quinta-feira,18 abril 2024
ArtigosO estupro, o aborto e a mentira

O estupro, o aborto e a mentira

1-A NARRATIVA INICIAL
Por toda a grande mídia e redes sociais foi reverberado que uma menina de 11 anos teria sido vítima de estupro por um adulto e ficado grávida. A gravidez estaria já avançada (7 meses) e os representantes legais da menor pretenderiam realizar, mediante ordem judicial, um aborto devido à prenhez ser resultado de estupro.

A narrativa pretendia esboçar um quadro de violência sexual contra uma criança do sexo feminino e fundamentar a prática abortiva no disposto no artigo 128, II, CP.

Uma juíza de direito agiu com cautela e estudava o caso, bem como procurava conceder a devida proteção integral à criança, sendo alvo dos costumeiros ataques destrutivos de reputação, como se fosse uma torturadora.

Com o afastamento da juíza do caso devido a uma promoção administrativa, rapidamente e com base na narrativa acima mencionada, foi perpetrada a morte da criança nascitura.

2-A VERDADE OCULTA
Acontece que, na realidade, não se tratava de uma criança de 11 anos que teria sido estuprada violentamente por um adulto e engravidado.

Apurou-se que a menina de 11 anos manteve relações sexuais consensuais com um namorado de 13 anos e foi disso que resultou a gravidez enfocada. A própria família dos menores sabia do relacionamento.

O quadro inicial pintado com cores dramáticas não passava de uma farsa sórdida para fins ideológico – midiáticos.

3-ESTUPRO DE VULNERÁVEL?
É sabido que manter conjunção carnal com pessoa menor de 14 anos, ainda que de forma consensual, configura o crime de “Estupro de Vulnerável”, conforme artigo 217 – A, CP.
O caso concreto, porém, tem suas especificidades.

Em primeiro lugar foram condutas praticadas por uma criança (menina de 11 anos) e um adolescente (menino de 13 anos), de forma que se trata de um “Ato Infracional” assimilado a “Estupro de Vulnerável” (inteligência dos artigos 1º. e 2º. c/c 103 a 105 da Lei 8.069/90 – ECA).

Seja como for, a terminologia do Estatuto da Criança e do Adolescente não passa de um recurso eufemístico, de maneira que o que aconteceu entre os menores foi o que a doutrina veio a chamar de “Estupro Bilateral”. Significa dizer que a menina manteve conjunção carnal com um menino de 13 anos (menor de 14) e, portanto, cometeu contra ele “Estupro de Vulnerável” na forma de “Ato Infracional”. Doutra banda, o menino, concomitantemente, praticou conjunção carnal com uma menina de 11 anos (também menor de 14), cometendo, assim, contra ela, o mesmo delito de “Estupro de Vulnerável” na forma de “Ato Infracional”.

O absurdo da situação é nítido. Ambos estariam estuprando e sendo estuprados ao mesmo tempo! Abusando e sendo abusados sexualmente de forma cruzada!

Os exemplos poderiam se multiplicar e demonstrariam o contrassenso ou a falta de bom senso de certas responsabilizações infracionais acaso a legislação seja aplicada de forma inflexível. Nas palavras de João Batista Costa Saraiva: “em matéria de relacionamento sexual entre adolescentes, a regra do artigo 217 – A, CP exagera em face da realidade do país e de nossa adolescência, podendo criminalizar a conduta de muitos adolescentes e pré – adolescentes na descoberta de sua sexualidade”. Portanto, urge encontrar uma fórmula capaz de domesticar o excessivo rigor do artigo 217 – A, CP acaso aplicado “dura lex sed lex” para certas situações de supostos atos infracionais que envolvam atos libidinosos consensuais perpetrados entre crianças e/ou adolescentes de idades próximas ou idênticas, normalmente envolvidos em relacionamentos amorosos.

É bem verdade que a legislação em si não apresenta uma solução adequada para tais circunstâncias. No entanto, é possível encontrar na legislação comparada um caminho de abrandamento do rigor legal bem lembrado por João Batista Costa Saraiva em artigo publicado pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. O referido autor apresenta o precedente da Suprema Corte do Estado da Geórgia, aplicando a chamada “Romeo and Juliet Law”. Ocorre que nos Estados Unidos da América do Norte, em vários Estados, o sexo consentido entre menores de 18 anos é criminalizado. No entanto, com o tempo se verificou que a aplicação pura e simples da norma sobredita conduzia a exageros punitivos, razão pela qual se editou uma legislação visando conter o furor da irracionalidade penal. Tal lei, apelidada de “Romeo and Juliet Law”, afasta a criminalização em todos os casos nos quais os envolvidos não tenham uma diferença de idade superior a cinco anos. Este parâmetro ofertado pela legislação e jurisprudência alienígenas certamente pode servir de base para uma orientação dos operadores do direito na aplicação comedida da regra penal contida no artigo 217-A, CP quando envolva sexo consensual entre menores.

