quinta-feira,28 março 2024
ColunaDiálogos ConstitucionaisO que falta para o common law?

O que falta para o common law?

O Presidente do Supremo Tribunal Federal concedeu liminar no Habeas Corpus n. 135.752-PB declarando que “a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que ofende o princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF) a execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença condenatória”.

Ocorre que esta decisão vem poucos meses após a mesma corte haver decidido no Habeas Corpus n. 126.292 que é possível a prisão após decisão de segundo grau, ainda que antes do trânsito em julgado.

common law

Afinal, qual o papel de uma Corte Suprema? Esta resposta não é fácil, pois, trabalhamos no mundo processual com duas grandes famílias jurídicas: o civil law de tradição francesa e o common law de tradição inglesa.

Não se tratam de escolhas aleatórias de sistemas recursais, mas, sim de estruturas que se formaram historicamente a partir de grandes sobressaltos da civilização, o que envolveu guerras, declaração de direitos, movimentos separatistas.

Vou me limitar em recordar que o sistema de direito escrito nasceu com o paradigma da Revolução Francesa como necessidade de limitar os poderes do magistrado aristocrata nomeado pelo monarca.

Essa aristocracia judicial protegia os interesses dos nobres em detrimento da aplicação da legislação nova emitida pelo Parlamento, razão pela qual um dos objetivos revolucionários foi resumir a atuação do juiz em mera bouche de la loi (boca da lei).

Por outro lado, diferentemente ocorreu com a Inglaterra, na qual o juiz esteve ao lado do Parlamento na defesa de liberdades públicas contra a invasão do monarca, impondo a este a obediência à lei escrita.

Consolidou-se, com isso, a ideia de que judge make law, isto é, o juiz cria o direito, a Corte diz o que é o direito, a partir dos costumes e da necessidade da sociedade inglesa, consolidando-se.

Daí surgiu a necessidade de se conferir respeito a este precedente que não poderia ser devassado por lei posterior ou por qualquer outro juiz que pretendesse defender tese desfavorável ao entendimento consuetudinário.

Esta ferramenta é o que se conhece pela eficácia externa dos precedentes, consagrada no brocardo stare decisis et non quieta movere, ou seja, a decisão está posta e não pode ser alterada.

Alerto apenas que isso não ocorreu de um ano para o outro, mas, sim em séculos de desenvolvimento cultural, o que também aconteceu nos Estados Unidos, após a união das Treze Colônias Inglesas.

A Corte ficou encarregada de proteger os interesses coletivos contra as leis dos Estados-membros que gerassem discriminação entre os povos, com a política finalidade de proteger a integração da União recém-formada.

O papel de uma Corte Suprema não é apenas de dizer o direito, de criar um precedente, mas, há uma função política de direcionar o desenvolvimento da sociedade, indicar os rumos de trabalho jurídico e legislativo.

Todos os demais juízes e tribunais estão a ele (Supremo Tribunal) vinculado. Não é pouca a responsabilidade, e ela deve ser usada com parcimônia, discutida, sem ego nem vaidade.

O que vemos no Brasil é uma insegurança legal e jurídica: em meio ao infinitivo arcabouço de leis, regulamentos, decretos, portarias, mesclam as decisões divergentes, dando azo ao tratamento distinto de cidadãos na mesma condição.

Volto a falar do julgamento do Habeas Corpus n. 135.752-PB, pois, nele, além de o Presidente do STF divergir do recente julgado da corte em fevereiro, também mitigou a interpretação da Súmula 691 que dispõe “não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar”.

Mas, nesse caso não apenas o Presidente recebeu como também deu a liminar contrariando o recente julgado do Plenário da Corte Suprema.

Destaco que no julgamento de fevereiro quando a Corte estabeleceu a nova interpretação da presunção de inocência o Min. Lewandowski se dizia perplexo com a mudança de entendimento.

Tudo isso, no mesmo ano em que entrou em vigor o Novo Código de Processo Civil – Lei n. 13.105 de 2015 – que trouxe no seu art. 926 a necessidade de que o Tribunal mantenha a jurisprudência íntegra e estável.

Em nosso sistema a súmula fazia o papel de precedente com eficácia estável, isto é, a parcela da decisão que deveria ser respeitada pelos outros tribunais, que justamente corresponde ao que foi interpretado.

Nem súmula, vinculante ou não, resiste ao desapego que a Suprema Corte tem relevado em relação à estabilidade de seus julgados, fenômeno que também se verifica nas cortes inferiores.

Nosso sistema afirma que a súmula vincula e que a jurisprudência é estável, porém, nossos Ministros dizem o contrário com suas decisões, sem refletir sobre o impacto que essa divergência interna causa no nosso sistema.

Estamos longe de um sistema de precedentes, por duas razões: Culturalmente não estamos vocacionados em respeitar um entendimento e nossa Corte Suprema não dá exemplo de firmeza.

O STF tem se mostrado muito mais interessado com questões políticas do que em se manter como deve ser, o Guardião da Constituição e das instituições desta, entre todas, a segurança jurídica.

 


Bibliografia

ARGÜELLES, Juan Ramón de Páramo e ROIG, Francisco Javier Ansuátegui. Los derechos en la Revolución inglesa, in Historia de los derechos fundamentales, Tomo I: Transito a la modernidade, Siglos XVI y XVII . Madrid: Dykinson, 2003.

CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil, v. 2. São Paulo: Saraiva, 1969.

MARINONI, Luiz Guilherme. Aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law e a necessidade de respeito aos precedentes no Brasil. Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, n.49, p.11-58, 2009.

RUA, Julio Cueto. El Common law: su estrutura normativa su ensenanza. Buenos Aires: La Rey, 1957.

Cristiano Quinaia

Mestre em Direito - Sistema Constitucional de Garantia de Direitos (Centro Universitário de Bauru). Especialista LLM em Direito Civil e Processual Civil. Advogado.

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