quinta-feira,28 março 2024
ColunaDiálogos ConstitucionaisO meio ambiente como o conhecemos depois da decisão do STF

O meio ambiente como o conhecemos depois da decisão do STF

O direito ao meio ambiente equilibrado e saudável é direito fundamental social de 2ª geração, logo, usufrui (ou deveria usufruir) de certas prerrogativas dentro do sistema jurídico brasileiro o que, infelizmente, não ocorreu.

Quando inserido no rol de direitos e garantias fundamentais, um direito passa a ter um privilégio de não ser objeto de abolição pelos poderes e, de igual modo, aplicar-lhe a regra interpretativa de que há vedação ao retrocesso.

A sociedade evolui dia após dia, mês, anos, décadas, cada localidade e seu povo possuem uma tecnologia própria empregada e aplicada ao meio ambiente com o fim de nele e dele extrair o necessário para o seu sustento e evolução de sua riqueza.

Vale a máxima de que na natureza nada se cria ou se destrói, mas tudo se transforma.

É dizer, para ter o metal o homem extraiu da natureza. Para o ouro o minério. Para o vidro a sílica. Para o tijolo a argila. Para o fogo o oxigênio. Para a borracha o látex. Os exemplos são indefinidos.

Se a tecnologia de transmissão de rede e telecomunicação avança é porque também evoluiu a capacidade de o homem transformar a borracha, o metal e o ouro, este último, o maior condutor elétrico.

Este equilíbrio é imprevisível e incompreendido. Ulrich Beck em sua pioneira obra sobre a pós-modernidade e seus impactos no equilíbrio homem/meio estabelece que o grande paradigma atual é a autocontenção.

O capitalismo e o poder colocam em terra a noção de equilibrar-se com o meio, sempre buscando uma produção incansável, inalcançável, superando limites diários, mensais e anuais, rompendo obstáculos como tempo e espaço.

Se antes a produção era concentrada, agora é possível movê-la por avião, veículos e navios, de tal sorte que a ânsia impossibilidade o diálogo sobre os limites à produção em razão do prejuízo causado ao meio.

O meio ambiente não é problema atual, nem foi passado, e continuará a ser preocupação no futuro porque implica na qualidade de vida do homem e, se os humanos adoecem, também o capitalismo é implicado com a obrigação de fornecer tratamento médico e medicamentoso.

Ou seja, sempre haverá custo.

Com efeito, no âmbito da Organização das Nações Unidas, mirando o capitalismo global sem fronteiras e a necessidade de impor regras ao extrativismo do meio ambiente, a Conferência de Estocolmo fixou os seguintes baluartes:

 

Princípio 1

O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de

condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras. A este respeito, as políticas que promovem ou perpetuam o apartheid, a segregação racial, a discriminação, a opressão colonial e outras formas de opressão e de dominação estrangeira são condenadas e devem ser eliminadas.

 Princípio 2

Os recursos naturais da terra incluídos o ar, a água, a terra, a flora e a fauna e especialmente amostras representativas dos ecossistemas naturais devem ser preservados em benefício das gerações presentes e futuras, mediante uma cuidadosa planificação ou ordenamento. […]

 Princípio 5

Os recursos não renováveis da terra devem empregar-se de forma que se evite o perigo de seu futuro esgotamento e se assegure que toda a humanidade compartilhe dos benefícios de sua utilização.

Esses dispositivos consagram o que se entende por conteúdo intergeracional da proteção do direito ao meio ambiente como regra que impõe o não esgotamento das políticas atuais em prol da geração futura e em continuidade à geração anterior.

O próprio jurista e Ministro do Supremo Tribunal Federal explica que a proibição do retrocesso:

Por este princípio, que não é expresso, mas decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser arbitrariamente suprimido. Nessa ordem de ideias, uma lei posterior não pode extinguir um direito ou garantia, especialmente os de cunho social, sob pena de promover um retrocesso, abolindo um direito fundado na Constituição (BARROSO, Luis Roberto Direito Constitucional e a efetividade das normas. 5. ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2001. p. 158-159).

Partindo disso, ao reconhecer como constitucional a regra trazida pelo Código Florestal no sentido de possibilitar o rearranjo da área de reserva legal o Supremo Tribunal Federal enfraqueceu a tutela legal prestada ao amparo do meio ambiente.

Primeiro porque tornou vintenária a obrigação de recomposição, desconsiderando o que houve, ou seja, o proprietário não responde pelos atos passados, apenas pela obrigação de recompor em duas décadas uma situação que, em 2008, já era precária.

Em segundo lugar porque o legislador – agora sufragado pela Suprema Corte – ora reza que a reserva legal serve à preservação da biodiversidade (art. 3º, III) – ora que pode ser compensada em 20 anos e ter sua área explorada economicamente (art. 66, § 4º).

Como se preserva o bioma recompondo-o e explorando-o simultaneamente? Fica clara que a opção da lei e do STF foi de privilegiar a exploração pelo capital além do que a legislação anterior possibilitava, retirando da reserva legal o seu caráter absoluto que até então possuía.

O Código Florestal também trouxe um conceito nada agradável: CRA – cadastro reserva ambiental que, na prática, é um cartão de crédito de área ambiental que um proprietário pode se valer que, de acordo com a Lei:

Art. 46.  Cada CRA corresponderá a 1 (um) hectare:

I – de área com vegetação nativa primária ou com vegetação secundária em qualquer estágio de regeneração ou recomposição;

II – de áreas de recomposição mediante reflorestamento com espécies nativas.

A área de reserva legal ambiental torna-se, então, um instrumento comercial que pode ser objeto de cessão para proteger os proprietários que descumprem as regras de proteção anteriormente insculpidas.

O problema é que a lei se utiliza de conceito aberto possibilitando que a compensação se opere entre reservas legais de mesmo bioma (art. 48, § 2º), sendo que o STF entendeu que o bioma da lei deve ser entendido como área com identidade ecológica.

Na prática ocorrerá o escambo ambiental entre proprietários de diferentes municípios e Estados, quiçá, cedendo entre si direitos de uso do CRA em substituição ao dever individual de cada qual conservar sua área de proteção.

Se isso não é retrocesso, não se o que será.

Devo lembrar aos amigos e leitores que questão similar ocorreu com a eliminação dos gases de efeito estufa, a partir do Protocolo de Kyoto as nações se obrigaram em reduzir as emissões e, para não paralisar o avanço do capital, criaram a compra de crédito de carbono de países menos desenvolvidos e industrializados.

Com o crédito de carbono outorgou-se o direito de poluir e com o crédito de reserva legal homologa-se agora o direito de desmatar.

Cristiano Quinaia

Mestre em Direito - Sistema Constitucional de Garantia de Direitos (Centro Universitário de Bauru). Especialista LLM em Direito Civil e Processual Civil. Advogado.

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