quinta-feira,28 março 2024
ColunaCorporate LawO plano de reestruturação na recuperação judicial e a autonomia dos credores

O plano de reestruturação na recuperação judicial e a autonomia dos credores

É sabido que a Lei 11.101/05 é repleta de princípios explícitos e implícitos, destacando-se: preservação da empresa; separação de empresa e empresário; recuperação das sociedades viáveis e liquidação das não recuperáveis; proteção aos trabalhadores; celeridade e eficiência do processo; segurança jurídica, participação ativa dos credores; maximização dos ativos do falido; e desburocratização do micro e pequeno empresários.

A autonomia dos credores tem como premissa a ideia de que a recuperação visa ao soerguimento do devedor que, atravessando uma situação temporária de crise, visa à continuidade da atividade empresarial, gerando benefícios a toda a sociedade, especialmente aos credores.

Num regime constitucional pautado pela livre iniciativa, o regime jurídico da crise econômica do devedor empresário tem como uma de suas vertentes a previsão de mecanismos jurídicos voltados para a superação dos óbices, com vistas a prestigiar os princípios da função social da empresa e da autonomia dos credores. No curso regular da atividade empresarial, os credores não possuem qualquer poder de gestão ou de administração na atuação do empresário. Sobrevindo a hipótese de crise, a livre iniciativa assegura, entretanto, que os credores devam participar ativamente das medidas a serem adotadas para a viabilizar a continuidade da atividade empresarial.

A autonomia privada dos credores não é absoluta, mas é pautada e regulada por normas de ordem pública que visam à consecução de valores econômicos e sociais da preservação da empresa. A partir da ideia de que há um diálogo entre o devedor e os credores no processo de recuperação, afigura-se necessária a delimitação do princípio da autonomia dos credores em face da preservação da empresa. É clássico o exemplo de Mauá que tentou evitar a decretação da falência, mediante a obtenção de aprovação em assembleia de credores representativos de 2/3 dos créditos. Mas, não conseguiu a aprovação, nem obteve o reconhecimento judicial para flexibilizar as exigências formais (cf. Jorge Caldeira, Mauá, o empresário do império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 515).

Ajuizado o pedido inicial de recuperação instruído com os requisitos legais, o juiz defere o seu processamento, oportunidade em que nomeia administrador judicial, determina a expedição de edital para publicação e começa a fluir prazo de 60 dias para o devedor apresentar o plano de reestruturação o qual deve discriminar os meios de recuperação que serão adotados, e revelar a viabilidade econômica da atividade empresarial, mediante a apresentação de laudos econômico-financeiro e de avaliação dos bens do devedor. Há entendimento de que é dado ao juiz extinguir sem julgamento do mérito, por ilegitimidade ativa do devedor que não esteja em regular atividade (REsp 1478001/ES), ou de que, diante dos amplos poderes instrutórios, antes do recebimento da recuperação o juiz pode determinar a perícia prévia para auxiliá-lo na análise da documentação contábil (TJSP, AI 0194436-42.2012.8.26.0000). A realização de prova pericial prévia ao recebimento da inicial pode desvirtuar por completo a celeridade e a eficácia que a Lei 11.101/05 empresta à demanda de recuperação, além de representar uma subtração da competência de exame da viabilidade econômica da atividade do devedor que é legalmente deferida à assembleia de credores.

A partir de uma análise sistemática, a classe dos credores tem: atuação na assembleia de credores, ao qual compete aprovação, rejeição ou modificação do plano; no comitê de credores, cuja função básica é a fiscalização das atividades do devedor; e individualmente na liquidação de créditos. Há, pois, o reconhecimento de que a legislação de regência reserva um espaço próprio de atuação aos credores, deferindo-lhes autonomia privada para a tomada de decisões cruciais na recuperação em um cenário de negociações com o devedor.