No ECA para casos assim controversos, há a possibilidade de que o Ministério Público conceda a “remissão” como forma de “exclusão do processo”, “atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social” e outros fatores (inteligência do artigo 126, da Lei 8.069/90).

Pode-se dizer que no caso enfocado em que a menina de 11 anos mantem relações sexuais consensuais com seu namorado de 13 anos estamos diante de uma situação na qual seria cabível a opção da remissão a ambos os envolvidos e o afastamento da configuração do “Ato Infracional” assimilado a “Estupro de Vulnerável”, considerando que a tipicidade é meramente formal, não atingindo a necessária lesividade material de qualquer bem jurídico em tutela. Enfim, a conduta, tanto da garota, como do namorado é, ao fim e ao cabo, materialmente atípica. O que equivale a afirmar que, na realidade, não houve estupro algum. E se não houve estupro de qualquer espécie, não há espaço para a prática abortiva supostamente fundada no artigo 128, II, CP.

4-ABORTO E ESTUPRADORA
Embora não se considere que na verdade ocorreu, para além do campo meramente formal, um “Estupro de Vulnerável” como modalidade de “Ato Infracional” no caso em estudo, apenas “ad argumentandum tantum”, se considerarmos válida apenas a tipicidade formal, então a menina seria praticante de “Estupro de Vulnerável” contra o menino na mesma medida que este contra ela, como já visto.

Assim sendo, ainda que reduzindo a tipicidade indevidamente ao seu aspecto meramente formal, teríamos uma autora de estupro em nome da qual se pleiteia a realização de um aborto devido a gravidez resultante desse mesmo estupro.

Acontece que o aborto pelo qual não se pune a mulher que engravidou é aquele em que ela é a vítima do estupro e não a autora.

O aborto não punível somente diz respeito à gestante vítima de estupro, jamais àquela que obteve por vontade própria a prática do ato libidinoso de que resultou a prenhez.

Embora realmente a lei em sua literalidade se refira à gravidez que “resulta de estupro” em geral sem fazer distinção entre a mulher como sujeito ativo ou passivo do crime, deve-se considerar o fator histórico que aponta para o fato de que à época da elaboração da norma não havia falar-se na mulher como sujeito ativo do estupro, possibilidade esta somente ensejada pelo advento da Lei 12.015/09. É, assim, trivial a conclusão de que a norma permissiva dirige-se, como sempre se dirigiu, à mulher como vítima e não como autora do estupro.

Entretanto, poder-se-ia acenar com a possibilidade de uma “interpretação progressiva” ou “extensiva” do permissivo legal e, quem sabe, de aplicação de analogia benéfica.

Tais teses devem ser rechaçadas, pois a “interpretação progressiva” ou mesmo “extensiva”, que permitiria a adaptação do velho texto ao novo contexto urdido pela Lei 12.015/09 não parece encontrar abrigo na vontade legislativa. Também não há razão alguma de semelhança que justifique analogia da situação que envolve a mulher vítima de estupro com a da mulher estupradora. Além disso, há também razões de ordem ética e pragmática para vedar o beneplácito legal à mulher infratora.

A “interpretação progressiva” ou “extensiva” infringiria a “mens legis”, vez que jamais se pretendeu na legislação brasileira não punir o aborto advindo de coito desejado pela mulher. A razão de ser do aborto sentimental é o reconhecimento pelo legislador do conflito e do sofrimento psíquico da vítima de estupro, daquela que necessitará buscar forças sobre – humanas para vencer a dor de conviver com terríveis lembranças durante a gestação e inclusive após o parto, por toda sua convivência com o filho advindo de uma relação sexual traumática. Não há de forma alguma justificativa para qualquer comiseração semelhante em relação àquela que desejou a relação sexual. Não se pode compreender como um capricho criminoso que ensejou um coito desejado pela mulher poderia dar lugar a outro capricho, agora abrigado pela lei, em eliminar a vida intrauterina. Isso seria o cúmulo da banalização do desprezo pela vida humana em sua fase inicial.

Por outro lado a analogia não se adequa ao caso enfocado. Para a aplicação da analogia são necessários dois requisitos básicos:

a)A inexistência de norma reguladora de determinado caso;
b)A existência de norma reguladora de caso semelhante, a ser analogicamente estendida ao caso lacunoso.

Na situação em pesquisa inexiste lacuna legal. A gravidez resultante de estupro exclui a punibilidade do aborto nos termos do artigo 128, II, CP, referindo-se claramente à mulher – vítima. De outra banda, estabelece a lei para a mulher estupradora um aumento de pena devido à gravidez derivada do estupro, considerando o incremento do “desvalor do resultado” em relação ao homem vitimizado. Não há qualquer norma permissiva prevista para o caso na novel legislação, a qual, aliás, se o quisesse, poderia ter reformulado a redação do artigo 128, II, CP, para abranger as novas possibilidades ensejadas pela Lei 12.015/09. Note-se que os casos estudados não são semelhantes, muito ao reverso, são mesmo contraditórios. Em uma situação trata-se da mulher na condição de vítima, em outra desta na condição de criminosa. Que espécie de analogia é aplicável a tal situação? Admitir que a mulher vítima de estupro aborte é uma coisa absolutamente diversa de admitir que a mulher autora do crime o faça. Neste segundo caso estar-se-ia permitindo que de um ato ilícito se gerasse um benefício para o infrator, o que viola frontalmente os mais comezinhos Princípios Gerais do Direito.

