quinta-feira,28 março 2024
ArtigosO intervalo intrajornada mantém sua natureza salarial após a reforma trabalhista?

O intervalo intrajornada mantém sua natureza salarial após a reforma trabalhista?

Por Renato da Fonseca Janon*

 

A interpretação literal do atual art.71, §4, da CLT, com a nova redação da lei 13.467/2017, poderia induzir à conclusão de que, após a “reforma trabalhista”, o  intervalo intrajornada não concedido passaria a ser pago somente de forma parcial, correspondendo ao tempo suprimido, e, ainda assim, a título indenizatório, contrariando  o que, até então, era estabelecido na Súmula 437/TST.

Todavia, essa leitura superficial não resiste a uma interpretação sistemática que leve em conta o controle de convencionalidade, a ponderação das consequências sociais e a natureza ontológica do instituto, como tentaremos demonstrar a seguir.

De início, observo que a nova redação do art.71, §4, CLT conferida pela lei no. 13467/2017 não se coaduna com os artigos 4o. e 5o da Convenção no. 155 da OIT e com o artigo 7º, inciso XXII, da Carta Magna, que assegura, como direito fundamental dos trabalhadores, “a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”.

O Brasil integra a Organização Internacional do Trabalho – OIT -, cuja Convenção de nº 155, que trata sobre a segurança e a saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho, foi promulgada pelo decreto 1.254/94, em consonância com o disposto no art. 5o, inciso II, da Constituição Federal: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

Referida Convenção tem CARÁTER SUPRALEGAL, estando acima da lei ordinária (vide Súmula Vinculante no. 25/STF), e assim estabelece em seus artigos 4º e 5º:

“Artigo 4

  1. Todo Membro deverá, em consulta às organizações mais representativas de empregadores e de trabalhadores, e levando em conta as condições e a prática nacionais, formular, por em prática e reexaminar periodicamente uma política nacional coerente em matéria de segurança e saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho.
  2. Essa política terá como objetivo prevenir os acidentes e os danos à saúde que forem consequência do trabalho, tenham relação com a atividade de trabalho, ou se apresentarem durante o trabalho, reduzindo ao mínimo, na medida que for razoável e possível, as causas dos riscos inerentes ao meio ambiente de trabalho.

 

Artigo 5

A política à qual se faz referência no artigo 4 da presente Convenção deverá levar em consideração as grandes esferas de ação que se seguem, na medida em que possam afetar a segurança e a saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho:

(…)

  1. b) relações existentes entre os componentes materiais do trabalho e as pessoas que o executam ou supervisionam, e adaptação do maquinário, dos equipamentos, do tempo de trabalho, da organização do trabalho e das operações e processos às capacidades físicas e mentais dos trabalhadores;”

 

Portanto, a Convenção 155 da OIT, devidamente incorporada ao ordenamento jurídico nacional, prevê, nos artigos supracitados, de forma expressa, que o “tempo de trabalho” deve integrar uma política nacional coerente em matéria de segurança e saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho. Daí exsurge a ineficácia do disposto nos artigos 71, §4o, da CLT e 611-B, inciso XVII e parágrafo único, da CLT- “Regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins do disposto neste artigo.”

 

Em sendo o “tempo de trabalho” matéria inerente à saúde e a segurança dos trabalhadores (art.5o, alínea “b”, da Convenção no. 155 da OIT), não é possível se considerar válido um preceito de hierarquia inferior (art.71,§4º, da CLT) que, ao reduzir o período a ser pago e mudar sua natureza para indenizatória, acaba por estimular o descumprimento da pausa mínima prevista em Lei, haja vista se tratar de norma de ordem pública que tem por objetivo preservar a integridade física dos empregados e evitar a ocorrência de doenças e acidentes no ambiente de trabalho, o que, aliás, é do interesse do próprio empregador.

O segundo argumento consiste em examinar as CONSEQUÊNCIAS práticas da supressão do intervalo intrajornada. É de conhecimento elementar que as jornadas exaustivas, sem pausas adequadas, constituem um dos princípios fatores de risco para desencadear acidentes ou doenças ocupacionais. Nesse diapasão ressoa a doutrina de Homero Batista Mateus da Silva:

“O intervalo para refeição e descanso, delineado pelo extenso art. 71 da CLT, corresponde a uma das mais importantes medidas de prevenção à fadiga e à exaustão do trabalhador, inserindo-se seu estudo diretamente no conceito mais amplo de segurança e medicina do trabalho. (…). Desnecessário grande esforço para observar que na quase totalidade das profissões o rendimento do trabalhador decresce ao longo da jornada e, se não efetuada nenhuma pausa para a refeição ou o repouso, o esforço concentrado é praticamente perdido. Nem se faz necessário que o trabalho seja braçal para se imaginarem as tonturas e os desequilíbrios que afligirão o trabalhador privado de alimentação”.[1]

Destarte, a discussão sobre a natureza do intervalo intrajornada não é apenas uma questão patrimonial ou contratual, mas sim um grave problema de saúde pública, na medida em que a supressão das pausas aumenta, exponencialmente, o risco de de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais, colocando em perigo não apenas a saúde e a vida do trabalhador, mas também a própria viabilidade do sistema público de atendimento médico-hospitalar e a sustentabilidade atuarial do regime previdenciário.