É comum que surjam divergências entre a apresentação do plano e a sua deliberação pela assembleia geral de credores. As objeções ao plano devem ser examinadas pela assembleia de credores, sendo o órgão máximo para a tomada de decisões, especialmente no tocante à viabilidade econômica da empresa. Como um autêntico negócio jurídico plurilateral, a aprovação do plano manifestada pela assembleia de credores se submete aos pressupostos e aos requisitos exigidos pelo Código Civil para os atos jurídicos em geral, cujo controle de validade deve ser exercido pelo juiz. Ao magistrado é defeso o exame das deliberações que se refiram à viabilidade da atividade econômica (REsp 1314209/SP e REsp 1359311/SP). Confiram-se enunciados na I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal: “44 – a homologação de plano de recuperação judicial aprovado pelos credores está sujeita ao controle judicial da legalidade”, e “46 – Não compete ao juiz deixar de conceder a recuperação judicial ou homologar a extrajudicial com fundamento na análise econômico-financeira do plano de recuperação aprovado pelos credores”.

O plano de recuperação, quando aprovado pela assembleia de credores e homologado pelo juiz, representa uma autêntica novação, isto é, as obrigações pretéritas do devedor são formalmente extintas, mediante a criação de uma nova obrigação de acordo com o conteúdo aprovado pela assembleia de credores, submetida a uma condição resolutiva de serem cumpridos os seus termos. Não advindo a condição resolutiva, os credores terão reconstituídos seus direitos e garantias nas condições originalmente pactuadas.

A decisão tomada pela assembleia que prevê a extinção de garantias reais (hipoteca e alienação fiduciária) e fidejussórias (aval e fiança) é aplicável a todos os credores (REsp 1700487/MT). Discutem-se os efeitos da deliberação da assembleia de credores que resolve expressamente extinguir garantias em relação a terceiros coobrigados pela dívida. A deliberação alcança a todos os credores, mas a “a recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou co-obrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória” (Tema 885/STJ). De outro lado, em havendo novação da dívida pela aprovação do plano, com menção explícita à extinção das garantias, essa deliberação se aplica a todos os credores indistintamente e alcança os terceiros coobrigados (REsp 1700487-MT). Em princípio, a decretação da recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções, nem induz suspensão ou extinção das ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, não invadindo a esfera da competência do juízo universal (AgInt nos EDcl no CC 168181/RJ). Entretanto, se o plano de reestruturação contempla expressamente a extinção das garantias anteriormente constituídas, e há uma deliberação da assembleia de credores em aprová-lo, entende-se que se operam os efeitos da novação também em relação a terceiros coobrigados, com a ressalva da condição resolutiva do cumprimento dos seus termos (AgInt no AREsp 1358124/SE).

Com vistas aos objetivos coletivos da recuperação, a par do princípio da preservação da empresa, afastando-se de uma análise de interesse individual, entende-se que o plano de recuperação aprovado pela assembleia de credores produz efeitos sobre todos os credores, atingindo, inclusive, os eventuais credores que divergiram da deliberação e os que não se fizeram presentes na deliberação. O interesse coletivo na recuperação da empresa se sobrepõe ao interesse do credor individual, isso porque, se houvesse a subordinação do plano à anuência de cada um dos credores, muito provavelmente o plano da recuperação se inviabilizaria, tornando-o inócuo.

A assembleia de credores detém autonomia privada para definir o prazo de pagamento, o índice de atualização monetária, o percentual de juros de mora, a eventual remissão parcial da dívida e a criação de classes de credores, sendo vedado ao juiz adentrar na discussão da oportunidade e da conveniência do conteúdo econômico das cláusulas do plano de recuperação. Cumpridas as formalidades legais, o juiz é obrigado a conceder a recuperação judicial do devedor, quando o plano de recuperação tenha sido aprovado pela assembleia de credores. É defeso ao juiz examinar se a atividade econômica desempenhada pelo devedor é ou não passível de soerguimento, pois tal matéria compete à assembleia de credores (REsp 1631762/SP, AgInt no AREsp 1325791/RJ, e REsp 1700487/MT).

