sexta-feira,19 abril 2024
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O direito à desconexão do trabalho na era tecnológica

Coordenação: Ricardo Calcini.

Introdução

O trabalho tem seu sentido interligado ao ser humano e sua valorização é um dos pilares que rege a ordem econômica do Brasil (art. 170 da CF). Os avanços tecnológicos desafiam o modelo de trabalho tradicional porque o comportamento da sociedade muda com aqueles. Isso é perceptível quando analisamos um novo hábito da maioria das pessoas: elas desconectam-se da tecnologia quando também se desconectam do dia, pois visualizam o celular como o último gesto ao dormir e o primeiro ao acordar.

Esses novos hábitos deságuam na esfera laboral e acarretam, ao trabalhador, um desgaste mental muito maior e uma jornada exorbitante de trabalho, além do que realmente aparenta realizar. Por isso a importância do direito a desconexão em tempos tecnológicos.

A importância do trabalho e da desconexão do ser humano para o direito do trabalho

A origem da palavra trabalho não se coaduna com os valores e conceitos atuais da expressão. Segundo ensinamentos de Evaristo de Moraes Filho: “Através dos tempos veio sempre o vocábulo significando fadiga, esforço, sofrimento, cuidado, encargo, em suma, valores negativos, dos quais se afastam os mais afortunados”. O jurista apresenta, em seguida, a nova ótica da palavra:

Além da concepção ativista do trabalho pelo trabalho, não se separa mais a força, a atividade ou a capacidade do agente humano que a exerce. O trabalho, escreveu LOTMAR, é a própria vida do homem. Seus êxitos e fracassos, suas aspirações, seus perigos estão indissoluvelmente ligados à sua atividade profissional.
[…] O seu conceito ético e social representa uma total oposição ao que dele se tinha na antiguidade clássica.

O trabalho, portanto, é a “honra do homem e a alma da sociedade”, além disso impulsiona o sistema capitalista, por isso sua importância.

Porém, o seu excesso desafia a saúde humana e a qualidade da produtividade do trabalhador. Foi em decorrência das jornadas extenuantes de trabalho que surgiram as primeiras normas trabalhistas, as quais foram propulsoras do nascimento do Direito do Trabalho.

Os fundamentos para o limite da duração de trabalho, permitindo um período de ‘desconexão’ da prestação de serviços e garantindo o trabalho decente ao trabalhador são: de natureza biológica, pois visa a combater problemas inerentes a higidez do trabalhador; caráter social, permitindo ao trabalhador a vivência em sociedade, desfrutando de momentos de lazer; índole econômica, por restringir o desemprego e permitir que o trabalhador recomponha suas energias, trazendo maior produtividade e rendimento no na execução do trabalho.

Desta feita, o trabalho e a sua desconexão pelo trabalhador são um dos principais alicerces que fundaram o direito do trabalho.

Os desafios da tecnologia para a seara trabalhista

Os avanços tecnológicos trazem muitos benefícios à sociedade, mas as mudanças, em ritmo vertiginoso advindas com aqueles, desafiam as novas formas de trabalho e, consequentemente, o direito do trabalho.

O novo modelo de trabalho, que a princípio proporciona efetiva autonomia e flexibilidade, traz também maior cobrança de produtividade e eficiência em face da competitividade. Essa pressão psicológica decorre também de um novo fator para a competitividade: a inteligência artificial. Isso foi muito bem alertado por especialista no Fórum Econômico Mundial em Davos, Suíça:

A digitalização vai promover mais empregos informais. Isso fará com que o mercado de trabalho fique cada vez mais desprotegido” (presidente da Fundação Swiss Digital Initiative e ex-conselheira federal da Suíça, Doris Leuthard)

As pessoas precisam aprender constantemente novas habilidades. A IA existe somente há poucos anos, mas grandes mudanças ainda devem acontecer e precisamos pensar em como proteger os trabalhadores” (o historiador israelense Yuval Noah Harari)

Por causa de todos esses fatores, tanto os empregados como trabalhadores autônomos não se desconectam do trabalho. Isto foi comprovado na pesquisa em 35 países Europeus, no ano de 2015, em que foram entrevistados 35.765 trabalhadores (empregados e autônomos) e 14% admitiram preocuparem-se com o trabalho “sempre” ou “a maioria das vezes” durante o período de descanso; 21% afirmaram estar “sempre” ou, “na maioria dos casos”, cansados demais para se envolver em tarefas domésticas e 11% denunciam que seus próprios empregos não lhes permitem “sempre” ou, “na maioria dos casos”, dedicar tempo suficiente à família.

Além disso, no que tange ao tempo gasto no trabalho, 45% dos trabalhadores que participaram da entrevista admitiram que trabalharam, nos últimos 12 meses, durante o tempo livre para atingir os objetivos fixados pelo empregador; 7% se mantêm obrigados a renunciar parte de seus momentos pessoais, várias vezes por semana e 13% várias vezes em cada mês.

A tecnologia corrobora a frequente conexão do empregado/trabalhador ao trabalho. Isso ocorre, em especial, no teletrabalho, cuja previsão no ordenamento jurídico brasileiro está insculpida nos artigos 75-A e seguintes da CLT. Este tipo de prestação de trabalho é objeto da Convenção nº 177 da OIT, não ratificada pelo Brasil.

A princípio, o teletrabalho – aquele “prestado preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo” (art. 75-B da CLT) – manifesta a ideia de liberdade no exercício do trabalho. Entretanto essa liberdade é utópica e “implica efeitos relegados por parte dos estudiosos do tema”, conforme explica Antonio Capuzzi:

[…] o teletrabalho, se levado a efeito sem responsabilidade patronal e laboral, promove a fictícia ideia de trabalho livre, extremamente benéfico à condição humana do trabalhador, premissa deveras falsa, gerando, consequentemente, repercussões.