Inclusive sob o prisma ético não seria jamais compreensível que se admitisse ceder a tutela da vida humana intrauterina em prol do simples desejo da criminosa que violou a dignidade e a liberdade sexual de outrem e agora pretende violar também a vida humana para satisfazer seu capricho de não arcar com o ônus de zelar pela futura criança.

É bem verdade que no caso concreto a menina é concomitantemente vítima. Ocorre que não se vislumbra, considerando sua condição de infratora e a relação consensual, qualquer trauma psicológico a justificar uma exclusão de punibilidade. A situação se assemelha ou adequa muito mais a uma ocorrência de gravidez indesejada que nada tem a ver com estupro ou abuso de natureza sexual.

5-ABORTO OU HOMICÍDIO?
É de trivial conhecimento o fato de que enquanto no homicídio há proteção da vida humana extrauterina, no aborto há tutela da mesma vida humana intrauterina, bem como de que o marco temporal a distinguir um fato típico de outro é o início do parto. A partir do início do parto, a eliminação da vida humana constitui homicídio, antes disso, aborto.

No caso enfocado, a expulsão da criança se dá de forma induzida, de maneira que a diferenciação há que gravitar tão somente no que se refere aos conceitos de vida extra e intrauterina.

Importante é salientar que o conceito de vida intrauterina não é dado por simples critério topográfico, ou seja, o fato de que a criança esteja dentro do ventre materno não é o fator decisivo para que se trate de vida intrauterina. A vida intrauterina é aquela que não tem condições de viabilidade extra – útero. Por outro lado, a vida que já é viável fora do útero, ainda que esteja no álveo materno, já é uma vida extrauterina. Aquele que, ciente dessa condição, se propõe a eliminar uma vida humana extrauterina, age com o elemento subjetivo de homicídio e, objetivamente, mata uma criança e não um “produto da concepção” (ovo, embrião ou feto).

No caso da morte dada à criança em destaque, resultante de toda uma manobra falsificadora, conforme demonstrado, era do conhecimento geral de todos os implicados que se tratava de um ser humano já com 7 meses de gestação, portanto plenamente viável extra – útero. Praticamente qualquer pessoa tem ciência de parentes nascidos nessa fase de desenvolvimento e que tiveram vidas plenas, especialmente no atual estágio de desenvolvimento da medicina. Não é possível alegar que não se sabia que se tratava de uma vida humana já com características extrauterinas, a qual foi dolosamente eliminada naquilo que eufemisticamente se pretende chamar de “aborto tardio”, mas que, na realidade, nada mais é do que um homicídio de um infante.

6-CONCLUSÃO
O lamentável episódio jamais passou de uma abjeta encenação midiática com objetivos ideológicos, inexistindo estupro real e nem mesmo estupro de vulnerável sob o prisma material.

Ainda que se isolasse a tipicidade formal, há que considerar que a menina envolvida também era autora de “estupro de vulnerável”, não sendo abrigada pela excludente de punibilidade com que se acenou desde o início.

Havia ciência dos envolvidos sobre todo esse quadro fantasioso em que apenas se pretendia legitimar a eliminação de uma gravidez indesejada, ainda que se tratando de uma criança já formada e viável extra – útero.

A menina, a criança e sua família foram instrumentalizadas barbaramente e parece que a manobra desonesta e cruel funcionou tão perfeitamente que não se vislumbra a possibilidade de responsabilização dos implicados por suas condutas imorais e ilegais, inobstante seja isso viável juridicamente. Parece que essas pessoas vão se convencendo, não sem motivos concedidos pela própria sociedade em sua pachorra, de que realmente o brocardo latino que diz que “Mors omnia solvit” (“a morte resolve tudo”) é um imperativo absoluto. Será que algum dia haverá um limite? Será que um Cícero alguma vez indagará a esses Catilina: “Quo usque tandem abutere patientia nostra” (“Até quando vai abusar da nossa paciência”)? Até lá, a morte já não terá dissolvido a tudo e a todos?

 


REFERÊNCIAS
CICHOCKI NETO, José. Princípios informativos da interpretação progressiva das leis. Revista de Direito Civil. n. 54, out./dez., p. 99 – 101, 1999.

SALVADOR NETO, Altamiro Velludo. Estupro bilateral: um exemplo limite. Boletim IBCCrim. N. 202, set., p. 8 – 9, 2009.

SARAIVA, João Batista Costa. O “depoimento sem dano” e a “Romeo and Juliet Law”. Uma reflexão em face da atribuição da autoria de delitos sexuais por adolescentes e a nova redação do art. 217 do CP. Boletim IBCCrim. n. 205, dez., p. 12, 2009.

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

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