Um  dos  pontos   importantes  do  processo  de recuperação judicial  é  a suspensão das execuções contra a sociedade empresária que pede o benefício chamado stay period, funcionando como medida cautelar para tornar útil a negociação entre o devedor e seus credores, evitando  que se estabeleça  uma  verdadeira  corrida  entre  os  credores com o consequente risco de perecimento dos ativos operacionais da empresa. A medida cautelar de suspensão das execuções busca assegurar a utilidade e a eficácia da elaboração e aprovação do plano de recuperação judicial pelos credores ou, ainda, a paridade nas hipóteses em que o plano não alcance aprovação e seja decretada a quebra. Com a aprovação do plano de recuperação e a respectiva homologação pelo juiz, as execuções individuais movidas pelos credores, que estavam suspensas pelo prazo de 180 dias a partir do deferimento da recuperação judicial, devem ser extintas (AgInt no REsp 1367848/SP). Pelos mesmos motivos, deve haver a suspensão dos protestos e a inscrição tirados em face do devedor e a inscrição em cadastros restritivos (REsp 1.260.301-DF).

O deferimento do processamento da recuperação não tem o condão de suspender as execuções fiscais e trabalhistas, porém a satisfação de tais créditos a incidirem sobre bens do devedor deve se submeter ao crivo do Juízo da recuperação (CC 156263/SC). Verificada a insuficiência de outros bens passíveis de constrição, é permitida a penhora das quotas sociais pertencente a sócio por dívida particular por ele contraída, eis que não existe uma vedação expressa de penhora de quotas sociais de sociedade em recuperação judicial (REsp 1.803.250/SP). A penhora de bens de terceiros não viola o juízo atrativo da recuperação, a teor da súmula 480 do STJ: “o juízo da recuperação judicial não é competente para decidir sobre constrição de bens não abrangidos pelo plano de recuperação da empresa”.

Os atos expropriatórios, mesmo de créditos garantidos por alienação fiduciária, ficam submetidos ao crivo do juízo da recuperação, já que possui a melhor condição de avaliar se o bem gravado é ou não essencial à manutenção da atividade empresarial e, portanto, indispensável à realização do plano de recuperação judicial (AgInt no CC 161997/AL). Não se permite a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais à sua atividade empresarial, sob pena de se frustação dos fins do processo de recuperação (CC 146.631/MG).

Entende-se possível que a assembleia de credores venha a deliberar por introduzir modificações ao plano anteriormente aprovado ou até a instituir um novo plano de recuperação, por força dos princípios da preservação da empresa e da soberania da autonomia privada dos credores. Mesmo que a Lei de Recuperação estabelece o prazo de 2 anos para o devedor permanecer em recuperação, nada impede que o plano de recuperação contenha prazos superiores, o que é bastante comum na prática, para que as obrigações do devedor venham a ser cumpridas (REsp 1302735-SP).

O princípio da preservação da empresa e a teleologia da legislação de recuperação afastam a exigência de que o devedor porte certidões fiscais negativas como condição para a homologação do plano de recuperação (REsp 1719894), assim como repelem a exigência de quitação integral do débito de tributos federais (CTN, art. 191-A) como condição para a homologação da recuperação. A homologação do plano de recuperação não pressupõe decisão judicial sobre as impugnações ao crédito porventura existentes, sendo possível a correção do quadro geral de credores mesmo após a aprovação do plano de recuperação (REsp 1.371.427/RJ)

Há previsão no art. 58, §1º, da Lei de Recuperação para o juiz conceder a recuperação judicial contra decisão tomada pela assembleia de credores (cram down), quando houver voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes, a aprovação de 2 classes de credores ou, caso haja somente 2 classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 1, e na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 dos credores (REsp 1.314.209 e REsp. 1.359.311-SP). Registre-se que o inverso não é verdadeiro, isto é, o juiz não pode se recusar a homologar o plano, por razões de mérito de soerguimento da atividade, quando operada a sua aprovação pela assembleia de credores (REsp 1532943/MT e REsp 1.587.559/PR).

