O que aprendemos com Maria Laura

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Os estudantes de medicina têm seu primeiro contato regular com pacientes internados no curso de propedêutica clínica, conhecimento básico da disciplina.

Neste momento, aprendem a fazer a anamnese, produção de uma história a partir de uma entrevista estruturada, e a semiologia: reconhecimento de sinais e sintomas.

A partir da associação entre narrativa e observação surgem a quase totalidade dos diagnósticos, desde quando Hipócrates de Cós presenteou a humanidade com seu método clínico.

Os jovens ficam maravilhados ao vestirem a roupa de médico, algo inseguros, algo extasiados adentram as enfermarias.

Muitos deles têm convicção de que assim que dominarem a arte serão capazes de diagnósticos excepcionais, curas improváveis e, no limite, como Asclépio fazia, trazerem os mortos de volta à vida.

A paciente do dia, Laura Maria, de oitenta e quatro primaveras, sorri, apesar de algum desconforto respiratório causado pela pneumonia que exigiu internação, oxigênio suplementar e antibiótico endovenoso.

O diagnóstico não oferece desafio, mas um documento que a senhora porta, plastificado, muito bem cuidado, desperta a curiosidade e, eventualmente, a consternação dos presentes.

Ela faz questão de mostrar o seu testamento vital. Ali consta que ela não aceitaria em nenhuma hipótese ter sua vida prolongada por ventiladores mecânicos, alimentação artificial por sondas, não toleraria ser submetida a reanimação caso sofresse uma parada cardiorrespiratória, sua decisão está embasada na normativa ético-profissional vigente no país. Documento assinado e registrado em cartório.

Atônita, uma jovem estudante de vinte anos queria saber o porquê. Por que Maria Laura não aceitaria as intervenções que a medicina poderia oferecer para prolongar a vida?

Porque tudo o que começa um dia termina, e eu não quero terminar agonizando em máquinas. Eu sofro, quem cuida da gente sofre, os enfermeiros sofrem, por quê?

Autonomia. Primeiro princípio da bioética. Discutimos o caso em três aulas seguidas. Não precisa ter conclusão, mas é preciso partir do pressuposto que as pessoas podem decidir o que consideram mais adequado para o seu próprio cuidado. Podem viver em plenitude até o final de seus dias.

Hipócrates também nos ensinou em seus aforismos que sedar a dor é divino; que a arte é longa e a vida é breve; que a oportunidade é fugaz, a experiência é enganosa e o julgamento difícil.

Em tempo, Maria Laura teve alta com a pneumonia resolvida, não foram necessárias medidas extraordinárias e o seu testamento vital completará treze anos junto de seu octogésimo quinto aniversário.

Tudo o que começa um dia termina. Fim.

Esta reflexão foi publicada no Jornal Folha de SP pelo Médico infectologista Gerson Salvador e nos traz várias inquietações.

Uma delas está relacionada a formação dos futuros médicos que, desde os bancos do cursinho já têm em mente que serão dominadores da cura, ou como o próprio autor menciona em seu texto, “Muitos deles têm convicção de que assim que dominarem a arte serão capazes de diagnósticos excepcionais, curas improváveis e, no limite, como Asclépio fazia, trazerem os mortos de volta à vida.”

Nossos futuros médicos, ainda muito distantes do estudo da bioética e sua aplicabilidade, como no caso em vertente, o entendimento sobre a biografia do paciente e a sua importância para respeitar a sua autonomia, inclusive quando esta autonomia vem acompanhada de um documento, plastificado e muito bem cuidado.

O testamento Vital!

Aquele que existe para garantir que a morte será aceita com respeito, sem prolongamentos dificultando o encontro, sem manobras que privem o indivíduo de viver a dança da eternidade naturalmente, como deve ser.

Pois nada é imortal, tudo tem o seu começo e o seu fim!

Fonte do artigo: https://www1.folha.uol.com.br/blogs/linha-de-frente/2022/04/o-testamento-vital-de-maria-laura.shtml

 

 

 

 

Advogada e Professora. Mestranda em ciências da saúde e nutrição; Pós Graduada em Direito Médico e da Saúde; Pós Graduada em Direito Privado; Coautora de livro e autora de artigos.
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