREIRA, 2019).
Contudo, o racismo recreativo é um método velado de racismo e a sua sutileza dá margem ao aumento da frequência dessa manifestação. Esse comportamento torna-se recorrente em piadas, representações racistas nos meios televisivos, filmes, redes sociais, tornando um humor perigoso, que fere a respeitabilidade social por meio da honra, acarretando violações que transcendem a dignidade humana.
O racismo recreativo é uma prática repudiada pela Constituição Federal e a sua ocorrência no meio ambiente do trabalho gera responsabilidades aos empregadores, que têm o dever de zelar pelo meio ambiente do trabalho íntegro e saudável, nos termos do artigo 7º, XXII, e 200, inciso VIII, da Constituição Federal.
Nessa linha analisa-se uma das primeiras decisões relacionadas ao tema da magistrada da 27ª Vara do Trabalho de São Paulo, Renata Bonfiglio, em 05 de maio de 2021. A decisão corresponde a ofensa racial ocorrida em reunião por videoconferência durante a pandemia, em que a supervisora da empregada proferiu a seguinte frase: “Estou com vontade de ver todo mundo e em breve irei marcar uma reunião para ver o rosto de todos. Quero ver se fulano cortou o cabelo e se R continua preta”.
No depoimento de uma testemunha informante da reclamada, desta decisão percebe-se claramente como se dá o racismo recreativo:

” abre a câmera, quero ver se você ainda está pretinha”; que tal fala foi feita num momento de descontração durante a reunião e na forma de brincadeira; que no dia seguinte a depoente ligou para reclamante após uma conversa via aplicativo semelhante ao whatsapp para tratar desta questão uma vez que a reclamante disse para a depoente via app que não havia gostado da brincadeira; que nesta conversa a depoente pediu desculpa e a conversa foi encerrada num tom amistoso; que já chegou a fazer brincadeira envolvendo a expressão cabelo da Etiópia; que faz tal tipo de brincadeira consigo própria pois também se considera negra; que sempre é brincalhona de modo geral; que apenas fez a brincadeira” (TRT 2, 27ª Vara do Trabalho de São Paulo. ATSum. 1000228-60.2021.5.2.0027, Id. c140ead)
Neste caso foi reconhecido o assédio moral por parte da supervisora condenação por danos morais em virtude do racismo recreativo deu ensejo a indenização por danos morais, decorrentes de racismo recreativo no importe de R$ 20.000,00.
Tal decisão sinaliza um novo paradigma da Justiça do Trabalho na questão da discriminação racial e traz um alerta para as empresas, para que promovam políticas empresariais antidiscriminatórias e de conscientização.
Lançar luzes sobre o racismo recreativo e a decisão envolvendo essa temática, ainda sobre o uso de inteligência artificial nas admissões, é uma forma de enxergar a efetividade da garantia da dignidade humana de quem é vítima dessa forma de assédio moral. Também é uma forma de as empresas reformularem suas políticas para evitarem futuras demandas e responsabilidades por reparação civil de danos causados por seus empregados e prepostos, nos termos do art. 932, III, do Código Civil.

REFERÊNCIAS:
ARRUDA, Kátia Magalhães. A persistência da cultura escravocrata nas relações de trabalho no Brasil. In ARRUDA, Kátia Magalhães [et. Al]. Direitos sociais contemporâneos. Brasília, DF: UDF: Zeni Impressos Digitais, 2020.
BEGA, Mariana Ferrucci; FERNANDES, Paulo Roberto. O racismo recreativo como forma de assédio moral no meio ambiente do trabalho: Reflexos na Indústria 4.0. In DE MELO, Raimundo Simão [et. Al.]. Meio ambiente do trabalho. 1 ed. Brasília, DF: UDF: Zeni Impressos Digitais, 2020.
BERSANI, Humberto. Racismo Estrutual e Direito à Desestratificação: um estudo a partir das relações de trabalho. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 62.

BRASIL. Decreto n. 847, de 11 outubro de 1890. Art. 399 do Código Penal e toda a forma de discriminação com a capoeira, jogo de cultura de afrodescendentes. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm . Acesso em: 07 de mar. 2022.

HIRIGOYEN, Marie France. Apud TORRES, Anália. (Coord.) Assédio Sexual e moral no local de trabalho. Lisboa: CITE, 2016
TRT 2, 27ª Vara do Trabalho de SP, ATsum 1000228-60.2021.5.02.0027. Disponível em: https://pje.trt2.jus.br/consultaprocessual/detalhe-processo/1000228-60.2021.5.02.0027/1#ea6c548 Acesso em: 27 set. 2022.
TRT 2º, 11ª Turma. RO 1000341-24.2020.5.02.0714, Rel. Ricardo Verta Luduvice. DJ 31 jan. 2022
TRT 15. 1ª Turma da 2ª Câmara do TRT 15. Proc. n. 0011762-41.2019.5.15.0022, TRT15, Rel. Dora Rossi Goes Sanches, DJ 30/06/2020
MOREIRA, Adílson. Racismo Recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. p. 148.
ROMANI, Luana da Silva. A não-admissão de trabalhadores negros pelo uso de inteligência artificial: contribuição para manutenção do racismo estrutural no Brasil. Orientador: Ricardo José M. de Britto Pereira. 2022. 123 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas. Centro Universitário do Distrito Federal – UDF, Brasilia/DF, 2022.

Advogada, pós-graduada em direito e processo do trabalho com formação para Magistério Superior. Pós-graduanda em Processos Brasileiros pela PUC-MG. Mestranda em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas no UDF.

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