Registre-se a regra do art. 58, §1º, da Lei 11.101/05, deve ser compatibilizada com o princípio da função social da empresa, podendo ser concedido o cram down, mediante flexibilização da rigidez dos requisitos legais, eis que a interpretação deve atender, na medida do possível, a finalidade que fomenta a superação da crise da empresa e a preservação da empresa, privilegiando a empresa como unidade econômica de inegável interesses econômicos e sociais (REsp 1.187.404; TJSP, AI 0106661-86.2012.8.26.000). A relativização das exigências do cram down, consideradas as peculiaridades do caso concreto, vai ao encontro do princípio da preservação da empresa, sendo sintetizado no papel sócio-econômico que a empresa desempenha na geração de riquezas, tributos, recursos e promoção de empregos (TJSP, AI 461.740-4/4-00).

A par de uma interpretação restritiva, há a previsão no art. 73 da Lei de Recuperação de 4 hipóteses que geram a convolação da recuperação judicial em falência, a saber: decisão sobre a inviabilidade da recuperação do devedor; rejeição do plano de reestruturação pela assembleia de credores; descumprimento do ônus de apresentar o plano de reestruturação no prazo legal; e descumprimento da obrigação imposta pelo plano de recuperação (REsp 1.587.559/PR e REsp 1751300/SP).

Dentro do conceito dos requisitos de validade da manifestação de vontade, entende-se que é lícito ao juiz examinar se o exercício do direito de voto por credor pode ser reputado abusivo, por violação aos postulados da boa-fé e da função social da empresa. A abusividade do exercício do direito deve ser examinada casuisticamente, levando-se em consideração os valores econômico-sociais que envolvem a recuperação do devedor que se encontra em situação passageira de dificuldade, conforme enunciado 45 da I Jornada de Direito Comercial: “o magistrado pode desconsiderar o voto de credores ou a manifestação de vontade do devedor, em razão de abuso de direito”. Já se reconheceu o exercício abusivo do voto por credor real, considerando o seu posicionamento insusceptível de flexibilização quanto às condições de pagamento dos seus créditos, em descompasso com o interesse tanto da comunhão de credores, como dos credores individualmente considerados (TJSP, AI 649.192-4/2-00 e AI 0106661-86.2012.8.260000; TJRS, AI 70062404595; TJRS, AI 70074642323; TJRJ, AI 0037321-84.2011.9.19.0000). Deve ser ressalvado que a Lei de Recuperação não exige do credor a exposição de justificativa para a rejeição do plano, eis que em tese dispõe de liberdade de aprovar ou rejeitar a proposta (TJSP, AI 2158969-94.2014.8.26.0000).

Contra a decisão que aprecia o pedido de recuperação judicial, é cabível a interposição de agravo de instrumento pelo credor e pelo Ministério Público, ressalvando-se que compete ao Poder Judiciário o exame dos requisitos formais da deliberação tomada pela assembleia de credores (desatendimento das normas legais sobe convocação, instalação da assembleia e quórum de deliberação), o que impede a discussão de teses acerca do mérito do plano de recuperação (REsp 1539445/SP).

Portanto, percebe-se a importância não apenas do plano de recuperação, como sobretudo a necessidade da participação dos credores na assembleia, a fim de assegurar que, diante de uma situação momentânea de dificuldade econômico-financeira, o direito deve conceder ao devedor meios jurídicos adequados e eficientes para, mediante cooperação e colaboração de todos os atores do mercado, permitir a continuidade das atividades econômicas viáveis com o propósito de permitir o seu soerguimento.

Mestre e Doutor pela PUC-SP. Professor da graduação e do Mestrado na UFRN. Advogado.

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