Segundo o autor, uma das repercussões da falsa liberdade seria na hipótese de junção da ausência do controle de jornada com a exigência do cumprimento de metas, caracterizando o que Michael Focault denominou de Panóptico – expressão também concebida pelo filósofo Jeremy Bentham, no século XVIII, para o modelo arquitetônico de prisão cuja estrutura permite vigilância e monitoramento de um prisioneiro. Essa ideia do panoptismo de que a pessoa é submetida “a um estado de vigilância constante, alijando o resguardo da saúde física e mental em vista do alcance de meta imposta”, é aplicada na esfera laboral:

Nessa medida, revela o poder econômico a capacidade de incutir na mente do trabalhador diluída autocensura sob o aspecto da autogestão na busca por resultados específicos, atribuindo, de per si, um enfoque disciplinar individual a fim de busca pela preservação do emprego.

No sistema de controle tecnológico, denominado panótico, o mesmo empregado pode sofrer vigilância à distância por supervisores variados, sem que ele saiba, de fato, quem está e se está sendo vigiado. A vigilância intensifica-se nas hipóteses em que os sistemas de sites e aplicativos possuem ferramentas de avaliação do consumidor pelo atendimento recebido, por clientes e usuários dos serviços.

Essa vigilância constante, exigindo do trabalhador prestação de serviços além da jornada, da forma mais qualificada possível e sob pressão psicológica tende a ocasionar moléstia à saúde do trabalhador denominada de “sindrome de burn out”.

Segundo ensinamentos de DALLEGRAVE NETO, José Afonso:

A expressão burn out vem do inglês e significa ‘combustão completa’, sinalizando para a sensação de explosão ou exaustão da pessoa acometida pelo estresse no ambiente de trabalho. É, pois, um esgotamento profissional provocado por constante tensão emocional no ambiente de trabalho.

Essa “combustão completa” do empregado lhe causa sérios prejuízos a sua saúde, representando prejuízos que podem dar ensejo a sua reparação por danos morais.

O direito a desconexão no Direito Comparado

Diante dos danos a saúde do trabalhador por causa da desconexão do trabalho em face dos novos ofícios digitais, alguns países – visando à proteção da saúde dos empregados – passaram a prever em seus ordenamentos jurídicos dispositivos inerentes ao tema.

O jurista italiano, Matteo Avogaro, ensina de modo aprofundado a trajetória do direito a desconexão na França e Itália. Aliás, a França foi o primeiro país a debater sobre o assunto, sendo abordado, inicialmente por diversas empresas como a Canon e Sodexo, no período de 2009 a 2013, com campanhas internas denominadas “working days without e-mail”, com o fito de prevenir doenças interligadas ao “burn out” e dependência do uso do aparelho celular.

A Loi Travail, lei da reforma trabalhista francesa, inseriu o parágrafo 7 do artigo L.2242-8 no Código do Trabalho Francês, tratando sobre o direito à desconexão de forma ampla.

Em linhas gerais, o dispositivo estabelece que a qualidade do trabalho deve respeitar os procedimentos para o pleno exercício pelo funcionário do seu direito de desconectar e a empresa deve ter, em seu estabelecimento, sistemas para regular o uso de ferramentas digitais, com o objetivo de garantir o respeito ao descanso e a vida pessoal e familiar do empregado.

A legislação italiana inspirou-se na iniciativa francesa e introduziu, em seu ordenamento jurídico, a previsão desse direito. A lei do ‘Lavoro Agile’ (Lei nº 81/2017) trata do direito a desconexão em seu artigo 19, dispondo, de modo específico, que o contrato, por escrito, entre trabalhador e empregador, também deve regular os períodos de descanso do empregado, bem como indicar as medidas técnicas e organizacionais adotadas pelas partes para garantir ao trabalhador o direito de desconectar dos dispositivos da empresa.

Do mesmo modo que a legislação francesa, a norma italiana trata do direito a desconexão de modo abrangente, mas esta última diferencia-se da primeira porque seu dispositivo legal, expressamente, prevê a possibilidade do acordo individual entre empregado e empregador, estabelecendo os limites e formas para a aplicação do direito a desconexão.

Conclusão

A tecnologia a cada dia traz ferramentas facilitadoras para a execução do trabalho. A cada piscar de olhos ela oferece um novo benefício para a humanidade, mas também demonstra o poder que exerce na vida das pessoas. Um dos seus poderes é conectar os seres humanos entre si e com o mundo.

A produtividade do trabalho humano por meio de mecanismos tecnológicos é muito maior se comparada à realidade de alguns anos atrás. Contudo, essa conexão deve ser saudável enquanto a pessoa estiver conectada, bem como deve haver a desconexão do trabalho para que seja garantida qualidade de vida ao trabalhador.

Essa sensibilidade da valorização e proteção da saúde do trabalhador diante da tecnologia já foi notada pelo direito comparado francês e italiano. Que essa conduta toque a sensibilidade dos legisladores de muitos outros países.

Afinal, se até o computador, quando um período desconectado acusa que está em ‘sono profundo’, o ser humano também necessita do ‘sono profundo’ de estar em convívio com a família, amigos e sociedade e todas as formas de descanso para viver e produzir melhor, como já entoa música de Beto Guedes: Lembra que o sono é sagrado e que alimenta de horizontes o tempo acordado de viver’ (Amor de Índio).

Advogada, pós-graduada em direito e processo do trabalho com formação para Magistério Superior. Pós-graduanda em Processos Brasileiros pela PUC-MG. Mestranda em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas no UDF.

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