De acordo com números publicados pela FUNDACENTRO, a partir do Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho, de 2012 a 2018, o Brasil registrou 16.455 mortes e 4.5 milhões (quatro milhões e quinhentos mil) acidentes. No mesmo período, gastos da Previdência com Benefícios Acidentários corresponderam a R$ 79 bilhões – isso mesmo, setenta e nove bilhões! Foram perdidos 351.7 milhões de dias de trabalho com afastamentos previdenciários e acidentários [2].

Esse é um problema gravíssimo. O Brasil registra um acidente de trabalho a cada 40 segundos e uma morte por acidente de trabalho a cada 3 horas e 40 minutos. Em um exercício socrático, convém indagar: quem se preocupará em conceder pausas preventivas ou os intervalos mínimos para refeição se, ao invés de garantir essa pausa, puder pagar somente o tempo faltante e, ainda assim, como mera indenização, sem qualquer reflexo?

Por fim, há, ainda, uma QUESTÃO ONTOLÓGICA. O pagamento pelo intervalo suprimido tem nítido caráter de CONTRAPRESTAÇÃO, na medida em que, se não houve o efetivo descanso e o empregado permaneceu à disposição do empregador, considera-se como tempo de trabalho – art.4o da CLT. Logo, não há como se chamar de “indenização” uma verba que que tem indiscutível natureza salarial ou remuneratória. Não é porque eu chamo um gato de cachorro que ele irá latir.  Se o bichano tem pelo, tem garras, tem cauda e, ainda por cima, mia, ele continuará sendo um “gato” mesmo que eu o chame de cachorro ou de camelo. Chame-se do que quiser esse animal será sempre um felino. Não se pode mudar a natureza ontológica do ser.

Em outras palavras, não é o nome que define a natureza dos seres – ou dos institutos. Se o pagamento tem natureza de contraprestação pelo tempo à disposição do empregador, ele jamais poderá ser uma indenização, a menos que se queira admitir o terraplanismo jurídico, contrariando todos os postulados científicos que embasam o Direito do Trabalho. Esse pagamento será sempre de caráter remuneratório ou salarial pelas suas próprias características imanentes, independentemente da nomenclatura que se queira lhe atribuir. Pode chamar do que quiser. Continuará sendo remuneração.

Reforçando o caráter intrinsecamente salarial dessa verba (independentemente do nome pelo qual se queira chamá-la), o STJ, em decisão proferida no dia 14 de janeiro de 2019 (portanto, mais de 01 ano depois da lei 13.467/2017 entrar em vigor), reconheceu, na lavra do Ministro Francisco Falcão, que “incide contribuição previdenciária e imposto de renda sobre a verba relacionada à supressão da hora repouso alimentação – HRA, paga como retribuição pela hora em que o empregado fica à disposição do empregador, tendo em vista sua natureza eminentemente salarial.” (Recurso especial no  1.727.114 – BA 2018/0046038-0)

Naquela decisão, o Superior Tribunal de Justiça evocou reiterada jurisprudência sobre o tema, citando, por exemplo, o v. acórdão:

 

III. Na esteira do entendimento firmado na Segunda Turma do STJ, “a ‘Hora Repouso Alimentação – HRA’ […] é paga como única e direta retribuição pela hora em que o empregado fica à disposição do empregador”, configurando, assim “retribuição pelo trabalho ou pelo tempo à disposição da empresa e se submete à contribuição previdenciária, nos termos do art. 28 da Lei 8.212/1991” (STJ, EDcl no REsp 1.157.849/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 26/05/2011). No mesmo sentido: AgRg no REsp 1.536.286/BA, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe de 22/10/2015;

 

Ora, se a 2ª Turma do STJ entende que o intervalo intrajornada (ou “hora-refeição”) tem natureza salarial para fins tributários (para incidência de imposto de renda e de contribuição previdenciária), seria uma contradição sistêmica concluirmos que essa parcela é indenizatória somente para fins trabalhistas. Afinal, um dos postulados elementares da lógica clássica é o princípio aristotélico da “não- contradição”, ou seja, uma coisa não pode ser e deixar de ser ao mesmo tempo. Dizer que a parcela tem caráter salarial para o Estado e indenizatório para o cidadão é uma incoerência.

Por conseguinte, concluo que, mesmo após 11.11.2017, a despeito da literalidade da nova redação do art.71, §4o, da CLT, o intervalo intrajornada, quando desrespeitado, deve continuar sendo pago de forma integral.

 

 

[1]  Homero Batista Mateus da Silva – Curso de Direito do Trabalho Aplicado. Vol. 02. Jornadas e Pausas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 147.

[2]    http://www.fundacentro.gov.br/noticias/detalhe-da-noticia/2019/4/acoes-regressivas-gestao-de-riscos-e-impacto-dos-acidentes-de-trabalho-foram-temas-de-debate – em 11.02.2020.

 

*Renato da Fonseca Janon , colaborou com nosso site por meio de publicação de conteúdo. Ele é Juiz Titular da 1º Vara do Trabalho de Lençóis Paulista/SP.

 

 

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